Sesc SP

Unipresença. Talvez seja o melhor termo para definir as muitas moradas da imagem. Em todo canto e a todo o momento, somos capturados pela profusão de cenas que chegam a nossos olhos. Basta entrar no metrô, no shopping, no elevador, no ônibus, no táxi e mesmo em locais menos prováveis para encontrar um receptor acoplado e pronto para cativar a atenção das pessoas. Há tamanhos e formatos de telas para todos os gostos, das que cabem no bolso às mais desejadas do momento: as telas 3D.

Claro, se a oferta existe é porque também há demanda. Mas, afinal, por que a imagem tem seduzido tantos espectadores Será que de fato a sociedade está condicionada à imagem? É possível compreender a força que ela representa no dia a dia.

Para o professor em Teoria da Mídia e Teoria da Cultura do curso de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), Norval Baitello Junior, não resta dúvida de que vivemos diante de uma oferta exacerbada de representações visuais. “Estamos presenciando um momento em que existe a inflação da imagem endógena, ou seja, a imagem que se comunica com o interior do homem, amplia os horizontes da cultura humana e mexe com o interior da imaginação”, explica o especialista.

“Somos seres que têm a capacidade de elaborar imagens endógenas através do sonho ou mesmo em estado de vigília, imaginando algo que existe ou não existe. No entanto, essas imagens endógenas passaram a se projetar no espaço como imagens exógenas, as quais se comunicam somente com o exterior, isto é, agora elas mexem somente com a aparência.”

Norval afirma que a história da arte tem grandes trabalhos com imagens funcionando como expressivos vetores de interiorização, como ocorre com a pintura (veja boxe Revolução na tela), a fotografia, o teatro, a literatura, o cinema, a arquitetura. Outros exemplos inseridos nesse modelo vêm do urbanismo, da televisão e da publicidade. “São imagens que abriram as portas para mundos perceptivos novos, criaram olhares e ampliaram horizontes da cultura humana”, aponta o acadêmico, autor dos livros Era da Iconofagia (Hacker Editores, 2005) e A Serpente, a Maçã e o Holograma (Editora Paulus, 2010). “No entanto, é crescente o processo inflacionário das imagens que fecham portas para o mundo por serem construídas a serviço do vetor de exteriorização, que não têm a interioridade da imaginação.” 

Corpo devorado

Para Baitello, a inflação da imagem se reflete de várias formas na sociedade. Por estar em todos os lugares – dentro de nossas casas, dos nossos aparelhos, e utilizadas amplamente para o lazer, para o sistema de informação, para o entretenimento – a imagem passou a dividir espaços com seres humanos. E, com isso, tem pautado também a nossa existência física e corpórea.

“Estamos, hoje, na era da imagem, em que as combinações dessa imagem são as mais radicais, porque as pessoas passam a se alimentar dela”, explica. De acordo ainda com o professor, a imagem interfere em nossa escolha, hábitos e consumos. Até a nossa alimentação adquire um alto teor imagético. Isto é, aquela refeição que contém uma fraca apresentação estética é menos aceita na sociedade. Ou aquela comida que tem boa apresentação e cores é a mais cara.

“A refeição que investe muito na sua imagem, na sua publicização, acaba sendo mais bem sucedida financeiramente”, exemplifica o especialista. “Nós temos tipos de alimentação até nocivos à saúde, mas são vendidos numa escala grande, porque têm grande percentual de imagem e baixa de alimento.”

O fenômeno de alimentar-se de teor imagético, em tudo, Norval denominou de iconofagia. Mas, para ele, existe um passo mais grave nessa relação: quando as imagens passam a devorar as próprias pessoas. “Em função de construir uma boa imagem social, profissional ou puramente estética, as pessoas vivem uma vida de imagem e deixam se devorar por ela”, alerta o estudioso, que complementa com outro dado intrigante.

“Agora, quando o ser está submetido à imagem corporal, ele desemboca, por exemplo, na anorexia e na bulimia. A imagem já devorou o indivíduo, que perdeu a percepção do próprio corpo, vendo apenas uma imagem artificial de si.” O que evidencia o descompasso do convívio social.

Vilão ou mocinho

Norval faz questão de salientar que não existem apenas aspectos negativos a serem creditados à imagem. “Temos enorme prazer em assistir a um filme, ver belas fotos, exposições, e existe benefício das técnicas da medicina com o uso da imagem. Porém, o que o nosso tempo evidentemente não faz é alertar para os riscos, que são maiores do que os bons serviços”, declara.

