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Entre a tragédia e a sensualidade
por Herbert Carvalho
O escritor Jorge Amado de Faria (1912-2001) colocou o Brasil e sua terra natal, a Bahia, no mapa-múndi da literatura. Seus 45 livros publicados em 70 anos de carreira foram traduzidos em meia centena de idiomas e adquiridos por mais de 60 milhões de leitores de todo o planeta – um fenômeno editorial só igualado por outro brasileiro, Paulo Coelho, em circunstâncias mercadológicas muito diversas, porém. Considerado pelo peruano Mario Vargas Llosa, prêmio Nobel de Literatura em 2010, como um dos três maiores escritores latino-americanos – ao lado do mexicano Octavio Paz e do colombiano Gabriel García Márquez, também detentores do Nobel –, é autor de uma obra que constituiu uma espécie de carteira de identidade do Brasil perante estrangeiros, que o agraciaram com títulos de doutor honoris causa em universidades como a de Pádua, na Itália, e a Sorbonne, na França.
Ele próprio, entretanto, não chegou a tornar-se o primeiro autor de língua portuguesa contemplado pela academia sueca, honra que coube a José Saramago. Mesmo em seu país, apesar de membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), à qual dedicou Farda Fardão Camisola de Dormir, nunca despertou simpatias da crítica universitária, da qual sofreu dupla discriminação, pelo passado militante de esquerda e por ser autor de best-sellers, criador de personagens estigmatizados como caricaturais, estereotipados e psicologicamente vazios.
Se Jorge Amado foi repudiado pela elite intelectual como populista e a sensualidade que transborda de seus romances tornou-se alvo de críticas dos moralistas, seu coetâneo Nelson Rodrigues (1912-1980), ainda que apontado pelos críticos especializados como o maior dramaturgo brasileiro de todos os tempos, teve tratamento pior: era abertamente chamado de tarado em razão dos adultérios e incestos, dos homossexuais e prostitutas que transitam pelas 17 peças por ele escritas entre 1941 e 1978, até hoje montadas ininterruptamente em palcos brasileiros.
Além de um teatro que superou o panorama anterior das comediazinhas de circunstâncias ou dos dramalhões da pior tradição lusitana – abrindo caminho para a geração de dramaturgos socialmente engajados como Augusto Boal, Oduvaldo Vianna Filho e Gianfrancesco Guarnieri –, Nelson deixou uma obra singular de jornalista-escritor. Reunidos em livros editados pela Companhia das Letras (mesma editora que relançou a obra de Jorge Amado), os contos, as crônicas que tratavam de futebol, cultura e política e os folhetins romanescos originalmente publicados em jornais sobreviveram ao efêmero tempo jornalístico, configurando um painel do Brasil de meados do século passado e, sobretudo, do Rio de Janeiro, cidade em que ele passou quase toda a sua vida.
Romancista de prostitutas e vagabundos, como Jorge Amado se assumia, ou anjo pornográfico, na autodefinição de Nelson Rodrigues que deu título à sua biografia, escrita por Ruy Castro, ambos deixaram uma obra cuja perenidade reside na fidelidade com que retrataram o povo brasileiro, sejam marinheiros e meninos de rua soteropolitanos sejam bicheiros e suburbanos cariocas. E, por isso, seus textos foram e ainda são recordistas em adaptações para cinema e televisão. Pela mesma razão, o primeiro chegou a ter livros queimados em praça pública e o segundo amargou anos de interdição de suas peças pela censura.
Instrumentos de combate ao preconceito racial, Jubiabá, de Jorge, e Anjo Negro, de Nelson, romperam com o tabu que alijava negros dos papéis principais em textos e palcos. Situados em polos ideológicos extremos e opostos, terminaram suas vidas próximos das posições políticas um do outro: comunista ganhador do prêmio Stalin, Jorge declarou seu voto em Fernando Collor contra Lula na eleição de 1989, enquanto Nelson, o reacionário algoz das esquerdas, horrorizou-se ao constatar que um filho, preso político na ditadura, fora barbaramente torturado pelos militares que ele tanto elogiava. Antecipando-se às comemorações que neste ano serão dedicadas ao centenário da dupla, Problemas Brasileiros apresenta as trajetórias de dois artífices da riqueza e pluralidade da cultura do país.
