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A mudança dos modelos produtivos, impulsionada pela globalização e pelas novas tecnologias, impôs grandes desafios para os países. Pautada em imaginação e inovação, a economia criativa surgiu como forma de responder às novas necessidades do cenário mundial, gerando produtos e serviços mais dinâmicos e competitivos, além de alterar a paisagem urbana.

As chamadas cidades criativas são resultado desse processo. O Polo de Cinema de Paulínia, a Flip – Festa Literária Internacional de Paraty – e o museu Tate Modern, em Londres, são exemplos de como projetos baseados em cultura, inovação e conexão entre  espaço, moradores e turistas podem transformar a realidade de determinado lugar. Em artigos inéditos, as economistas Ana Carla Fonseca e Lídia Goldenstein analisam esses fenômenos.

A revolução tecnológica e o surgimento das economias asiáticas como importante polo econômico aprofundaram o processo de globalização provocando uma radical mudança na geografia econômica internacional e no paradigma produtivo.

Ao mesmo tempo em que parte importante da tradicional estrutura manufatureira dos principais países desenvolvidos migrava para a Ásia, para a China em especial, novas indústrias e novas formas de diferenciação e de competitividade emergiam, tornando obsoletos conceitos e paradigmas produtivos herdados de um modelo que tivera seu auge no século 20 e que agora era rapidamente ultrapassado.

A intensidade e velocidade desse processo foram tais que muitos países e cidades sofreram um processo de degeneração perigoso: desemprego e abandono de bairros inteiros pelas indústrias que fecharam ou se transferiram para outras regiões e países.

As fronteiras convencionais entre serviços e manufatura foram se esfumaçando, tornando irreal e irrelevante a divisão entre ambos. Assistiu-se a um processo de integração, com a competitividade e desempenho das empresas e organizações crescentemente determinadas pelos seus investimentos nos ativos baseados no conhecimento: P&D [pesquisa e desenvolvimento], design, software, capital humano e organizacional e marcas. Os gastos em ativos de conhecimentos não científicos, como o design, passam a ser tão críticos quanto gastos em P&D.

Os investimentos das manufaturas em ativos físicos (construções e máquinas) caíram como proporção do PIB e os investimentos em serviços e intangíveis cresceram. No Reino Unido, por exemplo, os investimentos em intangíveis, que eram 40% dos investimentos em tangíveis em 1970, já representavam 130% em 2004.

Diante desse cenário, a necessidade de articular um novo caminho para enfrentar os custos resultantes da ruptura do velho paradigma produtivo fez com que alguns países/cidades promovessem novas estratégias de desenvolvimento. Impôs-se assim uma reflexão sobre novos modelos de políticas públicas.

Foi nesse contexto que um conjunto de setores, denominados de “Economia Criativa”, passou a ser considerado estratégico, graças à sua capacidade de alavancar o conjunto da economia nacional, tornando-a mais inovadora, dinâmica e competitiva. Englobando um complexo de atividades que se alimentam da criatividade e das novas tecnologias, são setores que geram novos produtos e serviços que “transbordam” para outras empresas dentro e fora do setor, atingindo e revigorando inclusive os segmentos mais tradicionais.

Com ampla capacidade de geração de empregos mais qualificados e renda mais elevada, essas atividades passam a ser o novo foco de atenção e de fomento das políticas públicas que buscam se reinventar a partir das novas necessidades impostas pelas transformações no cenário mundial. Eleitos como setores mais inovadores e com maior capacidade de irradiação, destacam-se: arquitetura e design, artes performáticas, artes plásticas, audiovisual, edição e impressão, ensino, informática, games, patrimônio, pesquisa e desenvolvimento e publicidade e propaganda.

Mais ainda, não bastasse o número e a qualidade dos empregos criados, a importância dos setores que compõem o que passou a ser chamado de Economia Criativa está na sua interação com o restante da economia e na sua capacidade de alavancar a modernização e competitividade dos mais diferentes setores. O design, por exemplo, é o mínimo denominador comum de todos os setores: das sandálias de plástico ao carro, é o design que faz a diferença, agrega valor e gera competitividade.

A conclusão, já em prática nos mais diferentes países, inclusive na China, é que política industrial moderna se faz dando suporte e alavancando a criatividade e as novas tecnologias. Ou seja, a atração de montadoras, seja de carros ou de eletrônicos, que durante décadas foi um dos instrumentos mais relevantes de política industrial para gerar crescimento, hoje pode gerar alguns empregos e dar uma pequena ajuda na balança comercial, mas não gera competitividade sistêmica.

