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Cresce o cerco contra o tabagismo

por Carlos Juliano Barros

Em setembro do ano passado, o prefeito de Nova York anunciou uma ideia que deixou os fumantes da maior cidade dos Estados Unidos de cabelo em pé. Michael Bloomberg, o bilionário fundador da megaempresa de comunicação batizada com seu sobrenome, escreveu mais um capítulo de sua guerra particular contra o tabagismo ao manifestar a intenção de impedir o consumo de cigarros nos parques da principal metrópole americana. Para se ter noção de quão sério o prefeito estava falando, ele já doou cerca de US$ 375 milhões de sua fortuna pessoal a programas de saúde em todo o mundo. Se a polêmica medida realmente vingar, os nova-yorkinos – que já estão proibidos de fumar em recintos coletivos fechados, como restaurantes e escritórios – só terão permissão para satisfazer a necessidade de nicotina nas ruas, nas calçadas ou no conforto de seus lares. E, se insistirem em acender um cigarro no interior dos parques, estarão sujeitos ao pagamento de uma multa de até US$ 50.

Esse verdadeiro cerco ao tabaco não é, por assim dizer, apenas um mea culpa dos americanos, que, ao longo do século 20, colocaram até seus astros de cinema em cena para estimular o consumo do fumo, alavancando exponencialmente o lucro das empresas desse segmento. Muito pelo contrário: há pelo menos uma década, o enfrentamento ao tabagismo vem crescendo de forma acelerada em todo o planeta, e o Brasil tem bastante importância nesse processo. Isso porque nossa diplomacia teve a missão de capitanear as acaloradas discussões que, ao término de quatro anos, culminaram com a aprovação, em 2003, da chamada Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco da Organização Mundial da Saúde (OMS) – um conjunto de metas e diretrizes que tem como objetivo reduzir a produção e o consumo dessa substância no mundo inteiro (ver texto abaixo). “O Brasil presidiu todo o processo de negociação exatamente porque era um país em desenvolvimento, produtor de fumo, mas que estava avançando na política de controle do tabaco”, afirma Tânia Cavalcante, médica do Instituto Nacional de Câncer (Inca), órgão vinculado ao Ministério da Saúde, que coordena a implementação da convenção-quadro no país.

Definitivamente, a preocupação da OMS não é injustificada. De acordo com estimativas da própria organização, pelo menos 5 milhões de pessoas morrem anualmente por conta de doenças decorrentes do tabagismo – número que pode crescer 60% até 2030 se não houver uma redução drástica da demanda em escala global. Além disso, de cada dez fumantes, oito vivem em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Por essas razões, o tabagismo hoje é considerado uma verdadeira epidemia que, assim como a cólera ou a malária, vitima principalmente as populações de baixa renda.

Por liderar os debates que levaram à aprovação da convenção-quadro, o Brasil foi um dos primeiros países a aderir ao tratado, ainda em 2003. Porém, curiosamente, o documento só foi ratificado pelo Senado – ou seja, passou a valer de fato – dois anos depois. Essa demora toda tem raízes em uma queda de braço que está longe de ser superada. De um lado, encontram-se aqueles que sustentam a bandeira das crescentes restrições ao cigarro como uma necessária política de saúde pública. Na contramão, contando com o lobby das indústrias tabagistas, com destaque para a Souza Cruz e a Philip Morris, estão os que enxergam nas lavouras de fumo uma valiosa fonte de divisas para o país.

O Brasil concentra a segunda maior produção de tabaco do mundo, atrás apenas da China, mas é o principal exportador – cerca de 85% das folhas cultivadas em nossos campos são vendidas no mercado externo. As plantações estão concentradas principalmente no estado do Rio Grande do Sul, mas também se espalham por Paraná e Santa Catarina, envolvendo mais de 200 mil famílias de agricultores. “Em 2009, o setor todo movimentou R$ 17,1 bilhões e pagou quase R$ 8,5 bilhões em impostos, sem considerar a contribuição para outras atividades econômicas, como o comércio”, declara Romeu Schneider, presidente da Associação dos Fumicultores do Brasil (Afubra). Como nem poderia deixar de ser, essa inegável pujança econômica do segmento influencia diretamente as disputas que se arrastam na Justiça e no Congresso Nacional, espaços em que as discussões sobre as restrições ao cigarro crescem a cada dia.