Menino grapiúna
Primogênito do coronel João Amado e de dona Eulália Leal, Jorge Amado nasceu no cenário onde ambientaria muitos de seus romances: um latifúndio cacaueiro em Itabuna, no sul da Bahia. Ainda não completara um ano quando seu pai foi ferido numa emboscada dentro da própria fazenda, episódio evocado em Tocaia Grande, romance de 1984, um dos últimos que escreveu. Em seguida, uma epidemia de varíola obriga a família a mudar-se para a vizinha Ilhéus, onde é alfabetizado e toma contato com a dura luta pela terra e a disputa entre fazendeiros e comerciantes exportadores de cacau, universo que retratará em Gabriela, Cravo e Canela, entre outras obras. Sobre sua infância deixou o relato O Menino Grapiúna, termo usado pelos sertanejos na Bahia para designar os habitantes do litoral.
Na adolescência, segue o roteiro traçado para os filhos da elite cacaueira: colégio interno de padres jesuítas em Salvador e faculdade de direito no Rio de Janeiro. À leitura das aventuras de Alexandre Dumas e do indianismo romântico de José de Alencar soma-se a iniciação profissional como repórter policial – em 1927, quando passa ao externato e vai morar no Pelourinho – e os primeiros contatos com o candomblé, influências e experiências que marcariam sua vida e seu estilo literário. Este começa a definir-se ainda na capital baiana, onde integra a Academia dos Rebeldes, grupo de jovens que pregava uma arte moderna sem ser modernista, ou seja, comprometia-se a enfatizar um conteúdo nacionalista, mas sem ousadias formais.
A receita garante o sucesso de público e de crítica do romance de estreia, O País do Carnaval (1931), publicado na então capital da República pela Editora Schmidt, com direito a prefácio do proprietário, o poeta Augusto Frederico Schmidt. Nele o escritor de apenas 18 anos denuncia a alienação e o cinismo dos intelectuais brasileiros às vésperas da revolução de 1930, antecipando em décadas a carnavalização que marca a estética brasileira.
Em 1932, dividindo um apartamento no bairro carioca de Ipanema com o poeta Raul Bopp, conhece Rachel de Queiroz e José Américo de Almeida. Deste último, dublê de político e escritor, impressiona-se com A Bagaceira, obra inaugural do filão da literatura regional no Brasil, que projetaria, além do próprio Jorge Amado, autores como o alagoano Graciliano Ramos ou o gaúcho Erico Verissimo, seguidores do lema de cantar a própria aldeia para tornar-se universal. Já Rachel de Queiroz o aproxima dos comunistas e do realismo socialista, corrente resultante da revolução soviética de 1917 e liderada pelo escritor Máximo Górki. A partir daí, pede de volta ao editor e destrói os originais de Rui Barbosa nº 2 – quase cópia de O País do Carnaval –, substituindo-o por Cacau, em cuja nota introdutória faz uma pergunta sintomática: “Será um romance proletário?” Era. Assim como também seriam Suor, Mar Morto, Capitães da Areia, Terras do Sem Fim e Seara Vermelha, todos da primeira fase de sua vida e carreira.
Movido pelo projeto de escrever para grandes massas textos claros e simples, em que os oprimidos se reconhecessem como construtores do próprio destino, obtém com Cacau dois resultados: esgota a primeira edição de 2 mil exemplares em apenas 40 dias, excelente resultado ainda hoje para um novato, mas consagrador na época em que Macunaíma, de Mário de Andrade, levara oito anos para vender 700 cópias.
Estava aberto o caminho para, diferentemente do autor paulista e de todos os outros desde Machado de Assis, dispensar empregos públicos e viver do ofício de escrever. Mas terminara, ao mesmo tempo, a lua de mel com a crítica. Seus livros são acusados de maniqueístas e populistas, por destacar as qualidades dos humildes e as mazelas dos poderosos. Despertam também ódio dos reacionários, que, após a decretação do Estado Novo, em novembro de 1937, queimam milhares de exemplares em praças públicas de Salvador.
Preso várias vezes nesse período, assume a militância comunista e viaja para a Argentina em 1942, onde lança Vida de Luiz Carlos Prestes – El Caballero de la Esperanza, como parte da campanha pela anistia dos presos políticos e pela libertação do secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Mais tarde, essa obra seria publicada no Brasil como O Cavaleiro da Esperança.
