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A ira sagrada de um polemista
por Cecilia Prada
Em tempos como estes, em que diariamente sucedem-se palpites e vaticínios sobre o destino da mídia escrita, em que a denominada “grande imprensa” – também chamada de “quarto poder” – cotidianamente é acusada de incentivar golpes de Estado e conspirar contra o governo, talvez seja salutar tirar das prateleiras do passado uma figura de jornalista que passou à história como polemista singular, impulsivo, intempestivo e ambicioso, capaz de derrubar governos e estabelecer nos bastidores uma rede de intrigas da qual ele próprio acabou vítima – Carlos Frederico Werneck de Lacerda (1914-1977), glorificado por uns, demonizado por outros. Porque, diga-se o que se disser dele, não incidiu, pelo menos, na abominação estabelecida na Bíblia para os que são “mornos” e devem ser cuspidos da boca do Senhor.
Se o nome ou nomes que recebemos ao nascer não são escolhidos ao acaso, mas obedecem a editos transcendentais das estrelas – como dizem os adeptos da astrologia –, os que foram dados ao menino nascido no Rio de Janeiro em 30 de abril de 1914 e registrado em Vassouras (RJ) resultaram de imposição mais clara da vontade dos familiares, os quais eram políticos e comunistas. Seu avô paterno, Sebastião Eurico de Lacerda, foi ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas de 1897 a 1898, no governo de Prudente de Morais, e ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) de 1912 a 1925. Os nomes escolhidos para o rebento foram “Carlos” (Marx) e “Frederico” (Engels) porque seu pai, o jornalista e político Maurício de Lacerda, participou de várias revoluções, foi membro da Aliança Nacional Libertadora (ANL) e acusado de envolvimento na intentona comunista de 1935 – nessa ocasião o jovem Carlos, que desde cedo e até 25 anos seguiu a linha política da família, também teve de se esconder em uma chácara durante algum tempo. Seus tios, Fernando e Paulo de Lacerda, foram líderes do Partido Comunista Brasileiro, então chamado Partido Comunista do Brasil (PCB).
Carlos Frederico, porém, proclamaria sempre que era um grande entusiasta e defensor da democracia e da liberdade de expressão. E somente por volta de 1939 foi que rompeu com os correligionários comunistas, pois então teria percebido que sua doutrina levaria a uma ditadura pior que as outras, porque muito mais organizada e, portanto, muito mais difícil de derrubar.
Sabemos, porém, que sempre que ocorrem súbitas mudanças de opinião política não prevalecem argumentos meramente ideológicos, principalmente quando se trata de personalidades ativas na vida pública. Como se deu então essa passagem, em Carlos Lacerda, do ativismo comunista à posição, mantida até o fim da vida, de aderência total aos princípios conservadores e direitistas, dos quais foi o maior porta-voz e articulador?
Um episódio está ligado a essa “conversão”: o rompimento foi consolidado com a publicação, na revista “Observador Econômico e Financeiro”, de um artigo de sua autoria encomendado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no qual contava a história do comunismo no Brasil e afirmava ao final que, graças ao Estado Novo, o PCB havia sido desbaratado e seus líderes, presos. Em consequência, os comunistas acusaram-no de traidor, contrariando sua versão, segundo a qual o próprio comitê central do partido o autorizara a escrever o artigo, já que, se não o fizesse, a incumbência caberia a “um jornalista ferrenhamente anticomunista”.
Detalhes da punição dada a Lacerda pelo “Partidão” circularam no Rio de Janeiro: o “traidor” teria levado uma surra dos companheiros, antes de ser expulso. Aliás, durante sua agitada existência foram várias as surras que recebeu, devido a excessos verbais, dos inimigos do momento – que poderiam, principalmente no caso de políticos, repentinamente se transformar em “amigos”, e vice-versa. E quando se envolveu na campanha pela deposição de Getúlio Vargas, em 1954, o revide dos atingidos por ele chegou mesmo ao famoso atentado da Rua Tonelero, um episódio que teve a capacidade de mudar a história do país.
Nos anos 1940, Carlos Lacerda teria outra “conversão” – ao catolicismo, levado por Alceu Amoroso Lima e Gustavo Corção. A intelectualidade brasileira ecoava a orientação política do Vaticano de Pio XI, que visava a uma aproximação com os setores dominantes da sociedade, com o recrudescimento da intolerância contra os demais credos e contra o marxismo-comunismo.
