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Cora Coralina

Não tenho o seu endereço, lanço estas palavras ao vento, na esperança de que ele as deposite em suas mãos. Admiro e amo você como alguém que vive em estado de graça com a poesia. Seu livro é um encanto, seu verso é água corrente, seu lirismo tem a força e a delicadeza das coisas naturais. (...).”

O trecho acima é da carta escrita por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), na intenção de que ela chegasse a uma ainda relativamente desconhecida Cora Coralina. A mensagem foi enviada para o endereço da Editora da Universidade Federal de Goiás, que tinha republicado o livro Poemas dos Becos de Goiás, em 1978 – 13 anos depois de sua primeira edição.

É como se o destino tivesse se encarregado de fazer com que a obra chegasse até Drummond, que não se conteve em fazer com que o país todo descobrisse “a existência de uma lírica coirmã no sertão dos Goiases”, como se lê em Cora Coralina – Raízes de Aninha (Ideias & Letras, 2009), biografia escrita pela poeta e biógrafa Rita Elisa Seda e pelo sociólogo Clóvis Carvalho Britto. “Até a carta de Drummond, poucas eram as referências à poeta nos jornais e na mídia regional e nacional”, escrevem ainda os autores.

A identidade poética

E quais eram as referências da poeta, então com 96 anos, nascida Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, em 1889, na cidade de Goiás – antiga Villa Boa de Goyaz (primeira capital do estado)? “As que existem até hoje”, responde Rita Elisa. “Uma velhinha, doce, e que começou a escrever tardiamente”. Acontece, porém, que nem tudo nessa imagem é verdade.

“Primeiro porque ela começou a escrever na adolescência”, esclarece a pesquisadora. “E segundo que quando ela tinha que ser enérgica ela era.” De fato, há relatos de Cora Coralina sobre um palanque, bradando discursos políticos inflamados, em resposta aos quais a plateia, formada por trabalhadores da terra, levantava suas enxadas em sinal de exultação.

A cena foi descrita aos biógrafos por uma amiga da poeta, dona Inês de Andrade, e aconteceu quando Cora foi candidata a vereadora em Andradina, no interior do estado de São Paulo, aos 52 anos, pela extinta União Democrática Nacional (UDN), partido ativo nos anos de 1940 e 1950.

Quanto à sua vida literária, é verdade que o primeiro livro, o referido Poemas dos Becos de Goiás, foi publicado pela primeira vez quando ela tinha 76 anos – pelas mãos, vale a nota, de José Olympio, fundador da editora de mesmo nome. Porém, se engana também quem pensa que, para ela, o feito teve sabor de sonho realizado no fim da vida.

Cora Coralina viveu até os 96 anos, e pouco antes de sua morte lançara um de seus mais famosos livros, Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha, de 1983. “A trajetória de Cora é de seguidos reinícios”, analisa o sociólogo Clóvis Carvalho Britto. “Ela tinha tudo para dar errado. Tudo na vida dela foi complicado, mas ela superava sempre.”

Vida em goiás

“Eu sou a menina feia/ da ponte da Lapa./ Eu sou Aninha”, escreve Cora Coralina no poema “Minha Cidade”, do livro Poemas dos Becos de Goiás. O trecho vai além de fazer uma mera referência a suas origens e lembranças agridoces, ele – assim como todo o poema e muitos outros – narra sua história, com detalhes e personagens.

No mesmo ano em que Cora nasceu, o pai, Francisco de Paula Lins dos Guimarães Peixoto, sucumbe à gota e à artrose, ambas em estado avançado. É a segunda viuvez da mãe, Jacyntha Luiza do Couto Brandão, que se vê com sua Casa Velha da Ponte da Lapa, onde Cora viveu até os 11 anos, habitada unicamente por mulheres: ela, quatro filhas – duas filhas com o desembargador e outras duas do primeiro casamento –, duas avós e mais três ex-escravas.

A nova realidade da família é de problemas financeiros e Aninha, a mais nova da casa, é a que mais sente o peso de um clima duramente real, pouco afeito a fantasias: “E a casa me cortava: ‘menina inzoneira!’/ Companhia indesejável. (...) Comportamento estreito,/ limitando, estreitando exuberâncias,/ pisando sensibilidades (...) E o medo de falar... E a certeza de estar sempre errando”, escreve em “Minha Infância (Freudiana)”, poema de Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha.

“Minha Cidade”

Embora já atuasse como cronista desde os 16 anos – quando escrevia para o jornal Tribuna Espírita, no Rio de Janeiro, Ana Lins não se diferenciou das outras mocinhas da época no que diz respeito ao início da vida adulta: casou-se – em 1910, com o advogado Cantídio Tolentino de Figueiredo Bretas. Um ano depois se mudou, acompanhando o marido, para o estado de São Paulo, onde viveu durante 45 anos. A primeira cidade foi Jaboticabal. Em 1924, foi para São Paulo. Passados dez anos, o marido morre de pneumonia, e a viúva permanece então algum tempo ainda na capital.