Buraco da fechadura
Nenhuma das peças escritas por Nelson Rodrigues é tão trágica quanto foi sua própria vida. Natural do Recife, era um dos seis filhos nascidos na capital pernambucana que o jornalista Mário Rodrigues e sua mulher, Maria Esther Falcão, tiveram antes de migrar para o Rio de Janeiro – onde o casal teria mais oito crianças –, tangidos por conflitos políticos, na época resolvidos a bala. As desgraças da família se sucedem desde o dia 27 de dezembro de 1929, quando, com 17 anos de idade, presencia um irmão mais velho ser morto a tiro dentro da redação do jornal “Crítica” por uma leitora inconformada por ter sido apontada como adúltera nas páginas da publicação.
Profundamente abalado – o filho morrera em seu lugar porque ele, proprietário e diretor responsável, estava ausente na hora fatal –, o próprio pai falece alguns meses depois, aos 44 anos, de trombose cerebral. Atacado por tuberculose aos 21 anos, Nelson arranca todos os dentes no desespero de livrar-se da febre que o consumia. Dois anos depois, um irmão menor morre também tísico. Na década de 1960, uma filha sua nasce cega e paralítica, enquanto outro irmão desaparece com esposa e filhos debaixo dos escombros de um prédio que desaba nas chuvas de verão.
A infância no subúrbio carioca de Aldeia Campista grava-lhe na memória as vizinhas que fiscalizam a vida dos outros, as solteironas ressentidas e as viúvas presentes nos partos e velórios feitos em casa, onde se cuspia em escarradeira e se tomava banho de bacia. Presenciava discussões por causa dos ciúmes que o pai tinha de sua mãe. Aos 8 anos, vence um concurso de redação escolar, mas a professora não pode ler o texto premiado, cuja história é assombrosa demais para uma criança: o marido surpreende a mulher nua e vê um vulto pulando a janela, mata a adúltera a facadas, em seguida ajoelha-se e pede perdão. A influência desse período em sua obra de ficcionista seria assim resumida por ele: “Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa”.
Em 1919 descobre o futebol, junto com o irmão Mário Filho – famoso jornalista esportivo que daria nome ao estádio do Maracanã –, tornando-se torcedor do Fluminense. Leitor precoce de romances considerados “pesados”, como Os Amantes de Veneza, de Michel Zevaco, abandona os estudos para dedicar-se ao trabalho de repórter policial em “A Manhã”, jornal de propriedade de seu pai. Desenvolve então a capacidade de dramatizar casos do cotidiano, especializando-se em descrever pactos de morte entre jovens namorados, comuns na época. Quando “Crítica”, o segundo jornal fundado por Mário Rodrigues, é empastelado em 1930 por ter se mantido fiel ao governo deposto de Washington Luís, já dominava a profissão que exerceria pelos 50 anos seguintes.
Em 1941, casado e procurando receita extra para incrementar o parco salário que recebia em “O Globo”, escreve a primeira peça. Montada por Rodolfo Mayer no Teatro Carlos Gomes, A Mulher sem Pecado ficou apenas duas semanas em cartaz, sem maior repercussão de público ou crítica. O contrário ocorreu, porém, com a segunda, Vestido de Noiva, elogiada calorosamente pelo poeta Manuel Bandeira antes mesmo de ser encenada. “Nelson Rodrigues é poeta. Talvez não faça nem possa fazer versos. Eu sei fazê-los. O que me dana é não ter como ele esse dom divino de dar vida às criaturas da minha imaginação. Vestido de Noiva, em outro meio, consagraria o autor. Aqui, se bem aceita, consagrará o público.” Levada ao palco do Teatro Municipal do Rio de Janeiro em 1943 pelo polonês Ziembinski, fugitivo da guerra na Europa recém-chegado ao Brasil, ela exigia o esforço de compreensão da revolucionária estrutura narrativa em três planos – da realidade, da memória e da alucinação de Alaíde, uma das três personagens femininas centrais da peça. Ao final de duas horas, 140 mudanças de cena e 132 efeitos de luz sobre os 25 atores da companhia Os Comediantes, a ovação dos mais de 2 mil espectadores presentes na estreia colocava Vestido de Noiva no rol das obras-primas absolutas do teatro brasileiro.