Mergulhando na história política do país no período de 1930 a 1964, vemos agora, com o distanciamento de meio século, uma característica primordial da época: na esquerda ou na direita, em todas as correntes ideológicas foi constante o desejo, mal dissimulado em uns, explícito em outros, de um governo forte, ditatorial, personalista, sob o pretexto de se dar ao povo brasileiro – diziam políticos de todo naipe – “democracia, justiça e melhores condições de vida”. Da revolução de Vargas ao estabelecimento efetivo da ditadura militar em 1964 – que duraria 21 anos –, nosso país tornou-se palco de conflito contínuo entre facções aparentemente opostas, mas na realidade muito semelhantes, calcadas abertamente nos regimes totalitários que infestavam o planeta, do nazismo-fascismo ao comunismo soviético.
Se o sonho de governar rasgando a Constituição e dissolvendo o Congresso teve dois momentos explícitos – o Estado Novo e o golpe de 1964 –, ele germinou também amplamente na mente de outras figuras que passaram à história, intelectuais, políticos, governantes: de Luís Carlos Prestes (na intentona de 1935) a Plínio Salgado (com sua tentativa de golpe integralista em 1938), de Jânio Quadros a João Goulart – e inclusive a Carlos Lacerda, que visava chegar à presidência da República. Juscelino Kubitschek constituiu, nesse particular, exceção absoluta – fez sempre questão de governar com a Constituição na mão.
Carisma
Muito culto, dotado de grande inteligência e de um extraordinário poder de expressão verbal e escrita, atraente fisicamente, Lacerda tinha tudo para se tornar um líder político desde a juventude. Nas fileiras comunistas opôs-se sempre a Vargas e manteve-se coerente nessa posição, fazendo da luta contra seus seguidores – explícitos ou embuçados – uma linha constante, através dos anos. Esteve por trás, inegavelmente, das várias conspirações que visaram depor Getúlio e, depois de seu suicídio, perseguiu incansavelmente os que seriam seus continuadores, de Juscelino Kubitschek a Jânio Quadros e João Goulart.
A carreira política de Lacerda, no entanto, tornou-se mais uma consequência de sua intensa e incansável trajetória como jornalista. Ele tem sido comparado, pela audácia das posições que assumia e pelo vigor do que escrevia, com outro jornalista político, Cipriano Barata, do século 19. Como aconteceu com a maioria dos profissionais da imprensa, atravessou, na mocidade, um período em que não tinha mais onde escrever – os donos de jornais temiam sua veemência imprudente, que poderia metê-los em grandes encrencas.
Foi assim que em 1947, após ter sido demitido do “Correio da Manhã” por ter feito mira em suas críticas em um amigo de Paulo Bittencourt, dono desse diário carioca, resolveu fundar seu próprio jornal, levando consigo o título da coluna que lhe dera fama, “Tribuna da Imprensa”. Teve ajuda financeira tanto do Banco de Crédito Real de Minas Gerais como de senhoras da sociedade que eram suas fãs inveteradas – uma de suas paixões, plenamente correspondida, foi pela atriz Maria Fernanda, filha da poeta Cecília Meireles. Outra, como nos conta seu principal biógrafo, John W. Foster Dulles, foi a atriz americana Shirley MacLaine.
De 1949 a 1960 Lacerda transformou a “Tribuna da Imprensa” em púlpito de pregação contra corrupções e negociatas generalizadas e contra todos os seus desafetos, isto é, os que não pensassem como ele. Era insaciável e obcecado nos ataques, como disse o jornalista Hélio Fernandes em entrevista concedida em 1977 a Sebastião Nery: “Seus inimigos que ficassem atentos, [Lacerda] acertaria as contas com os comunistas, com quem sentasse na cadeira de presidente da República, com generais, empresários que viviam de subsídios do governo e com os adversários, de modo geral. De seu alcance não fugiriam nem os udenistas [membros da União Democrática Nacional (UDN), partido ao qual o próprio Lacerda era ligado] que contrariassem suas ideias e posições”.
Outro jornalista famoso de sua época, Murilo Melo Filho, da revista “Manchete”, diria dele: “Nunca vi uma pessoa tão extremada e tão apaixonada pela vida. Tudo nele era grande: as qualidades e os defeitos. Idealista, ele tinha o entusiasmo próprio da juventude. Ficava tão absorvido com o trabalho na ‘Tribuna’ que às vezes nem sequer ia para casa. Dormia na redação, em cima de mesas forradas com jornais”.