Batalha legal

A verdadeira cruzada contra o tabagismo no Brasil ganhou fôlego redobrado com a criação da lei estadual que passou a vigorar a partir de agosto de 2009 em São Paulo, proibindo o ato de fumar em qualquer lugar fechado. “Esse foi o grande marco recente, uma lei que está de acordo com as evidências científicas e com as diretrizes da convenção-quadro”, analisa Mônica Andreis, vice-diretora da ONG Aliança de Controle do Tabagismo (ACT). Uma das principais preocupações dos defensores da chamada “lei antifumo” diz respeito à saúde dos profissionais que trabalham no interior de bares e casas noturnas – e que, antes da proibição, ficavam expostos a níveis de fumaça extremamente nocivos. Em artigo publicado no jornal “Folha de S. Paulo” em julho do ano passado, o ex-secretário estadual de Saúde Luiz Roberto Barradas, falecido naquele mesmo mês, comemorou o primeiro aniversário da lei com dados bastante contundentes. “Um estudo realizado pelo Instituto do Coração em cerca de 700 estabelecimentos do estado apontou redução entre 68% e 73,5% nos níveis de monóxido de carbono dos ambientes fechados, conforme o tipo de local. Já a queda da contaminação no organismo de trabalhadores não fumantes chegou a 52,6%”, escreveu.

Pegando carona na experiência paulista, outras unidades da federação também revisaram as leis que tratam do consumo de cigarros em ambientes fechados. Rio de Janeiro e Paraná, por exemplo, seguiram a mesma linha de proibição total. Porém, as assembleias de outros estados, como Santa Catarina e Minas Gerais, aprovaram emendas para que fossem permitidos os chamados “fumódromos” no interior de bares e restaurantes. Na verdade, já existe uma lei federal em vigor (9.294/96) que trata desse assunto em âmbito nacional. Aliás, ela prevê a possibilidade de reservar áreas específicas para o consumo de tabaco em locais fechados – o que levou as empresas tabagistas a questionar a constitucionalidade da legislação paulista no Supremo Tribunal Federal (STF). Até agora, no entanto, a corte não se pronunciou sobre o caso. “Segundo a interpretação das empresas, a Constituição não permite que leis estaduais sejam mais restritivas que a federal. Porém, ao assinar a convenção-quadro, o Estado brasileiro assumiu a implementação desse tratado como obrigação legal. Assim, quem está na ilegalidade é a atual lei federal”, argumenta Tânia Cavalcante, do Inca. Procuradas insistentemente, nem a Souza Cruz nem a Philip Morris quiseram se manifestar sobre o assunto.

Para tentar resolver definitivamente o impasse, tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 315/08, de autoria do ex-senador e atual governador do Acre, Tião Viana (PT), com o objetivo de estender a todo o país a proibição de fumar em lugares coletivos fechados. Só que há um longo caminho pela frente, já que o PL ainda precisa ser aprovado em algumas comissões do Senado para depois ser remetido à Câmara. E o jogo político não termina aí: para dividir ainda mais as opiniões, o senador Romero Jucá (PMDB-RR) apresentou, também em 2008, um projeto de lei alternativo para amenizar as proibições – manobra encarada pelos defensores da restrição ao tabaco como lobby do setor tabagista.

Se o PL do ex-senador Tião Viana chegar de fato à Câmara, “vamos fazer de tudo para aprová-lo”, promete o deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), vice-presidente da Frente Parlamentar pelo Controle do Tabaco, lançada em maio de 2010, com o objetivo de “acompanhar e fiscalizar o que o governo vem fazendo para cumprir a convenção-quadro”, complementa o parlamentar. Segundo a própria frente, quase 150 proposições relacionadas ao controle do cigarro repousam atualmente nos armários do Congresso. Algumas são extremamente polêmicas e de aprovação bastante improvável, como a que obriga as indústrias tabagistas a indenizar o Sistema Único de Saúde (SUS) em virtude dos gastos com o tratamento de fumantes. Já outras estão amplamente respaldadas pela convenção-quadro, como o PL 5.823/01, de autoria do próprio Hauly, que pretende restringir a publicidade de cigarros até mesmo nos postos de venda. “Tão importante quanto proibir o consumo em lugares fechados é tirar das padarias e dos bares aquele display do balcão que oferta chocolates, chicletes e também o cigarro, chamando a atenção principalmente das crianças”, afirma o deputado. É o que já acontece no Canadá – país tido como modelo de controle do tabagismo –, onde os cigarros ficam “invisíveis” para os não fumantes.

