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Doze

Haverá uma morte, materializada na submissão espessa e definitiva – quase inoportuna – de um cadáver. e este corpo, esta perda escoando pela inércia de suas sinapses, hanni, a justificativa fosforescente intrometendo-se na caligem em que precedem a porcelana daquela alegria ressabiada e a necessária perícia do hábito, esta falta, hanni, será o gume de uma cólica audaz, será a privação consagrada no ronco intrometido do telefone, quando os trâmites daquele lamento desfigurado por um árabe ininteligível para seu desinteresse por línguas revolver a possante carenagem da sua perplexidade, quando do vale do bekaa alguém desvendar numa monocórdia e asmática intercessão o paradeiro de seu homem.

Morrer neste líbano neblinoso, sem a saudade dos seios espicaçados pela tintura de um desejo prematuro, sem o sobressalto do irremediável, sem o manuseio daquelas erosões na certeza, purificadas, alargadas e brunidas pelo medo e pela dor, derramando um apelo de humanidade em seu corpo revoltoso, abandonante.

O coro, hanni, resmungando numa constância de asnos o desaforo daquela morte, e o importante é que alcançaram você, é que um rumor, preocupado com o custo da ligação, lhe informou que, para reaver o falecido, você devia estar em kfar kila dali a três dias, não importavam os seis graus centígrados de um janeiro ressabiado ou a sua vida em terceiro plano. chúcran.

Foram úteis as poucas aulas de árabe que seu pai embirrou em lhe ministrar, porque, graças a elas, você conseguiu averbar uns números e distinguir, naquela agitação de frases, as palavras “morte” e posteriormente “marido”. o resto coube a seu pai e a um tio pescador, que residia nos arredores de sídon. não foi necessária a mobilização de detetives, hanni, nem o estratagema de complexas diligências, bastou uma chamada internacional para desfrutarem de um acordo: havia sim uma morte, materializada na ressurreição daquela língua pigarreada, e era seu anúncio o intuito do primeiro contato.

E não queriam questionar as clareiras no raciocínio ou na narrativa ou mesmo na alucinação daquela novidade: não se deve dissecar a trégua de um assassinato. como a encontraram, hanni, como farejaram o seu vínculo com o corpo, então refugado, ao lado de outros, numa escarpa ao sul do líbano?

Era dia dezoito de março de um mil novecentos e setenta e oito e não podia ser, porque seria um azar espantoso se fosse dezoito de março de setenta e oito, contando o que se passou quatro dias antes, quando duzentas e cinquenta centenas de soldados israelenses decidiram acampar no litani, quando, durante três meses, milhares de palestinos e libaneses foram exterminados naquelas campinas batumadas: marjayoun bocejando numa limosa capa de crimes, qlayaa se espreguiçando na companhia de mortos ensarilhados em penitência e fogo-fátuo.

Aqui geisel reinaugurava o teatro municipal e, durante o anúncio dos três enigmas de turandot, refletia sobre os petiscos e aperitivos para o jantar com jimmy carter, enquanto o são paulo de waldir peres abatia o atlético debaixo de duzentos mil olhos alvinegros na final do campeonato brasileiro, enquanto funcionários maquinavam a greve nas linhas de produção da scania e um hausto de ditadura fermentava punições e estratégias camicases em um reator ultrapassado, enquanto o amoco cadiz despejava duzentas e trinta mil toneladas de petróleo nas ancas francesas, de maneira que o mundo rodopiava normalmente, hanni, de modo que só nos cabia aceitar as coisas como elas eram e programar a próxima ressaca.

E não seria menos arriscado você buscá-lo. qual a sua desculpa? a sua desculpa, hanni, era o respeito aos dez anos de uma cautelosa precaução, de uma convivência em que o esmalte do que denominaram de amor degenerava em uma renúncia silenciosa, entalada entre as insignificantes corrosões do dia, mas vivo, à espera de um distúrbio para se reerguer. de modo que o airbus decolaria de congonhas naquela quinta-feira, hanni, e você estaria nele em tributo a essa memória.

E você não sabe a razão, hanni, mas primeiro a conduzem até damour e, antes de entrever o capacete azul de um soldado das tropas interinas das nações unidas no líbano ou o símbolo das forças armadas libanesas gravado em uma manga de uniforme, em que duas espadas parecem amputar as raízes de um cedro e umas asas conectadas a uma âncora ironizam a disposição deste exército para naufragar na sua história.