Campanhas e crises
O fato de ter jornal próprio possibilitou a Lacerda manter longas e acérrimas campanhas contra o alvo da vez, que às vezes era até mais de um. Esbravejava com a ira sagrada de um Danton contra os assuntos mais comezinhos, como o desperdício do dinheiro público que constituía a compra de um casal de girafas para o Zoo do Rio de Janeiro.
Ficou famosa a campanha que moveu contra um rival de jornalismo, Samuel Wainer, proprietário do “Última Hora”, ligado ao grande inimigo, Getúlio Vargas – acusava-o de só ter podido criar e manter seu jornal devido a um financiamento ilícito obtido por favor do presidente, no Banco do Brasil. Foi tido como “permanentemente oposicionista” ao governo e realmente desestabilizou com sua oratória e seus artigos três governos, o de Vargas, o de Jânio Quadros e o de João Goulart.
Seus inimigos o apelidaram de “O Corvo” e “O Demolidor” – a maioria de seus contemporâneos, como o veterano jornalista Villas-Bôas Corrêa, vê nele qualidades de coragem e ousadia, mas lamenta os defeitos de seu radicalismo cego. Ele seria “muito bom para destruir, mas na hora de construir....” – o que não é exatamente verdade, pois Lacerda, que foi o primeiro governador do estado da Guanabara (1960-65), mostrou nesse cargo capacidade de ótimo administrador e empreendedor, enfrentando questões relacionadas à qualidade de vida da cidade multiproblemática que era o Rio de Janeiro da época, onde não havia nem mesmo um sistema racional de distribuição de água à população ou infraestrutura viária adequada ao trânsito.
Contra Getúlio
Como comunista militante, o jovem Lacerda planejou, em janeiro de 1931, incentivar marchas de desempregados no Rio de Janeiro e em Santos (SP), durante as quais ocorreriam ataques a casas comerciais. Essa espécie de “conspiração”, descoberta e desbaratada pela polícia, foi noticiada até no “The New York Times”. Embora desligado dos comunistas alguns anos mais tarde, ainda durante o Estado Novo assumiu como sua causa principal a derrubada de Vargas e dos movimentos políticos trabalhistas.
Nos anos 1950, já filiado à UDN, batalhou pela não eleição de Vargas e foi certamente a pessoa mais ativa em continuar a atacá-lo após a volta dele ao poder – englobando em seu ódio todos os políticos que considerava como continuadores do “varguismo” – até Juscelino Kubitschek. Lacerda conservou e cultivou sua atitude de violenta rejeição a JK – que passou à história como conciliador, eficiente e democrata, sendo conhecido pelo carisma pessoal que possuía e que fazia dos inimigos amigos.
Com o dono da “Tribuna da Imprensa” isso não foi possível. Como diz um dos biógrafos de JK, Claudio Bojunga, a única pessoa que Juscelino temia era Lacerda – o presidente confessava mesmo que ele era a primeira pessoa em quem pensava, a cada manhã. O jornalista moveu-lhe campanha cerrada, empenhado em não deixar que assumisse, depois de eleito, o cargo de presidente. Chegou mesmo a chamá-lo, em um artigo, de “cafajeste máximo” – tentava desmoralizá-lo, porque sabia que não poderia nunca vencê-lo nas urnas. No entanto, muitos anos mais tarde, quando Juscelino – que fora por ele incluído, com Jango, em sua Frente Ampla para a Redemocratização do País – morreu, Lacerda não hesitou em dizer: “A qualidade mestra de JK era a tolerância, a compreensão, o respeito à inteligência. Que sua morte sirva para restabelecer essas virtudes no Brasil”.
