Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Festival com som de saudade

Na tela em que Pedro Américo registrou a Proclamação da Independência do Brasil há um detalhe que parece destoar daquele momento histórico. Enquanto dom Pedro e seus oficiais levantam orgulhosamente as espadas, um anônimo peão conduz as parelhas que arrastam um carro de boi carregado de troncos de árvores e testemunha, curioso e sem compreender, aquele ato que teria tanta significação na história do país. Mais que simples obra do acaso, porém, o detalhe é uma homenagem mais que justa a um veículo de considerável valor no desenvolvimento do Brasil.

O carro de boi já era utilizado pelos povos antigos em tempos de paz ou de guerra para movimentar cargas pesadas. Em terras brasileiras, consta que foi introduzido por Tomé de Sousa, nosso primeiro governador-geral, que trouxe carpinteiros e carreiros, encarregados de dar início ao uso desse meio de transporte na colônia. Foi o primeiro veículo a rodar por nossos caminhos, com destaque para o trabalho pesado na indústria açucareira, carregando cana para os engenhos e açúcar para os navios.

Além do registro de Pedro Américo no painel da Independência, outro fato lembra a presença do carro de boi no Brasil. Na Guerra dos Farrapos, os revolucionários comandados por Giuseppe Garibaldi, impedidos de utilizar seus barcos, convocaram o carpinteiro Joaquim de Abreu, que aparelhou troncos de árvores e montou duas enormes carretas que, puxadas por 50 bois cada uma, em seis dias de marcha levaram as pesadas embarcações até a lagoa Tramandaí, para conquistar Laguna.

Produto da tecnologia disponível na época, o carro de boi era resistente, construído com madeiras duráveis, e dispensava estradas bem construídas ou alinhadas. Puxado por um número variável de duplas de bois, movia-se lentamente, na velocidade de uma pessoa a pé, mas chegava sempre ao destino, conduzido por um profissional – o carreiro ou carreteiro –, geralmente acompanhado de um ajudante, seu virtual sucessor.

Multidões

O uso dos carros de boi como meio de transporte hoje é praticamente inexistente, mas a tradição persiste, principalmente na forma de grandes festejos. Eles acontecem em diversas partes do país, mas em Goiás o evento tem contornos especiais. É uma verdadeira romaria que chega a reunir 300 veículos que saem de diferentes localidades rumo a Trindade, cidade que abriga um centro de devoção popular, o Santuário-Basílica Divino Pai Eterno.

A 25 quilômetros de Goiânia, esse pequeno município atrai todos os anos grandes multidões no mês de julho, para o que chamam de Festa de Trindade. Segundo consta, a origem da devoção remonta ao longínquo ano de 1848, quando o casal Constantino Xavier e Ana Rosa, ao roçar o pasto perto de casa, encontrou um medalhão de barro de meio palmo de diâmetro, com a imagem da Santíssima Trindade coroando a Virgem Maria. A medalha foi considerada milagrosa e passou a atrair a atenção das pessoas da região. Começaram assim as romarias e a construção de uma igreja, logo cercada de casas, que formariam o vilarejo de Barro Preto, origem da cidade de Trindade.

Nos primeiros tempos, como o carro de boi era o único meio de transporte, as romarias eram verdadeiros cortejos que atravessavam lentamente longas distâncias. Hoje o veículo é utilizado quase que somente para desfiles e festas. Em Goiás, a viagem começa alguns dias antes, dependendo da distância do local de origem. As famílias seguem sem pressa pelo sertão e pernoitam pelo caminho, sempre em clima festivo, com rodas de viola, danças, churrasco e muita alegria.

Em Trindade, o padre que comanda a procissão, Benedito Moreira, conta que participava da romaria desde criança. Ele é natural de Damolândia, cidade a 74 quilômetros de distância do santuário, local onde ocorreu o famoso milagre da onça. Segundo a tradição, cinco homens foram caçar o animal. Um deles, Jerônimo Martins, errou o alvo ao atirar e o bicho, enraivecido, atacou-o e feriu-o gravemente, antes de ser atingido pelos outros caçadores. No desespero Jerônimo pediu a ajuda do Divino Pai Eterno, prometendo doar sua melhor junta de bois caso escapasse com vida do acidente. Três meses depois, restabelecido, visitou o santuário, onde deixou seus bois, fato que também explica a presença maciça de carros de boi na Festa de Trindade.