O filósofo Vladimir Safatle também não vê a imagem apenas como o vilão da história. Mas ele diz que na distinção moderna entre imaginação e entendimento existe a ideia de que o conhecimento pela imagem é deficitário e imperfeito. “Se pegar os textos do Le Bon [Gustave Le Bon, 1841-1931], um psicólogo social do final do século 19, percebem-se muitas ideias de que as massas são incapazes de pensar, porque elas pensam por imagens”, lembra. 

“A questão tem, portanto, raízes longas, então a primeira coisa é evitar a desqualificação sumária da imagem.” Nesse contexto, Safatle aponta como risco a perda da capacidade de crítica com relação às imagens. Pois haveria um raciocínio de aceitação fascinada e cumplicidade pelo mundo das imagens. “Portanto, transitar entre esses dois polos – entre a crítica e a aceitação da imagem – é ainda desafiador, não conseguimos fazê-lo de maneira adequada.”
 
Existir é estar dentro...

Com toda a exposição e valorização da imagem, outra realidade tem sido forjada. Por exemplo, ser alguém no meio social depende da efetivação de comportamentos e imagens. Os reality shows são alguns dos agentes que reforçam esse tipo de modelo ideal – onde o corpo, o estilo, a vibração mostram como os outros devem ser também. “O reality é a efetivação de um padrão e resultado da sociedade, onde existir é estar dentro da imagem ou participar dela”, afirma o filósofo, identificando nesse contexto um comportamento peculiar. “Neste caso, a pessoa passa ou acha que passa a existir apenas se estiver presa a um olhar.”

A mania de ver, conhecida como voyeurismo, ou a mania de mostrar-se são condições fortes atreladas à sociedade da imagem. Para o cineasta Kiko Goifman, diretor do programa Hiperreal, que vai ao ar pelo SescTV os reality shows, são uma forma de as pessoas retomarem o real perdido. “Esses programas revelam o interesse maior das pessoas pela realidade”, comenta. “Por isso também existe grande quantidade de fotologs, blogs e outras mídias para que as pessoas consigam contar o real da vida delas.”

Cultura e sedução

A formação cultural responde em parte à questão de a sociedade brasileira ter laços estreitos – especificamente com a imagem televisiva. O fato de o país ter saltado do analfabetismo para uma sociedade da imagem dispensaria a alfabetização a rigor. “Nós saltamos do analfabetismo para alfabetismo visual”, salienta Norval. “E, por isso, as imagens têm ainda um poder mais forte no Brasil.”

Já Safatle afirma que a unidade do país foi constituída pela televisão. “A gente vive num país onde a televisão entrou ou muitas vezes penetra antes do estado. Há regiões onde a presença do estado nacional é quase nula, mas a televisão está lá”, explica o filósofo. Segundo ele, pelo tamanho do país e pela complexidade do estado brasileiro, uma “certa unidade brasileira” foi feita pela televisão.

Para Kiko Goifman, é incontestável o papel determinante da TV. A televisão é permeável na sociedade brasileira. Ela é a única entre os meios de comunicação que está em todas as classes sociais. “Em países mais desenvolvidos, a televisão fica em lugares mais discretos da casa, enquanto no Brasil ela ocupa os lugares principais das residências”, diz. Embora a preferência pela TV seja gritante na sociedade brasileira, Goifman acredita que hoje há maior interesse pelo documentário – dada a vontade das pessoas de entender melhor o mundo.

“Talvez uma parte da sociedade não esteja satisfeita com as respostas que a TV tem oferecido”, diz. “Se a gente vive num mundo cada vez mais complexo, então procuramos nos valer de outras mídias para devolver uma resposta mais rápida com relação a esse mundo complexo”.

Se as respostas da TV ainda não são “ideais”, não quer dizer que os diferentes veículos de comunicação se opõem entre si. Segundo o gerente do SescTV, Valter Vicente Sales, as demandas sociais são dinâmicas e, por isso, inclui novas formas de comunicação, como as redes sociais na internet. “É interessante observar que a maior quantidade de veículos e tecnologias de comunicação indica a própria complexidade da sociedade que, em tempos de democracia, exige canais múltiplos para sua manifestação”, comenta. Nesse sentido, Sales também salienta o compromisso do canal mantido pela instituição.

“O SescTV é um canal de cultura onde existe um compromisso com a promoção humana que se dá pelo estímulo ao pensamento interpretativo, criativo e crítico”, afirma. “Para isso, os conteúdos culturais são plenos de possibilidades, porque as artes nos arrancam da conformidade, do cotidiano e nos lançam no mundo de descobertas e questionamentos”.