Antes, hanni, havia um menino, o losango daquela cara, a sujeira, um grânulo assustado se equilibrando no corpo infantil, escondido em um pijama um pouco curto, a antelucana, a perene, a decisiva dor que se aglutinou na infância da mão afogada no bolso da malha, como se ao escondê-la evitasse tocar a morte, como se ao afogá-la nos meandros daquele ventrículo conseguisse se esquivar de uma infecção, aquele garoto inquieto, hanni, era o cartão de visitas para a infelicidade hostil que você encontraria naquelas terras e para o sofrimento, quase uma obrigação para o povoado. e talvez essa imprudência ao lidar com a história.

Ao inglês respingando uma apressada formação nos fronts internacionais, onde contraiu o costume de se exaltar por muito pouco e de impor um tom quase truculento em tudo o que defendia. sim, hanni, ele descobrira o cadáver e era por isso que vocês dois estavam frente a frente e se empenhavam para aproveitar o vínculo – um corpo – e iniciar o diálogo em meio a toda essa frágil e pardacenta confiança.

Estavam na rusticidade da segurança e isso era agradável, era uma armadilha enodoada por uma convicção fingida, serena, mas havia também o arrebatamento que toda a expectativa causava e talvez fosse melhor desistir dessa cordialidade exploratória e chegar à questão: e agora, que defrontara a testemunha, passava a existir, por consequência, o morto? esperava que o soldado se vangloriasse por haver transportado aquele peso, acudindo, vez ou outra, ao desconforto do volume, que a convidasse para uma caminhada até a esquina, de onde avistariam uma escarpa e um pouco abaixo, acomodado no tronco de uma oliveira, a inconveniência de um pacote.

A decomposição, o egoísmo, a covardia, as armas, a língua, a moeda, o sol, nada seria impedimento para o conforto de sua avidez, a não ser a realidade, hanni. e a verdade era um militar enovelado nos dogmas das patentes, fraco demais, contido demais, indeciso demais, aturdido demais, subserviente demais, inábil demais, ególatra demais – sintetizando: um arquétipo das piadas de caserna das seleções do reader’s digest – para ser capaz de qualquer heroísmo. até que ele confessou: viera pela obrigação de um recado.

O general michel aoun autorizara e ordenara há dois dias a cremação dos restos de joão karam, herói de guerra, condecorado post mortem com a medalha de campanha, com a cruz militar com palma, com a cruz de combate com palma, com a ordem do mérito militar, e suas cinzas foram arremessadas no litani, em rito secreto, ao qual compareceu a senhora malika rahmane. chúcran.

E esquivou-se a qualquer esclarecimento. malika. para você, hanni, era como se uma crosta de adoração se suavizasse com o indício dessa nódoa e lugar nenhum seria longe demais. seu tio a levou, hanni, seu tio e o roteiro premeditado, seu tio e a calma diletante, seu tio e a barganha dos libaneses: a discrição em troca de seu respeito, hanni. e o plano era essa derradeira jornada, ao fim da qual você esbarraria com seu homem, que se tornou uma memória borrifada por este país que você não desejou conhecer.

Então, perto de você, há essa estrangeira, com seus apetites angulosos e um magma ameaçador grunhindo por entre os panos, com as sobrancelhas como duas taturanas chamuscando a impaciência das pálpebras. e alguma coisa soterrada começa a estrangular a sua segurança, hanni, algo insurgente, malika, algo imperioso, agressivo, mordendo a quietude do seu ciúme, hanni, algo indisciplinado, ferrenho, se aproximando da vida por meio daquele útero, era um filho que evoluía, hanni, o morto e seu herdeiro tardio, o herói e a distinção final.

Chúcran. o germe que se apropriava de seu corpo, malika, merecia a paz afiançada pelo pai, então você menciona essa promessa e algo se contrai, enfronhado em uma esperança, cujo alicerce é a benevolência da traída. todavia, hanni, há também o seu interesse, há nessa delicadeza a trapaça do capricho, há seu passado de esterilidade, a saudade aturdida adulterando a lógica de sua decisão, há esse sorriso acotovelando a dúvida rarefeita e quase impertinente, que socorre a frase incinerada pela urgência daquela afinidade: sim, malika, era hora de vocês três seguirem para o brasil.
 

Whisner Fraga é autor dos livros Abismo Poente (Ficções Editora, 2009) e Sol entre Noites (Ficções Editora, 2011), entre outros.