Sangue de carreiro

O amor pelo carro de boi está enraizado em muitas famílias goianas. Passa de pai para filho e a tradição se mantém. José Eugênio Guimarães Filho, conhecido como J. Carreiro, presidente da Federação dos Carreiros de Goiás, há 11 anos coordena o desfile, que considera, com orgulho, o maior do mundo. Filho de pai carreiro, trabalha incansavelmente em associações e na montagem de uma confederação destinada a reunir outros amantes do carro de boi pelo país. O Dia do Carreiro, comemorado a 6 de setembro, não por acaso é a data de aniversário de seu pai.

Adilson Martins, de 34 anos, peão de fazenda, é outro brasileiro com “sangue de carreiro”, como gosta de afirmar. Ele nasceu vendo o pai conduzir as parelhas pelas fazendas goianas e há um ano decidiu matar a saudade: arrematou um velho carro de boi, construído há 111 anos, somente para participar de desfiles e carreatas.

Damolândia, a terra do padre Moreira, é um centro produtor de carros de boi. É a cidade de “seu” Salu, o apelido muito conhecido de José Furtado Pacheco Sobrinho, de 66 anos, um carreiro veterano. Ele também é descendente de carreiros, que migraram para Goiás vindos de Patos de Minas (MG), onde, nas décadas de 1920 a 1940, o carro de boi era o único meio de transporte na roça.

Também fabricante dos carros, seu Salu participa da carreata desde 1964, mas hoje só usa o veículo para esse evento. Vem com toda a família – filhos, netos e parentes –, e os três dias de viagem, na estrada ou nas paradas para pernoite, são uma festa. “Não é devoção”, confessa ele. “É diversão.”

A cidade de Caçapava, no interior paulista, também tem seu núcleo saudosista dos carros de boi. É lá que reside Afonso Casari, de 74 anos, descendente de imigrantes italianos, que apesar de aposentado não abandona a oficina em que produz e conserta esses veículos. Orgulhoso de seu ofício, lembra que aprendeu tudo sozinho e que essa paixão vem desde a infância, quando via passarem os carros de boi pelo sítio onde morava. Ele começou fabricando seus próprios brinquedos, miniaturas com rodas feitas de sementes e parelhas de bois substituídas por limões. “Meu gosto é fazer ou reformar carro de boi”, diz ele, enquanto mostra para a reportagem o rancho em que funciona sua oficina. “Quando falta uma ferramenta, eu mesmo fabrico”, diz com orgulho, enquanto exibe um velho torno, construído por ele com muita criatividade. Uma caixa de câmbio de um Chevrolet 1937 faz parte do aparelho e garante o controle de velocidade necessário para tornear pesadas peças de madeira.

Antigamente, conta ele, não havia serra elétrica e a solda era feita na base do fogo e de marteladas fortes. Para cortar as toras, somente “no serrote”, e isso só era possível “comendo muito ovo”, diz. Hoje as coisas estão mais fáceis, mas, mesmo se não fosse assim, Casari continuaria a fabricar ou consertar os velhos carros de boi – atividades cada vez mais raras agora, quando os campos foram invadidos pelos tratores –, além de executar outros serviços habituais de marcenaria, como montagem de porteiras, pequenas carretas e até máquinas agrícolas. Afinal, sempre haverá caminhos que os veículos motorizados não enfrentam e, além disso, muita gente quer ter um carro de boi para enfeite. Assim, trabalho não falta a Afonso Casari, que quer terminar a vida fazendo carros de boi.

Outro marceneiro veterano é João Batista Tozzeto, de 81 anos, o último de três irmãos que fabricavam esses veículos em Caçapava. Há 15 anos ele abandonou a construção e os consertos, mas mantém a oficina, onde passa o tempo fazendo pequenos reparos em móveis e peças de madeira.

Joaquim Pereira da Costa é mais um octogenário que desde criança lidava com carros de boi. Em São Bento do Sapucaí (SP), ele fazia seus carrinhos de boi de brinquedo, assim como Afonso Casari, mas em vez dos limões amarrava o pequeno veículo no infeliz gato da família, que disparava pelo quintal, chegando até a subir em árvores atrelado ao carrinho de madeira. Carreiro e fabricante de carro de boi, Joaquim contava com a ajuda da irmã e hoje até se arrepende de ter derrubado tantos jacarandás e cabreúvas, entre outras árvores de madeira nobre que utilizava na confecção dos carros. Ele declara, contudo, que já replantou muito mais do que cortou, “para pagar o que gastei”, e hoje não tem coragem de cortar mais.

