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Mundo animal
Fernando Gonsales é um cartunista paulista, com mais de seis mil tiras publicadas ao longo dos seus 49 anos. Formado em Veterinária e Biologia pela Universidade de São Paulo (USP), agarrou sua grande chance como desenhista profissional quando venceu em 1986 um concurso na categoria tiras – promovido pelo jornal Folha de S.Paulo.
Desde então, tem publicado pelo diário o seu personagem mais famoso, o rato Níquel Náusea, cuja tira é distribuída em outros dez jornais do país. “Tenho feito esse personagem há 25 anos e se tornou um companheiro para mim”, lembra o desenhista, que lançou em setembro no Sesc Vila Mariana o seu décimo livro: Níquel Náusea – A Vaca Foi pro Brejo Atrás do Carro na Frente dos Bois (Editora Devir). Criador também de a barata Fliti, a rata Gatinha, entre outros personagens ?bem-humorados, Gonsales falou à Revista E sobre fascínio pelos animais, a evolução do próprio estilo e o começo no ofício. A seguir, trechos:
Primeiros traços
Comecei a desenhar quando criança, porque toda criança desenha. Mas não botava muita fé que iria trabalhar com desenho. Por isso, fiz o curso normal de Veterinária e Biologia na USP [Universidade de São Paulo]. Quando já estava formado, porém, a Folha de S.Paulo promoveu um concurso. Concorri na categoria tiras e fui selecionado para trabalhar no jornal. A partir daí, passei a desenhar profissionalmente. Eu tinha apenas 25 anos e desenhava de forma completamente amadora.
Tive de pegar o jeito do trabalho como se pega o ônibus andando. Eu desenhava e depois via um monte de imperfeições na tira impressa. Passei por momentos de pressões no jornal, foi um período muito estressante. Por sorte, a Folha deu chance para eu publicar muita coisa ruim [risos]. Houve certa tolerância até eu pegar melhor o jeito. Às vezes, eu e o cartunista Spacca, que também venceu o mesmo concurso, conversávamos sobre uma coisa a melhorar aqui e ali. Então, fui pegando o trabalho no tranco e só me senti seguro depois de alguns anos.
Mas o começo foi difícil porque as outras duas tiras que entravam juntas com a minha na seção, a Alfredinho Canibal [de Ignatz] e Cabarillo Brillo [de Flávio del Carlo] pararam de ser publicadas pelo jornal. Fiquei muito receoso, eu pegava o jornal toda manhã para ver se as minhas tiras continuavam a ser publicadas pela Folha.
Sonho de desenhar
Acho que comecei a desenhar porque era muito introspectivo. A maioria dos desenhistas tem esse traço de personalidade, ou seja, gostam de ficar quietos ou isolados. Isso não é uma regra, pois alguns são muito comunicativos e expansivos. Mas a maioria que conheço conserva essa personalidade. Eu, aliás, era um pouco nerd, usava óculos, mas ainda assim jogava futebol.
Sempre quis desenhar, desde quando estava na faculdade pensava em trabalhar como desenhista. Quando terminei os cursos, tentei inclusive conseguir trabalho para desenhar, porém não deu muito certo. Não dá para ter certeza de que vai trabalhar com desenho até se estabilizar na profissão. Eu já tinha muito mais gosto pelo desenho do que pela veterinária, que considerava como “plano b”. Apesar de tudo, fazia a faculdade por prazer. Achava legal ter uma profissão.
Companheiro de 25 anos
Quando sento para desenhar, não ligo para a forma, eu vou fazendo. Mas levei a influência da veterinária para dentro das tiras, pois sempre gostei de animais. Até hoje leio muitos livros sobre eles, me interesso pelos bichos. O personagem Níquel Náusea, por exemplo, surgiu porque eu queria de fato fazer um rato. Depois veio a ideia do nome dele, que não foi dado em oposição ao Mickey Mouse.
Tenho feito esse personagem há 25 anos, e talvez usar tantos outros animais ajudou a manter a tira. Aprecio muito o Níquel, porque ele se tornou um companheiro para mim. Ainda não reuni nenhum material comemorativo para ele. Existe um projeto, claro, mas está ainda em estudo, porque pretendo dar pelo menos mais uns 25 anos para o Níquel. Assim como o Níquel, a Fliti [uma barata] e outros dos meus personagens têm um “quê” de asquerosos, porque invadem o nosso espaço sem pedir licença [risos].
Desenhar é como pescar
O Níquel sempre teve uma veia humorística, sempre procurei abordar esse lado do personagem. Mas, para um personagem como ele surgir, tem de se trabalhar todo dia porque há meses em que as coisas fluem e tem épocas que as ideias não aparecem tão facilmente. E, se a pessoa não gostar do que faz, não vai obter um trabalho legal porque ele está tão atrelado ao talento quanto ao empenho. Isso é como uma pescaria: se você não jogar a isca e não tiver paciência para fisgar o peixe, então não tem jeito. Se não tiver o trabalho e a paciência, fica mais difícil de conseguir fisgar um peixe bom. Desenhar é o misto dos dois.
As minhas tiras, que são feitas com animais, de alguma forma fazem uma crítica social. Mas não é bem minha intenção, ocorre mais de forma despretensiosa. Os traços dos meus personagens até mudaram um pouco também, assim como ocorre com o trabalho de outros cartunistas. Com a prática da profissão, dá para ir aperfeiçoando as tiras. Mas, isso depende, posso estar numa fase mais esculachada ou mais concisa. O meu trabalho é o dia a dia.
Não tenho projetos mirabolantes, resume-se quase ao trabalho de formiguinha. Faço uma tira aqui, depois outra ali, e assim vai. Por enquanto não penso em parar, porque o trabalho vai bem. Tenho ao todo 6.400 tiras, e como sou um cara organizado, tenho desde a primeira até a última guardada. Muitas delas foram compiladas nos meus dez livros.
Nas bancas
Em casa todos os meus irmãos desenhavam. Eu gostava muito de ler Mafalda, Zé Carioca e os desenhos da Disney. Mas, na minha época, tinha poucos quadrinhos nas bancas, apenas algumas publicações eventuais. Lia mais a revista Cripta [Editora Record], que era de terror. Agora, o quadrinho tem sofrido uma concorrência grande das outras mídias, como a TV a cabo, internet, videogame etc.
Aliás, eu mesmo trabalhei com roteiros em meados de 1995 para o programa TV Colosso, da Rede Globo. O Angeli, Laerte, Glauco e outros cartunistas também participaram do projeto. Foi uma experiência estranha, até porque não estava acostumado com a linguagem televisiva. E tínhamos um volume grande de trabalho, porque eram duas horas de programas diários intercaladas com desenhos animados.
Com a oferta de outras mídias, acho que a leitura foi prejudicada. E também tem o fato de as bancas estarem lotadas de outras coisas que não sejam quadrinhos; basta ver como a banca parece uma floresta. A banca ficou só com as revistas gráficas, e as tiragens dos quadrinhos estão menores, o que passou a encarecê-los. A época dos quadrinhos nas bancas passou e não acredito que volte.
Quanto ao mercado para o cartunista também continua muito fechado, mas hoje existe a opção da internet. Qualquer pessoa pode produzir e colocar seu trabalho na rede. Apesar desse contexto, acredito particularmente que o trabalho de desenhista é mais de sentar e desenhar mesmo.
"O desenho é como uma pescaria: se você não jogar a isca ?e não tiver paciência, fica mais difícil de fisgar um peixe bom"