Já o apoio aos setores que compõem a Economia Criativa permite a criação de um “caldo de cultura” que transborda para os mais diferentes setores, direta ou indiretamente, ?gerando trabalhadores e consumidores mais sofisticados e com mais renda, empresas mais modernas e uma economia mais competitiva.

Nesse novo cenário, adquiriu enorme relevância o papel das cidades como o espaço privilegiado para que se efetivem as conexões das quais esses setores dependem e no qual se desenvolvem. Denominadas cidades criativas, algumas cidades destacaram-se com equipamentos culturais públicos e privados e políticas de apoio e incentivo, não só aos setores criativos, mas ao acesso da população em geral a um universo mais aberto e novo, enfrentando, assim, as novas ameaças decorrentes das mudanças no cenário internacional e se reposicionando do ponto de vista da sua capacidade de geração de empregos e bem-estar para a população.

Sob esse enfoque, buscando não só a viabilidade econômica estratégica das cidades, mas também as sinergias entre os setores criativos e os mais diferentes setores da economia, eventos tais como o SPFW [São Paulo Fashion Week], o Design São Paulo, SWU [Starts With You Music & Arts Festival], FLIP [Festa Literária Internacional de Paraty], Festival de Paulínia, entre inúmeros outros, deixam de ser vistos como eventos meramente culturais e/ou comerciais e passam a nutrir o caldo de cultura acima referido, fundamental para o desenvolvimento dos setores da Economia Criativa de um país e/ou cidade.

São eventos que além de gerarem empregos e turismo, contribuindo direta e imediatamente para a economia das cidades, geram conexões, experiências, informação e conhecimento, movendo, assim, também os mercados numa visão de longo prazo. Podem ter impactos decisivos em alguns setores da economia (como, por exemplo, o SPFW no setor têxtil) e/ou gerar novas indústrias, como o Festival de Paulínia.

No estado de São Paulo, e na cidade de São Paulo em especial, o conjunto de setores que englobam o que chamamos de Economia Criativa já tem um peso significativo. Segundo metodologia desenvolvida em estudo realizado para a Prefeitura do município, a participação do emprego formal criativo é de 1,87% do total do emprego formal no Brasil, 2,21% na Região Sudeste, 2,46% no Estado de São Paulo e de 3,47% no município de São Paulo.

Comparada com outros setores considerados importantes empregadores, a Economia Criativa destaca-se não só pela sua capacidade de geração de empregos, mas pela qualidade e remuneração desses empregos. Entre 2006 e 2009, a taxa média anual de crescimento do emprego formal no setor chegou a 8,3% no estado de São Paulo e 9,1% no município, enquanto no total da economia chegava a 5,5% no estado e 5,8% na cidade.

Entretanto, se aplicarmos as outras metodologias utilizadas internacionalmente, os números são ainda mais contundentes: pela metodologia utilizada no Reino Unido, a participação do emprego formal criativo é de 5,54% do total do emprego formal no Brasil, 5,45% na Região Sudeste, 5,67% no estado de São Paulo e de 6,39% no município de São Paulo. Como sabemos que existe uma grande informalidade em alguns dos setores considerados, os dados, que já são bastante impactantes, podem ser significativamente mais expressivos. Quanto mais esses setores forem incentivados, mais chances a economia brasileira terá de manter-se competitiva no mundo atual.

Lídia Goldenstein é doutora em Economia, autora do livro Repensando a Dependência (Paz e Terra, 1994), consultora da LGoldenstein Consultoria e faz parte do Conselho do INMOD (Instituto de Moda e Design) e do Conselho de Administração da Nossa Caixa Desenvolvimento – Agência de Fomento do Estado de São Paulo S.A.


“(...) FLIP, Festival de Paulínia, entre inúmeros outros, deixam de ser vistos como eventos meramente culturais e/ou comerciais e passam a nutrir o caldo de cultura (...) fundamental para o desenvolvimento dos setores da Economia Criativa”


Cidades criativas transformações de dentro para fora

por Ana Carla Fonseca

Nos últimos anos, “criatividade” virou palavra de ordem. Indústrias criativas, economia criativa, classe criativa, cidades criativas e tantos outros termos afins. Mas, afinal, por que tanta discussão a respeito de algo que sempre foi relevante para o progresso da sociedade, a competitividade econômica e a qualidade de vida urbana?

