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À flor da pele

Filho dos negros alforriados Guilherme da Cruz e Carolina Eva da Conceição, João da Cruz, nascido em Florianópolis, Santa Catarina – então chamada de Nossa Senhora do Desterro, em 1861, desde pequeno recebeu uma educação refinada. O ex-senhor, o Marechal Guilherme Xavier de Sousa, o batizou com o nome da família, fazendo valer “uma prática comum no regime da escravidão”, informa o escritor Godofredo de Oliveira Neto, autor de Cruz e Sousa – O Poeta Alforriado (Garamond, 2010). O marechal e sua esposa, dona Clara Angélica, não tinham filhos.

Talvez num exercício compensatório, o casal encarregou-se de proteger e cuidar da educação de João. Assim, o menino aprendeu, entre outras matérias, francês, latim e grego.

Os bons tratos da infância, no entanto, não garantiram um adulto satisfeito e cordato. Ao contrário, a natureza do poeta era inquieta. Sua personalidade, segundo Oliveira Neto, “se ressentiu da repartição amorosa: de um lado os pais biológicos e de outro o conforto material e a afeição dos protetores”. Essa dualidade marcou a vida de Cruz e Sousa – uma existência parte na casa grande e parte na senzala, de acordo com a análise exposta no livro de Oliveira Neto.

“Ele era um inconformista”, complementa o escritor em entrevista à Revista E. “Não se conformava com a condição do negro mesmo pós-abolição da escravatura [fato ocorrido em 1888]. Ele gritava aos quatro ventos que o racismo continuava. Isso naturalmente era uma coisa incômoda.”

Mas não era essa a única inquietude de Cruz e Sousa. Esteticamente, o escritor também discordou da produção poética vigente e considerada de boa qualidade na época, ou seja, o parnasianismo de Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira. Em vez disso, abraçou o simbolismo dos franceses Charles Baudelaire e Stéphane Mallarmé – “figuras de cabeceira” do brasileiro (juntamente com o norte-americano Edgar Allan Poe).

A subjetividade no tratamento dos temas também ia contra as propostas realistas de Machado de Assis. Em outras palavras, Cruz e Sousa comprou todas as boas brigas de seu tempo. “Ele recebeu muitas críticas por não comungar a mesma teoria estética em voga na época”, informa Oliveira Neto. “Ou seja, era excluído por ser negro e lutar por sua raça e era excluído esteticamente.”

Para o cineasta Sylvio Back, diretor de Cruz e Sousa – O Po-eta do Desterro (1999) (veja boxe O poeta na tela), “os emba-tes para sobreviver” afetaram profundamente sua produção, “tornando-a de lin-gua-gem e ideologia absolutamente negras”. “A África tinge-lhe a alma, irremedi-avelmente, sem jamais abandoná-lo, como homem e artista”, afirma Back.

“Cruz e Sousa jamais descola o verso e a prosa do seu entorno social, das suas origens étnicas. É só atentar para o antológico Escravocratas [poema da obra O Livro Derradeiro]: ‘(...) escra-vocratas eu quero castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!’.”

A ida para o Rio de Janeiro

Em 1889, cinco anos depois de lançar o primeiro livro, Julieta dos Santos, Cruz e Sousa mudou-se para o Rio de Janeiro – um ano depois da abolição da escravatura. Embora a tentativa fosse se afastar de situações como a que viveu em 1883, quando foi recusado como promotor do município de Laguna por ser negro, a então capital do Império não se mostrou menos preconceituosa.

Entre as passagens de discriminação explícita da qual foi vítima, está a humilhação sofrida pelo Visconde de Taunay – ex-presidente da província Nossa Senhora do Desterro, em residência no Rio, e que fez o poeta esperar do lado de fora de sua casa enquanto lia – se é que lia – uma carta de recomendação de políticos catarinenses trazida pelo recém-chegado. “As portas não se abriram assim, de uma hora para outra”, comenta Godofredo de Oliveira Neto.