Em agosto de 1953, Lacerda fundou no Rio de Janeiro o Clube da Lanterna, que, congregando diversos parlamentares, principalmente udenistas, tinha por objetivo combater o governo Vargas. Tornou-se presidente de honra da nova entidade e apertou o cerco contra Getúlio, que já lutava para se defender da acusação de governar “em um mar de lama”. A situação agravou-se repentinamente no dia 5 de agosto de 1954, quando Lacerda foi vítima de um atentado, na porta de sua casa, na Rua Tonelero – que causou a morte do major da aeronáutica Rubens Vaz, que o escoltava. Ferido apenas no pé, ainda no pronto-socorro o jornalista atribuía o crime ao governo. Com o envolvimento provado no atentado do chefe da guarda presidencial, Gregório Fortunato, e até do irmão de Getúlio, Bejo Vargas, um manifesto de 30 militares exigiu no dia 23 de agosto, com o apoio maciço da aeronáutica, a renúncia do presidente – que preferiu suicidar-se, na madrugada de 24 de agosto.
A grande comoção popular causada pelo suicídio de Vargas, com ações contra a “Tribuna da Imprensa” e outros jornais antigetulistas, obrigou Lacerda a sair do Rio de Janeiro e esconder-se durante breve tempo. Em janeiro de 1955, já publicava um artigo defendendo abertamente a intervenção militar, preconizando que o governo fosse entregue a “mãos fortes” e conclamando à “união das forças democráticas”, que, a seu ver, encontravam-se ameaçadas com a possibilidade de vitória de Kubitschek. Dali por diante, até o golpe ditatorial de 1964, ele manteria uma aliança com os militares, tomando parte na organização de pequenos movimentos de revolta, como os episódios de Jacareacanga, no Pará, e Aragarças, em Goiás.
A renúncia de Quadros
Durante esses anos todos Lacerda deu prosseguimento à sua própria carreira política, nas fileiras da UDN. Foi eleito deputado federal e posteriormente governador do estado da Guanabara. Apoiara Jânio Quadros na campanha à presidência, mas indispôs-se com ele devido à atitude personalista, fazendo alvo de sua crítica a política externa, que incluía a aproximação com Cuba. Exatamente sete anos após o suicídio de Vargas, em agosto de 1961, Jânio inesperadamente renunciava, depois de oito meses de governo – o motivo imediato desse gesto fora um pronunciamento feito na véspera pela televisão por Lacerda, no qual o jornalista atacava o presidente por ter dado uma condecoração a Che Guevara e denunciava que ele estaria preparando “um golpe de gabinete” e propondo “uma reforma por decreto e com o fechamento do Congresso”.
Conforme é relatado no livro 1961 – Que as Armas Não Falem, de Paulo Markun e Duda Hamilton, o governador da Guanabara chegara a Brasília no dia 18 de agosto para conferenciar com o presidente – dizia-se que ia em busca de empréstimo para seu jornal, que estava em sérias dificuldades. Hospedara-se no próprio Palácio da Alvorada e mantivera conversas particulares com Jânio e com o ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta – a quem fora encaminhado pelo próprio presidente. Quando voltou ao Alvorada, no entanto, Lacerda foi recebido apenas pelo mordomo, com um detalhe: estava com a valise do governador na mão, despedindo-o. Furioso, ao voltar para o Rio de Janeiro Lacerda lançaria seu ataque a Jânio – com o resultado que se sabe.
Seu fervor “revolucionário” recrudesceu durante o agitado e curto período do governo Jango – o inimigo da vez. Lacerda apoiou plenamente o golpe militar de 1964 e muito batalhou para torná-lo eficiente: tinha a certeza de que seria escolhido por seus amigos militares para governar o Brasil. Quando isso não aconteceu, virou a casaca e passou a defender a formação de uma Frente Ampla (foi procurar seus inimigos figadais de outrora) para a derrubada da ditadura. Em 1968, porém, foi preso e pouco depois cassado – vítima da própria serpente ditatorial que nutrira. Após uma semana em greve de fome, conseguiu ser libertado por estar com a saúde debilitada, sob risco, segundo relatou em suas memórias, de entrar em coma diabético. Em 30 de dezembro teve os direitos políticos suspensos por dez anos.
No início de 1969 viajou para a Europa e, em maio, seguiu para a África como enviado especial de “O Estado de S. Paulo” e do “Jornal da Tarde”. De volta ao Brasil, dedicou-se às atividades empresariais, nas companhias Crédito Novo Rio e Construtora Novo Rio, e editoriais, na Nova Fronteira e na Nova Aguilar, todas de sua propriedade. Sob o pseudônimo de Júlio Tavares, colaborou ainda em “O Estado de S. Paulo” e no “Jornal do Brasil”. Faleceu no Rio de Janeiro em 21 de maio de 1977.