Desestímulo

Por sinal, asfixiar a publicidade de cigarros é um dos pilares da convenção-quadro. No Brasil, as restrições já valem desde 2000, três anos antes da aprovação do tratado da OMS. Com a lei federal 10.167/00, as indústrias tabagistas foram proibidas de fazer comerciais nos meios de comunicação e de patrocinar eventos culturais e esportivos. No ano seguinte, os maços passaram a estampar as famigeradas imagens de advertência no verso das embalagens. Só para efeito de comparação, no Uruguai esses avisos ocupam 80% das caixinhas de cigarros.

Há até quem duvide da eficácia dessas medidas, mas estudos mostram que elas parecem, sim, dar resultado. De acordo com a Pesquisa Especial de Tabagismo (PETab), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009, o número de fumantes no Brasil caiu praticamente pela metade nos últimos 20 anos. Hoje, cerca de 17% da população com mais de 15 anos – um contingente de 25 milhões de pessoas – consome algum derivado de tabaco. E pelo menos 65% dos fumantes já pensaram em abandonar o vício justamente por conta das advertências.

O Brasil também foi o primeiro país do mundo a abolir a utilização dos chamados “descritores” – as categorias que hierarquizavam os modelos de acordo com seu potencial de risco. “Quando alguém faz uso de um cigarro considerado light, acaba fumando em maior quantidade e tragando de maneira mais intensa para absorver a mesma quantidade de nicotina. Portanto, os descritores não funcionavam”, explica Mônica, da ACT. Por outro lado, complementa ela, essa proibição não teve tanta eficácia assim, já que as empresas passaram a se comunicar com seu público-alvo a partir das cores das embalagens, que acabam tendo a mesma função.

Indiscutivelmente, porém, a principal medida para desestimular o consumo do tabaco é mexer no bolso dos fumantes. No Brasil, o preço de um maço chega a ser quatro vezes menor se comparado ao de países como a Inglaterra. Em maio de 2009, o governo até aumentou a carga tributária que incide sobre os produtos derivados de tabaco. Mesmo assim, segundo um estudo do economista Roberto Iglesias, consultor da ACT e pesquisador do Banco Mundial, os impostos representam 60% do preço do cigarro no país – índice inferior ao verificado nos vizinhos Argentina, Chile e Uruguai. “Acho que essa indústria ainda paga pouco. Existe espaço para aumentar a carga tributária”, acrescenta o deputado Luiz Carlos Hauly. Na avaliação das empresas, tornar o maço mais caro alimenta o contrabando – hoje, estima-se que existam pelo menos 360 marcas ilegais, que respondem por quase um terço do mercado brasileiro. “Isso, contudo, não é necessariamente verdade. Há países que praticam um preço alto e que não tiveram aumento do contrabando, que está associado a outros fatores, como corrupção e fiscalização nas fronteiras”, rebate Mônica.

Substituição gradativa

“Se a convenção-quadro for adotada em sua plenitude, isso significa que menos pessoas vão fumar. Os países que produzem e exportam tabaco terão sérios problemas para vender o produto”, explica Adoniram Peraci, secretário da Agricultura Familiar do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). Hoje, o Brasil colhe anualmente quase 1 milhão de toneladas de fumo em folha, mas apenas 15% são absorvidos pela indústria instalada no país. Antevendo os problemas que os fumicultores enfrentarão com a drástica redução do consumo em nível internacional esperada pela OMS para os próximos anos, o MDA criou o Programa de Diversificação em Áreas Cultivadas com Tabaco.