Na realidade, Cruz e Sousa teve acesso a pouco mais que uma fresta. A intelectualidade carioca, de seu lado, tratou de reproduzir o preconceito na análise de sua produção literária. Em seu livro, Oliveira Neto narra uma passagem. “Arthur Azevedo, já conhecido teatrólogo maranhense com entrada nas rodas intelectuais do Rio de Janeiro – foi grande divulgador da obra de Olavo Bilac em sua coluna no Diário de Notícias do Rio, publicou um soneto de Cruz e Sousa com comentários pejorativos e irônicos”, escreve.

O autor lembra que outro grande nome das letras do Rio de Janeiro foi pouco amigável com o poeta: Machado de Assis, que sequer foi ao pobre e dramático enterro do colega. “Havia também o fato de que Cruz e Sousa não era do Rio de Janeiro, isso é uma coisa a ser levantada”, comenta Oliveira Neto. “O Machado também não lutou para que ele entrasse na Academia Brasileira de Letras.”

Mesmo com todos os ventos soprando contrariamente, Cruz e Sousa fixa moradia e começa a batalhar espaço no Rio de Janeiro, publicando em 1893, dois livros-chave de sua bibliografia: o “magistral” Broqueis, como define Sylvio Back, volume de poesias considerado fundamental para o simbolismo brasileiro, e o livro de prosa Missal. Back ressalta o feito: “Um jornalista negro e poeta, apenas conhecido por suas esparsas colaborações em jornais cariocas, vindo da pro-vinciana Desterro, põe nas li-vrarias dois títulos, um atrás do outro, isso num cenário li-terá-rio em que dezenas de jornalistas, escritores e poetas imploram para serem editados”.

E também credita a resistência da crítica e de outros autores à falta de capacidade para entender o gênio que ali se mostrava, vindo do Sul. “Seus contemporâneos não con-seguem decodificar aquela poesia erótica, noturna e telú-rica jamais escrita no país e que jamais seria escrita depois”, analisa o cineasta. “Não é à toa que vários exegetas da literatura brasileira (Mário de Andrade, Otto Maria Carpeaux) consideram a po-esia de Cruz e Sousa como aquela que mais bem sinaliza todo o modernismo.”

“Febril atividade”

A vida particular de Cruz e Sousa não é menos turbulenta que sua relação com a crítica. Em 1896, mesmo ano em que nasceu seu segundo filho, Guilherme, tem início um drama que o seguiria até o fim da vida: a loucura da mulher, Gavita. “A primeira crise de Gavita foi genialmente mostrada em versos no [poema] Balada de Loucos [veja quadros com poemas de Cruz e Sousa], que está no livro Evocações”, comenta Godofredo de Oliveira Neto. “Em várias cartas enviadas a amigos, nota-se o desespero de Cruz e Sousa. Ele pede ajuda, orientação e dinheiro.”

Os infortúnios parecem não cessar. No mesmo ano de 1896, morre o pai do poeta. “Ele sofre e escreve páginas pungentes sobre o ‘operário humilde da terra’, como se pode ler em Abrindo Féretros [veja quadros com poemas de Cruz e Sousa], do livro Evocações”, informa o biógrafo. Na mesma época, a esposa é internada em um hospício, onde fica por seis meses. No ano seguinte, nasce Rinaldo, o terceiro filho do casal. Paralelamente, a situação financeira da família piora. “As cartas novamente são como súplicas, as respostas quase sempre negativas”, explica Oliveira Neto.

Em 1897, Cruz e Sousa morre de tuberculose, aos 36 anos, deixando, nas palavras de Sylvio Back, uma obra “com-pleta e fechada, fruto de uma febril atividade mesmo tratando da mulher enlouquecida, às voltas com a miséria e a doença, três filhos para sus-tentar.”

Abrindo Féretros
(de Evocações, 1897)


O que importa a Vida e o que importa a Morte, obscuro velhinho que te foste, operário humilde da terra, que levantaste as torres das igrejas e os tetos das casas, que fundaste os alicerces delas sobre a pedra e areia como os teus únicos Sonhos (...).