Aterrador sem ela

Mesmo ante a profusão de imagens do momento em que vivemos, ainda há espaço para as nuances representadas por formas artísticas como a pintura. Segundo o artista plástico Cildo Meireles, o estatuto da imagem na sociedade moderna pode estar chegando a seu ápice. “Agora, a questão sempre cai naquela teoria de Leonardo da Vinci [cientista, engenheiro e pintor italiano, 1452-1519] de que a visão é o sentido mais difícil de atender porque também é a linguagem mais complexa. Então não dá para fugir dessa contingência ideológica e fisiológica dela”, analisa o artista.

Embora admita o poder que as reproduções visuais assumiram na atualidade, o artista afirma ser mais aterrador viver numa sociedade sem elas. “Imagine um vazio de imagens. Acho que as coisas acontecem no âmbito da informação e existe muita informação que não chega pelos olhos, mas ao mesmo tempo entra pela imagem”, diz.

Em uma das obras, apresentada durante a 29ª. Bienal de Arte de São Paulo, Meireles utilizou uma imagem idílica movida por um dínamo à tração humana. Chamado de Abajur, o projeto de certa forma indagava: quem sustenta esse mundo e essa sociedade que permanecem em movimento?

A imagem idílica também é metafórica, porque leva a refletir sobre o que está por trás ou quem de fato sustenta essa imagem sedutora e inebriante. “O projeto procurou captar a relação de trabalho e capital”, explica Cildo. “A imagem, como se estivesse sendo vista de cima de um convés, foi usada para apresentar essa questão, que às vezes é percebida quando se tem outro olhar, outra perspectiva dela.” 

Revolução na tela

Conhecido como um dos artistas mais influentes do século 20, ?Joseph Beuys fez uso da TV para transmitir sua arte para as massas

Com o advento da televisão, as formas de comunicação mudaram muito no mundo. Na década de 1960, quando se popularizou – sobretudo com as telas em cores, a TV revolucionou os meios de transmissão de informações na sociedade. Tanto que, em julho de 1969, uma audiência estimada em 1 bilhão de pessoas acompanhou a caminhada de Neil Armstrong em solo lunar.

Foi nesse período de ascensão do aparelho, entre 1964 e 1986, que o artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) desenvolveu seus principais trabalhos. Cerca de 250 dessas obras – com atenção especial para cartazes, múltiplos e vídeos de performances – foram apresentadas até novembro no Sesc Pompeia. Intitulada Joseph Beuys – A Revolução Somos Nós, a exposição é a maior do artista já realizada no país.

Foi também nos anos de 1960 que Beuys adotou o famoso slogan: Todo homem é um artista. “A partir daí, ele começou não só a praticar ações importantes como a projetar muitos trabalhos, sobretudo em vídeo”, comenta o curador da exposição e professor de arte contemporânea da Academia de Brea, em Milão, Antonio d’Avossa.

Segundo o especialista, as ações de Beuys, levadas para dentro dos estúdios da televisão alemã, se deparam com o mito do conceitualismo, do dadaísmo e da antiarte europeia e americana. Essa invasão proposital da televisão pela linguagem artística de Beuys se deu, na opinião de d’Avossa, porque ele estava totalmente consciente de que aquele veículo levaria sua mensagem não apenas ao público da arte, mas conseguiria transmiti-la a todos os lares. “Beuys estava consciente de que a televisão era um novo meio que estava sendo introduzido nas casas de todas as famílias da Europa e da América, ou seja, um meio de comunicação fundamental para transmitir sua arte”, garante d’Avossa.

Foi também na TV que Beuys “superavaliou” o artista francês Marcel Duchamp (1887-1968), pois, conforme explicou d’Avossa, Marcel tinha uma forma prática estranha de disciplina. Ele se dizia um artista que se colocava dentro de uma posição de indiferença ante a realidade. “Durante a primeira Guerra Mundial, o francês teria ido para Argentina jogar xadrez.

Esse isolamento de Duchamp foi captado por Beuys, que desenvolveu a ação entre silêncio e palavra”, ressaltou Antonio, para concluir: “a ação de Beuys não foi feita apenas na galeria, no museu, mas nos estúdios da TV alemã, porque não há dúvida de que ele entendeu perfeitamente os meios de comunicação. Onde o primeiro meio é a palavra, a voz, isto é, o ruído que se opõe ao silêncio”.