Ditadura militar
Eleito deputado à Constituinte de 1946 pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB), Jorge Amado obtém a aprovação do projeto de lei de sua autoria que estabelece a liberdade de culto no país, para acabar com as perseguições às religiões afro-brasileiras que ele testemunhara na Bahia. Quando o registro do partido e seu mandato são cassados dois anos depois, exila-se na França, já casado com a escritora paulista Zélia Gattai. Expulsos pelo governo francês em 1950, passam a residir na Tchecoslováquia. Até 1956, quando se afasta do comunismo, abalado pelas revelações do 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, viaja pelos países socialistas, experiência que destaca no livro O Mundo da Paz. Sobre o período em que foi um dos mais destacados intelectuais comunistas, ao lado do poeta chileno Pablo Neruda, promete escrever Bóris, o Vermelho, obra que, entretanto, jamais concretizará.
De volta ao Brasil em 1958, inicia longo período de afastamento da política e de ruptura com a literatura engajada, que se prolongará durante a ditadura militar (1964-1985). É quando escreve seus romances de maior sucesso, nos quais retrata a Bahia incursionando pelo realismo fantástico, com mortos que se recusam a desaparecer, como Quincas Berro d’Água e Vadinho, o malandro cínico de Dona Flor e Seus Dois Maridos. Este último, transposto por Bruno Barreto para o cinema com Sônia Braga no papel-título, atinge 10 milhões de espectadores em 1976, recorde só superado no ano passado, por Tropa de Elite 2. Em 1987 é inaugurada no Pelourinho a Fundação Casa de Jorge Amado, com o objetivo de preservar e divulgar a obra do escritor, que em 1992 lança Navegação de Cabotagem – Apontamentos para um Livro de Memórias que Jamais Escreverei, e em 2001 morre em Salvador.
Com Nelson Rodrigues, que nunca saiu do Brasil e só agora começa a ter peças vertidas em outros idiomas, acontece o oposto: nas décadas de 1950 e 1960 é engolfado pelo turbilhão das disputas políticas. Quando, para combater os ataques de Carlos Lacerda, Getúlio Vargas banca Samuel Wainer para fundar a “Última Hora”, Nelson Rodrigues aumenta a venda do jornal com sua coluna de maior sucesso, “A Vida como Ela É”. O sotaque carioca estava presente em cada uma das 130 linhas diárias por onde desfilavam desempregados, comerciários e barnabés que moravam na zona norte da cidade, trabalhavam no centro e às vezes se divertiam na zona sul. Seu teatro também muda. Se as primeiras peças eram psicológicas ou exploravam mitos ancestrais, como Álbum de Família e Senhora dos Afogados, surgiam agora as tragédias cariocas, todas transformadas em filmes, além de exaustivamente encenadas: A Falecida, O Beijo no Asfalto, Os Sete Gatinhos, Boca de Ouro, Bonitinha, mas Ordinária e Toda Nudez Será Castigada.
Após o golpe de 1964, Nelson adere ao clima de paranoia anticomunista característico da Guerra Fria. Os principais alvos dos ataques furiosos de suas crônicas, publicadas em “O Globo”, são a esquerda católica e os “padres de passeata”, “os marxistas de galinheiro” e as feministas, com quem tinha comprado briga por ter travado com a apresentadora Hebe Camargo o seguinte diálogo: “Todas as mulheres gostam de apanhar?”, pergunta ela. “Nem todas”, responde Nelson e acrescenta: “Só as normais. As neuróticas reagem”. Outras frases suas tornaram-se antológicas, como estas: “Dinheiro compra tudo. Até amor verdadeiro” e “Toda unanimidade é burra”.
A desilusão com o regime militar que apoiara se dá em duas etapas. Na primeira, o recrudescimento da censura após a decretação do AI-5 o leva a uma maratona por gabinetes oficiais tentando liberar suas peças. O golpe mais duro ocorre em 1972, ao constatar as torturas sofridas pelo filho Nelsinho, integrante do MR-8, organização clandestina que participava da luta armada. A partir daí sua saúde, sempre precária, deteriora-se gradativamente, até a morte no dia 21 de dezembro de 1980. Com organização e prefácio do crítico Sábato Magaldi, a Editora Nova Aguilar publica, em 1993, um volume único com seu teatro completo.