Em 1936 decide mudar-se para Penápolis, para ficar perto da filha Jacyntha, crescida e professora do ginásio estadual da cidade. Em 1941 vai para Andradina, aos 52 anos, e abre uma loja de tecidos, a Casa de Retalhos Borboleta. Finalmente em 1956, “Cora Coralina decidiu que já era hora de atender ao chamado das pedras de sua cidade natal”, escrevem Rita Elisa e Clóvis Britto. “Ela usava muito a metáfora da pedra, seja como obstáculo, mas também a pedra que resiste”, acrescentou Britto à reportagem.

Voz de criança

É nessa volta, quando conseguiu comprar a Casa Velha da Ponte da Lapa, que Cora Coralina abre o “porão” onde tinha guardado as experiências de Aninha – aquela “menina feia/ da ponte da Lapa”, “companhia indesejável”. “Ela tinha criado o pseudônimo Cora Coralina como forma de se libertar e poder ter uma identidade literária”, explica Rita Elisa.

“Mas Aninha sempre ficou dentro dela. Só quando ela retornou à cidade ela abriu esse porão, ou seja, ela começou a desenvolver essa máscara lírica que é a Aninha, por meio da qual colocou todo esse universo no papel.” Segundo Clóvis Britto, há nos poemas de Cora duas vozes narrativas que se complementam: a da própria poeta e de Aninha.

“A primeira é idosa, mas sua obra remete ao passado e tem uma voz de criança”, explica. “Dessa forma, a Ana Lins criou dois personagens que unem as duas pontas da vida: a infância e a velhice.”

O sociólogo ressalta ainda um terceiro aspecto estilístico em Cora: a proximidade com a prosa. O que trazia, segundo o estudioso, muitas das inovações propostas pelo movimento modernista, de 1922 – entre elas, a utilização da linguagem oral, o uso do recurso de palavra, ponto e palavra (como no poema “Semente e Fruto”, onde escreve “Despojada. Apedrejada.”) e, claro, a própria estrutura narrativa, sem rimas ou métricas. “Essas questões todas tornaram sua obra muito complexa para leitores não acostumados com a poesia moderna”, comenta Britto, explicando o reconhecimento tardio da poeta.

“Semente e Fruto”

A narradora de histórias Regina Pessoa, da Cia. Sábias Cenas – que apresentará cinco contações no Sesc Ipiranga
(veja boxe Poemas falados) – cita, como uma das principais características da poesia de Cora Coralina, a liberdade com a qual seus poemas foram construídos.

“Não tem preocupação com rimas”, comenta. O que, segundo ela, os tornam “uma delícia” para serem falados. “E isso para um contador de histórias é maravilhoso”, avalia. “Quando você lê os poemas da Cora, você consegue visualizar o que está acontecendo. Eles são longos, têm muita história.”

Segundo Rita Elisa, o estilo marcado “por um impulso incontrolável” – como a própria Cora define no poema “Cora Coralina, Quem é Você?”, presente em Meu Livro de Cordel – é realmente o que mais chama a atenção de quem se depara com o universo da poeta. “A gente [ela e Clóvis Britto] recebeu muitas mensagens – de escritores, poetas, cronistas, estudantes, interessados em geral – e, principalmente as pessoas que escrevem, contaram que por meio da poesia da Cora eles criaram um jeito diferente de escrever.”

Um dos autores desses e-mails é o professor da Universidade Federal do Amazonas, José Dantas Cyrino Jr., também poeta. “A primeira coisa que se deu comigo quando conheci Cora foi compreender que o tempo da poesia (e do poeta) não é o mesmo tempo da vida cotidiana”, diz o professor.

“Na poesia as coisas surgem, desabrocham, a noite pode vir no meio da manhã, sem sol...” A história de vida da poeta goiana também inspirou Cyrino Jr. a abrir seu próprio “porão”. “Cora foi criança aos 60 anos, foi madura na sua juventude”, avalia. “Essa foi outra coisa que Cora me trouxe. Eu era poeta por dentro, mas tinha um medo inexplicável de me soltar poeta. Ela veio com sua história e sua idade e rompeu com isso.”

Também doceira

Há ainda uma curiosidade sobre Cora Coralina que ajuda muito a entender o seu universo: aquela que se passava na cozinha. “Cora Coralina dizia que a culinária é a mais nobre das artes”, revela Britto. Para a poeta, cozinhar e escrever gozavam de grande intimidade.

Já que, em ambos os casos, a memória era ingrediente importante, transferida seja ao resgatar antigas receitas ou ao contar uma história de infância. Décadas depois de sua morte, os especialistas – tanto das letras quanto do forno e fogão – formam coro para dizer que, de fato, não dá para dissociar a doceira da poeta.