Estamos na instável mas fascinante situação de quem tem um pé em cada canoa. A canoa que está indo embora é a do paradigma construído durante a revolução industrial e que tanto afetou a economia, as cidades e nosso modo de pensar. Quem já não ouviu algo como: “Você é pago para fazer, não para pensar”; ou recebeu com certa desconfiança a notícia de que um colega resolvera trabalhar em casa, em vez de no escritório?

Afinal, nos últimos 200 anos as pessoas valiam pelo que produziam – se a tendência é não querer trabalhar, é preciso que o trabalhador esteja sob nossos olhos. Há eco mais presente desse período do que continuarmos falando “mão de obra”? A mão que opera, a mão que trabalha. Tudo o que a pessoa era, pensava, sentia e fazia se resumia ao que sua mão era capaz de produzir.

E assim também nossas cidades foram sendo moldadas como linhas de produção, fragmentadas entre o espaço de trabalho (a fábrica, o escritório ou a loja), o de estudo (a escola) e o de lazer (a praça, a igreja e outros).
Já a canoa que está chegando e que nosso pé ainda tateia é a de um novo paradigma, que tem por centro a criatividade.

E por que ela chega? Porque o mundo mudou. A globalização e as mídias digitais fizeram com que o mundo ficasse menor, muito mais próximo; e que o mundo de cada um de nós ficasse maior, já que acompanhamos, em tempo real, a queda de Kadafi ou o campeonato japonês de beisebol. A economia também mudou.

Os produtos e serviços passaram a ser cada vez mais parecidos (qual a grande diferença entre duas bandeiras de cartão de crédito ou dois detergentes em pó?) e a disputa entre eles se acirrou em escala planetária. Nessa briga, muitas fábricas quebraram e outras escaparam para onde fosse mais barato produzir. Nas cidades sobraram as histórias, que se esvaem pouco a pouco, e os prédios industriais. Da Swift, em São José do Rio Preto, à Santista, no bairro paulistano do Belenzinho; das indústrias Matarazzo, em Presidente Prudente, ao Edifício Prada, em Limeira.

É exatamente nesse contexto que a criatividade surge como diferencial, capaz não apenas de produzir produtos e serviços com propostas novas, mas também de apontar novas vocações para nossas cidades. Os modelos são os mais distintos, já que cada cidade é diferente. Paraty, pérola patrimonial que ficou preservada até a década de 1970, foi redescoberta pelo turismo com a construção da Rio-Santos e revelou uma essência que encantava quem era de fora.

Não demorou muito para que o patrimônio arquitetônico fosse comprado pelos turistas, veranistas e forasteiros que fixavam residência em Paraty. Já o patrimônio imaterial – as festas, festividades, procissões, os ofícios de marinharia, a gastronomia, as tradições – permanecia com a comunidade local, agora reclusa à periferia da cidade.

A Flip – Festa Literária Internacional de Paraty – surgiu para reunir essas realidades cindidas, colocando Paraty, paratienses e turistas em um mesmo contexto e promovendo a reapropriação da cidade por quem é de lá. A festa literária é um fio condutor, tecido ao longo de todo o ano pela Casa Azul, ONG local encarregada da organização da Flip e braço da articulação entre governo, iniciativa privada e sociedade civil.

Paulínia, com uma história completamente distinta, seguiu outro caminho. Sua grande riqueza não é o patrimônio, mas os royalties gerados pela refinaria de petróleo implantada na cidade. Há poucos anos, o governo municipal resolveu criar uma alternativa de desenvolvimento. Para surpresa de muitos, uma cidade na qual nem havia sala de cinema resolveu criar um Polo de Cinema, com equipamentos e infraestrutura de primeiríssima linha.

Feito o investimento físico e oferecidos os incentivos para que as filmagens ocorressem lá, os negócios começaram a movimentar a cidade. Da quituteira que agora serve as refeições às equipes de filmagem, ao motorista que constituiu uma pequena empresa de serviços de transporte, a população começou a depender menos do petróleo.

Como todo processo em construção, há ainda vários desafios. O primeiro deles é capacitação, para que especialmente os jovens venham a ser empregados também em trabalhos qualificados. O segundo é envolver a sociedade civil não apenas na economia do audiovisual, mas na fruição e no consumo de cinema, para que a cidade não seja um local de produção de filmes que não vê.