A tua figura paternal, que a condição ínfima das frívolas categorias sociais obumbrava profundamente na terra, tinha para mim o encanto mítico de vetusto deus dalguma ilha abandonada em regiões, longe, vivendo resignado, paciente, sem queixas, na iluminação teatral flagrante e acabrunhadora de modernas e autoritárias Civilizações, como o legítimo representante dos seres humanos (...).

Balada de Loucos
(de Evocações, 1897)


(...) E a louca lúgubres litanias rezava sempre, soluços sem o limitado do descritível – dor primeira do primeiro ser desconhecido, originalidade inconsciente de um dilaceramento infinitamente infinito.

Eu sentia, nos lancinantes nirvanescimentos daquela dor louca, arrepios nervosos de transcendentalismos imortais!

O luar dava-me a impressão difusa e dormente de um estagnado lago sulfurescente, onde eu e ela, abraçados na suprema loucura, ela na loucura do Real, eu na loucura do Sonho, que a Dor Quint’essenciava mais, fôssemos boiando, boiando, sem rumos imaginados, interminamente, sem jamais a prisão do esqueleto humano dos organismos – almas unidas, juntas, só almas vogoando, almas, só almas gemendo, almas, só almas sentindo, desmolecularizadamente...

E a loucura rezava e soluçava baixinho rezas bárbaras.

Um evento erradio, nostálgico, como primitivos sentimentos que foram, soprava calafrios nas suas velhas guslas.

De vez em quando, sobre a lua passava uma nuvem densa como a agitação de um sudário, a sombra da asa de uma águia guerreira, o luto das gerações.

Escravocratas
(de O Livro Derradeiro – publicação póstuma, 1945)


Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
Manhosos, agachados – bem como um crocodilo,
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
Na pose bestial dum cágado tranquilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
Ardentes do olhar – formando uma vergasta
Dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
E vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário –
Da branca consciência – o rútilo sacrário
No tímpano do ouvido – audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
Vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
Castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

Antífona
(Broqueis, 1893)


Ó Formas alvas, brancas, Formas claras,
De luares, de noves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...

Formas do Amor, constelarmente puras
De Virgens e de Santas vaporosas...
Brilhos errantes, mádidas frescuras
E dolência de lírios e de rosas...

Indefiníveis músicas supremas,
Harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, trêmulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...

Visões, salmos e cânticos serenos,
Surdinas de órgãos flébeis, soluçantes...
Dormências de volúpicos venenos
Sutis e suaves, mórbidos, radiantes...

O poeta na tela

SescTV exibe filme de Sylvio Back sobre Cruz e Sousa

Nos dias 12, 19 e 26 de novembro, o canal SescTV exibiu, sempre às 22h, como parte do Ciclo de Cinema Negro, uma seleção de títulos que abordam diversos aspectos da cultura negra. Um dos destaques foi o longa de Sylvio Back Cruz e Sousa – O Poeta do Desterro (1999), uma cinebiografia da vida, obra e morte do poeta catarinense considerado um dos maiores nomes da literatura nacional.

“Tudo tem a ver como os poemas, textos e cartas que fruem e se fazem voz, epiderme, movimento, tato e ‘olfato’ fotográficos, através da linguagem desviante encontrada para o filme”, diz o diretor. “Ainda que o passado esteja ali, cronologizado, a ‘estória’, narrada de forma tortuosa e elíptica, os cenários, a luz e os personagens se embaralham o tempo todo.”

O filme de Back não se preocupa em contar linearmente a história do poeta. Elementos importantes da vida do “biografado” – o amor pela mulher Gavita, o constante diálogo com as musas que o inspiram o tempo todo, a revolta contra um Brasil não mais escravocrata, mas extremamente preconceituoso, os amigos, a doença – encarregam-se de emoldurar o personagem, dando uma ideia mais poética do que necessariamente real sobre quem foi Cruz e Sousa.

No papel-título, o ator Kadu Carneiro vive o personagem e também declama poesias o tempo todo, por meio das quais se dão os diálogos (tanto de Cruz e Sousa quanto, por vezes, de Gavita e dos amigos).