Também como seu colega de Caçapava, Joaquim aprendeu praticamente sozinho, observando o trabalho de um velho marceneiro, de quem se lembra com saudade e carinho. Era Sebastião Bento, conhecido como Surdo, um exímio construtor de carros de boi que tinha dificuldades de audição.

Antonio Aparecido da Silva, chamado pelos amigos de Tuca, ainda usa seu velho carro de boi na roça, “por estimação e mais para treinar os bois”, de modo a não fazer feio no desfile de Caçapava. Filho de carreiro, conta com saudade que o pai sempre usou o carro de boi no transporte de café e outros produtos da roça, nos tempos em que não havia trator, muito menos caminhonetes.

Vicente Paulo da Silva, de 67 anos, tem história semelhante. Nasceu carreiro e se lembra dos tempos em que seu pai transportava arroz e cuidava dos bois. Hoje reserva suas parelhas para as festas, como faz Manoel Gomes Andrade, de 49 anos, carreiro desde os 5. A família deste último trouxe a profissão de Alagoas para Caçapava, onde ele arrendou um sítio em que de vez em quando atrela os boi no velho carro, “só para manter a tradição”.

Gemido sem fim

O orgulho do carreiro, além de seus bois amansados e vigorosos, é o som contínuo que o carro emite quando em movimento, um lamento muito lembrado por poetas, cantadores e cronistas como Rubem Alves, que escreveu em uma de suas crônicas: “Carro de boi é instrumento musical. A madeira do eixo, girando apertada na madeira do encaixe, produz um som contínuo, lamentoso uivo de carpideira, um gemido sem fim. Quando o carro canta, o carreiro sobe em cima, segura o ferrão na vertical como se fosse uma lança e sorri, orgulhoso, como se fosse um músico dando um concerto”.

O canto do carro de boi é sempre uma atração, desde os velhos tempos, quando entrava nas vilas ou cidades atraindo a curiosidade dos moradores, que corriam para ver quem estava chegando, e a atenção das moças solteiras, de olho em algum garboso carreiro.

Construir um carro de boi é uma arte. E os artistas não têm mais sucessores, gente que saiba desde escolher a madeira adequada até forjar as peças de metal e finalizar a obra com perfeição. As madeiras preferidas dos antigos fabricantes eram o jacarandá, a maçaranduba, o jatobá, a aroeira, o pau-de-arco, a cabreúva, a sucupira, árvores hoje raras e protegidas. Mas naqueles tempos não havia Ibama nem ambientalistas em permanente vigília, e o artífice, machado em punho, entrava na mata em busca de seu alvo.

Para as peças do carro o construtor usa madeiras específicas, dependendo do esforço exigido de cada uma. A principal é o cabeçalho, a trave longa que liga o corpo do carro aos pontos em que se atrelam os bois. A cheda, de formato arredondado, completa a estrutura do carro, apoiando a mesa e se fixando ao chumaço, em que se encaixa o cocão, uma parte do eixo. O chumaço é chamado também de cantadeira, pois é nele que ocorre o atrito que produz o canto do carro de boi. As rodas, de madeira maciça, precisam ser muito resistentes, não somente para suportar o peso do próprio carro e de sua carga, como para superar os obstáculos dos caminhos rústicos ou inexistentes.

Elementos não menos importantes do carro de boi são os animais, escolhidos a dedo, treinados com paciência e tratados com carinho. O trabalho começa por amansar o animal, fazendo com que se acostume aos poucos com o incômodo da canga. Os bois são castrados e os mais novos são atrelados atrás dos mais experientes, aprendendo a obedecer, pela repetição e exemplo das outras parelhas, à voz do carreiro.

A parelha que vai na frente são os bois de guia, seguidos pelos bois do meio e, por último, os de coice. Cada carro pode ser puxado por quatro ou mais parelhas, dependendo da carga ou do percurso.

O carreiro comanda os bois com uma linguagem própria, gritando ordens para o grupo ou para cada boi, chamado sempre pelo nome. São nomes pitorescos que os animais recebem por suas características físicas ou pelo temperamento, e se repetem pelo país afora: Malhado, Melindroso, Maneiro, Formoso, Estrela, Mulato, Pitanga, Namorado e Brioso, entre muitos outros.

São animais mansos, ou amansados pelo jugo e pelo peso da canga, que hoje cumprem a sina de arrastar no velho carro apenas lembranças e a saudade dos bons tempos, quando o progresso andava mais devagar, sem nenhuma pressa.