Flip e Polo de Cinema de Paulínia. Dois modelos bastante distintos, mas profundamente contextualizados. E é exatamente por partirem de dentro para fora que eles são promissores, em termos culturais, econômicos e urbanos. Não há nada menos criativo do que importar um modelo de fora e implementá-lo na cidade, como um corpo estranho que não dialoga com o resto do sistema urbano.

É esse o cuidado que temos de tomar quando organizamos festivais, festas, eventos culturais e construímos equipamentos culturais. Promover o diálogo entre um museu ou centro cultural e seu entorno, desde o início do projeto, é o primeiro passo para seu sucesso. Afinal, é ele que faz com que um projeto cultural seja “da” comunidade e não apenas “na” comunidade.

O museu Tate Modern, em Londres, ocupa desde a década de 1990 o edifício de uma antiga estação de transmissão elétrica. Situado em um bairro com vários problemas, um dos objetivos do espaço cultural era contribuir para a qualidade de vida na região.

O envolvimento da sociedade civil foi visto como tão crucial, ao longo dos anos de implementação do museu, que motivou até mesmo a criação de um cargo específico: Chefe de Relações com a Comunidade. Essa atenção ao equilíbrio entre o apelo aos turistas e o respeito aos residentes locais levou o museu a se tornar o segundo espaço cultural mais visitado de Londres e a ser abraçado pela comunidade do entorno.

Se contextualização e envolvimento da sociedade civil são dois aspectos lapidares de qualquer projeto cultural, seja ele um equipamento cultural ou um festival, uma cidade criativa requer mais do que isso. Em um estudo que desenvolvi junto a 18 autores de 13 países, consolidado no livro Cidades Criativas – Perspectivas (disponível para download gratuito em http://www.garimpodesolucoes.com.br), ficou evidente que uma cidade que se pretende criativa tem três características. Independentemente de sua escala, de seu contexto socioeconômico e de sua história, uma cidade criativa é constituída por inovações, conexões e cultura.

As inovações são soluções para problemas ou antecipações de oportunidades. Em suma, são criatividade posta em prática. Das descobertas nas bancadas de laboratórios à invenção de um telhado feito de garrafas PET, por absoluta falta de outro material, uma cidade criativa é formada por pessoas que estão sempre buscando algo que torne a vida melhor. Cidades criativas vivem em permanente estado de inovação.

As conexões são das mais diversas ordens: entre passado e futuro (uma árvore frondosa precisa de raízes profundas para se sustentar), entre público e privado, entre local e global, entre áreas da cidade. Cada um de nós tem um mapa mental muito reduzido de sua própria cidade. Ele é formado pelos locais nos quais trabalhamos, moramos, nos divertimos; onde nossa família ou nossos amigos moram, onde estudamos ou por onde passamos.

Quando os mapas mentais da população não se encontram, a cidade passa a ser um arquipélago de bairros e não um sistema interconectado. Entender a cidade como cidade requer que cada um de nós expanda seus mapas mentais.

É aí também que entra a cultura. Um dos fatores de maior expansão de mapas mentais são as ofertas culturais. Basta pensar em quantas pessoas nunca haviam ido ao Centro antes da Virada Cultural; ou “descobriram” um bairro ou cidade vizinha, quando participaram de uma festividade.

A cultura caracteriza uma cidade criativa não somente por ser um conjunto de valores e códigos compartilhados ou ainda pelo impacto econômico das manifestações, produções e patrimônio. A cultura também faz com que a cidade seja mais inspiradora, instigante, criativa.    

Na busca por oferecer algo especial, a grande armadilha é fazer o oposto: copiar. Quantas de nossas cidades estão abdicando de suas singularidades e se dedicando a importar tradições, como rodeios e halloween? Essa é uma estratégia de muito curto prazo. O olhar da criatividade não é de fora para dentro, mas de dentro para fora. É essa a lição que temos de aprender. E é nisso que podemos usar a tão festejada criatividade do brasileiro.

Ana Carla Fonseca é economista, doutora em Urbanismo, consultora internacional em cidades criativas e economia criativa e palestrante em 22 países. Organizadora das antologias digitais globais Economia Criativa como Estratégia de Desenvolvimento (2008) e Creative City Perspectives (2009) e autora de Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (Manole, 2006), que recebeu o Prêmio Jabuti em 2007.
 

“Promover o diálogo entre um museu ou centro cultural e seu entorno, desde o início do projeto, é o primeiro passo para seu sucesso. Afinal, é ele que faz com que um projeto cultural seja ‘da’ comunidade e não apenas ‘na’ comunidade”