A ideia do governo é estimular os agricultores familiares a substituir gradativamente o plantio de fumo por outras atividades agrícolas. Apesar de a iniciativa ter sido oficialmente lançada no final de 2006, até agora, segundo o próprio MDA, foram investidos tímidos R$ 15 milhões – montante gasto basicamente em capacitação e assistência técnica. Na avaliação de Romeu Schneider, da Afubra, “o trabalho que o MDA está fazendo é louvável, necessário, mas o resultado prático até o presente momento é quase nulo”. As razões dessa ineficácia são indicadas por ele: “Qual é a cultura que dá o mesmo rendimento numa área tão pequena, num terreno acidentado, num lugar de difícil acesso, com o produtor morando a mil quilômetros de distância da indústria?”

Sem sombra de dúvida, esse processo de mudança não é nada simples. Em primeiro lugar, existem as dificuldades de as famílias de agricultores abandonarem uma atividade com a qual estão habituadas a lidar há várias gerações. Além disso, a relação dos produtores com as indústrias tabagistas se dá mediante o chamado “sistema de integração”, que oferece mercado garantido ao fumicultor. “Ele recebe os insumos, vende o seu produto e a indústria paga o frete da propriedade dele até o local da venda. Não existe nenhuma outra cultura com estrutura organizacional tão bem alicerçada como a do tabaco”, explica Schneider.

Apesar da defesa do sistema de integração feita pelo presidente da Afubra, muitos fumicultores se queixam das obrigações – tidas como abusivas – previstas nos contratos celebrados com as indústrias, sem falar ainda nos problemas de saúde decorrentes da manipulação de agrotóxicos. As reclamações são feitas principalmente pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar da Região Sul (Fetraf-Sul), outra organização representativa dos fumicultores. As críticas feitas pela entidade ao sistema de integração são endossadas pelo secretário da Agricultura Familiar do MDA. “Hoje o produtor enfrenta uma sobrejornada de trabalho. E, não raramente, ele precisa de uma estufa ultramoderna para secar as folhas de fumo e acaba se endividando. Toda a renda que ele recebe, então, vai para pagar essa corrida tecnológica”, ressalva Peraci. “Reconhecemos que o modelo de integração é importante. Nesse sistema, o fumicultor consegue dar vazão a seus produtos. Ele tem, no entanto, pouco espaço para sair dessa relação. É preciso regulá-la melhor”, completa.

“Ao longo da história, a indústria tabagista saiu dos EUA para o Brasil. E a tendência é que ela migre para a África, por conta do baixo custo de produção e de mão de obra. Entretanto, quem vai ficar com os problemas de saúde e das dívidas dos agricultores é o governo”, alerta Peraci. Se por um lado o Planalto parece ter se dado conta da necessidade de desestimular o cultivo do fumo e gerar alternativas às famílias produtoras, por outro continua alimentando essa atividade, que parece estar mesmo com os dias contados. Somente em 2009, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) desembolsou R$ 93 milhões em financiamentos para a agroindústria do fumo. Paradoxos de uma novela que ainda vai dar o que falar.

 


O que é a convenção-quadro?

A Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco foi lançada em 2003 pela Organização Mundial da Saúde (OMS). “É o primeiro tratado internacional de saúde pública da história – uma prova de que o problema do tabagismo é reconhecido como um dos mais graves. Ele é considerado a principal causa de morte evitável no planeta”, explica a psicóloga Mônica Andreis, vice-diretora da ONG Aliança de Controle do Tabagismo (ACT). Atualmente, 172 nações são signatárias desse documento. Periodicamente, os representantes dos países que se comprometeram com a convenção-quadro se reúnem em rodadas de negociação a fim de discutir ações concretas que viabilizem as diretrizes contidas nos 38 artigos do tratado. O último encontro aconteceu no Uruguai, em novembro do ano passado. Basicamente, o texto tem por objetivo sensibilizar governos e entidades da sociedade civil para que adotem medidas destinadas a reduzir a oferta e o consumo de tabaco. Elas podem ser resumidas em seis ações principais, indicadas pela sigla Mpower (em inglês):

Monitor: Monitorar as políticas de prevenção;
Protect: Proteger as pessoas da fumaça dos cigarros;
Offer: Oferecer auxílio para quem deseja parar de fumar;
Warn: Avisar sobre os prejuízos à saúde causados pelo tabaco;
Enforce: Impor e fazer cumprir proibições à publicidade e à propaganda;
Raise: Aumentar a carga tributária que incide sobre os derivados de tabaco.