“Não havia contradição nas ocupações da goiana Cora Coralina”, escreve o jornalista gastronômico J. A. Dias Lopes no prefácio do livro Cora Coralina – Doceira e Poeta (Global, 2009). “A autora de Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha (...) também irradiava lirismo puro e saboroso pela doçaria.” Para Britto, suas receitas recuperavam, assim como seus poemas, tradições e costumes. E depois de prontos, seus doces traziam lembranças em caldas, nas fatias de bolos e nas frutas cristalizadas – feitas com os diversos tipos que nascem o ano todo “nos grandes quintais de Goiás”, como relata o sociólogo.

Cora Coralina, Quem é Você?
Sou mulher como outra qualquer.
Venho do século passado
e trago comigo todas as idades.
(...)


Menina Mal Amada
(...)
Daí minha fuga para o enorme quintal onde meus
                                    sentidos foram se aguçando
para as pequenas ocorrências de que não participavam
                                                                 minhas irmãs.
Minhas impressões foram se acumulando lentamente
e eu passei a viver uma vida estranha de mentiras e
                                                                    realidades.

(...)

Nasci antes do Tempo
(...)
Tudo que criei, imaginei e defendi
nunca foi feito.
E eu dizia como ouvia
a moda de consolo:
nasci antes do tempo.

Alguém me retrucou:
você nasceria sempre
antes do seu tempo.
Não entendi e disse Amém.


Semente e Fruto

(...)
Despojada. Apedrejada.
Sozinha e perdida nos caminhos incertos da vida.
E fui caminhando, caminhando...
E me nasceram filhos.
E foram eles, frágeis e pequeninos,
carecendo de cuidados,
crescendo devagarinho.
E foram eles a rocha onde me amparei.
anteparo à tormenta que viera sobre mim.

(...)

Estas Mãos

(...)
Minhas mãos doceiras...
Jamais ociosas.
Fecundas. Imensas e ocupadas.
Mãos laboriosas.
Abertas sempre para dar,
Ajudar, unir e abençoar.
(...)

Fonte dos poemas: Cora Coralina, volume da coleção Melhores Poemas, da Editora Global, com seleção da ensaísta e crítica literária Darcy França Denófrio

Poemas falados

Projeto estreia com Cora Coralina e destaca grandes autores brasileiros

Com o objetivo de propiciar o contato do público com obras de escritores consagrados da literatura brasileira e universal, o projeto Para Ler É Só Começar foi inaugurado, em janeiro, apresentando o universo da poeta goiana Cora Coralina. A programação incluiu intervenções literárias, mediação de leitura e contações de histórias. “A gente ficou um tempão com a Cora na cabeça, quase um ano”, conta Regina Pessoa, da Cia. Sábias Cenas, que apresentou quatro narrações criadas a partir de poemas de Cora – nos dias 8, 15, 22 e 29.

Antiguidades abriu a temporada com a história de um aguardado bolo de fubá que Aninha, voz lírica de Cora Coralina, acabou não comendo. Em seguida veio Estória do Aparelho Azul-pombinho, sobre uma relíquia de família, vinda da China, que não resistiu à passagem do tempo.

A única peça que sobrou foi um prato azul-pombinho, que deu nome à terceira apresentação, e teve também sua história contada. Por último, 4 Poemas da Terra Natal entrelaçou três poesias da autora para mostrar a influência das origens em sua obra.

Todas as apresentações eram precedidas de tópicos da vida de Cora, abordados pelos atores já como parte da narração. “A ideia foi contar a história que está nos poemas”, explica Regina. “Mas falar o poema inteiro, até porque queremos estimular as pessoas a lerem a Cora.” Também fez parte do projeto a performance poético-musical Cora e as Histórias da Casa Velha da Ponte, apresentada nos dias 7, 14 e 21, pela companhia Prana Teatro de Animação.

Outras vozes

Um seleto grupo de mulheres contribuiu valiosamente com a produção da poesia moderna brasileira

Segundo o sociólogo Clóvis Carvalho Britto, autor do livro Cora Coralina: Raízes de Aninha (Ideias & Letras, 2009) – juntamente com a poeta e biógrafa Rita Elisa Seda –, os “poemas-prosas”, como ele define, da goiana Cora Coralina trazem muitas das inovações propostas pelo movimento modernista. 

De acordo ainda com outros especialistas, a autora de Vintém de Cobre – Meias Confissões de Aninha não está sozinha nessa seara. Cada uma a seu modo, e em sua época, outras mulheres também marcaram, e ainda marcam, a poesia moderna brasileira.

No artigo da professora de teoria literária da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Maria Lucia de Barros Camargo, intitulado “Caminhos e Des-caminhos da Subjetividade: a Poesia Contemporânea Escrita por Mulheres” – publicado no periódico Travessia, do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) –, aparecem com destaque nesse contexto a mineira Adélia Prado, autora de, entre outros livros, Bagagem (Record, 2003) e A Duração do Dia (Record, 2010); a paulista Orides Fontela (1840-1998), cuja obra foi compilada no volume Poesia Reunida 1969-1996 (Cosac Naify, 2006); e a carioca Ana Cristina Cesar (1952-1983), que tem publicados, entre outros títulos, Inéditos e Dispersos (IMS, 1998) e A Teus Pés (Ática, 1999).