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Entram em cena os robôs cirurgiões

por Lúcia Nascimento

Exageros à parte, é impossível pensar em medicina, hoje em dia, sem falar das tecnologias médicas, que vão de um simples estetoscópio às mais modernas cirurgias realizadas por robôs. E, felizmente, o Brasil começa a fazer parte dessa revolução no modo de cuidar da saúde – não apenas como importador de tecnologias, mas também como produtor, ainda que incipiente. No final do ano passado, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou um relatório em que o país desponta por ter a segunda maior receita, entre as nações em desenvolvimento, relacionada à comercialização de tecnologias médicas – que também incluem avanços no campo da odontologia. Em 2009, entraram por essa via no Brasil US$ 2,6 bilhões, contra US$ 6,16 bilhões auferidos pela China, que está no topo do ranking dos emergentes – ambos ainda muito longe dos países desenvolvidos, como os Estados Unidos, que lideram em termos globais. Lá são produzidos os principais aparelhos usados mundo afora, e a receita registrada em 2009 chegou a US$ 91,3 bilhões, segundo o relatório da OMS – 40,7% do mercado mundial.Na época de Hipócrates, considerado o pai da medicina, ser médico significava usar os sentidos e o conhecimento para examinar o paciente e proferir um diagnóstico. “Com a visão, observava-se o enfermo; com o tato realizava-se a palpação e a tomada do pulso; com a audição ouviam-se as queixas e ruídos anormais; com o olfato podia-se sentir algum odor característico”, enumera Joffre Marcondes de Rezende, membro da Sociedade Brasileira de História da Medicina. Se pudesse dar uma olhada nos centros médicos atuais, porém, talvez Hipócrates se espantasse com o que veria, em especial ao constatar que até robôs integram o quadro de funcionários de alguns hospitais.

Por aqui, entre 2003 e março de 2010, o investimento no setor foi de cerca de R$ 6 bilhões em infraestrutura, pesquisa e tecnologia. Os recursos provêm do governo federal, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e das agências de fomento à pesquisa, mas, apesar da evolução, o déficit na balança comercial da área da saúde ainda é grande, de cerca de US$ 9 bilhões até 2009. Afinal, apesar da posição de destaque, o Brasil ainda está longe de suprir suas necessidades, e 90% das tecnologias usadas internamente precisam ser importadas – principalmente dos Estados Unidos. É de lá, inclusive, que vem uma das inovações mais comentadas nos últimos tempos: o robô DaVinci, que pode realizar desde cirurgias na próstata até operações do coração.

Precisão e segurança

Pode parecer filme de ficção científica, mas em outubro passado aconteceu a primeira cirurgia feita apenas por máquinas – sem que os médicos precisassem sequer tocar o paciente. O marco ocorreu em Montreal, no Canadá, em uma operação de próstata. Um robô conhecido como McSleepy aplicou a anestesia e outro, o DaVinci, retirou parte da próstata do paciente. A distância estavam os médicos Thomas Hemmerling e Armin Aprikian, da universidade canadense McGill, comandando os aparelhos. “O uso de robôs na medicina garante maior precisão e segurança nos procedimentos”, afirmou Hemmerling, em entrevista concedida ao site da Universidade McGill. A cirurgia robótica não é, por incrível que pareça, uma novidade tão recente da medicina, mas essa foi a primeira vez em que máquinas realizaram todo o procedimento.

E, se alguém pensa que isso só acontece em países desenvolvidos, mais uma surpresa: o robô DaVinci, usado para operar o paciente canadense, já faz suas cirurgias no Brasil desde 2008, em três instituições de saúde da capital paulista. Uma delas é o Hospital Alemão Oswaldo Cruz, que está entre os mais modernos do país. “Nas décadas de 1980 e 90, fomos o primeiro hospital a adquirir aparelhos para a realização de cirurgias laparoscópicas e minimamente invasivas – em que pequenas cânulas metálicas são introduzidas no corpo com uma microcâmera, evitando cortes”, lembra o cirurgião Carlo Passeroti, especializado em robótica. “O hospital também foi pioneiro na aquisição do robô DaVinci, que gera imagens em três dimensões e em alta definição.”

De fato, essa parece ser a inovação mais importante dos últimos anos. Criado pela empresa americana Intuitive Surgical, o aparelho foi inicialmente desenvolvido para que soldados feridos na Guerra do Golfo pudessem ser operados a distância. Ele é composto de três partes. A primeira delas é a mesa cirúrgica, onde fica o robô, que possui quatro braços com mobilidade de 360 graus. Em uma das pontas é colocada uma câmera que capta imagens em 3D e, nas outras, há instrumentos cirúrgicos que obedecem milimetricamente ao comando do médico. A segunda parte é exatamente onde o cirurgião se senta e manipula o robô por meio de peças que parecem joysticks. Por fim, há um complexo sistema de hardware, que garante a segurança de todos os procedimentos.

Para o paciente, os benefícios são incontáveis. A cirurgia robótica possibilita cortes menores e, por isso, períodos mais curtos de internação e de recuperação – sem contar que a perda de sangue é quase nula. “Os robôs conseguem fazer movimentos mais precisos que os dedos humanos. Não substituem o médico, mas garantem um desempenho ainda melhor, seguindo os mais altos padrões de qualidade”, afirma Thomas Hemmerling. O custo material, no entanto, é maior. Em uma cirurgia cardíaca, por exemplo, o valor pode ficar até 50% mais alto com a participação dos robôs. Para entender a diferença, basta lembrar que só o preço de um equipamento como o DaVinci alcança cerca de US$ 2,5 milhões.

Produção nacional

Ainda que artefatos desse tipo não sejam produzidos por enquanto no Brasil e precisem ser importados, os pesquisadores nacionais também têm dado sua contribuição à revolução tecnológica da medicina. Desde 2003, temos um modelo de coração artificial fabricado nacionalmente. Desenvolvido pelo engenheiro Aron José Pazin de Andrade, o coração artificial auxiliar é capaz de bombear até seis litros de sangue por minuto, ajudando o órgão natural enquanto o paciente espera por um transplante. Ele parece uma bolinha de tênis, pesa 500 gramas e é alimentado por bateria.

Num mundo de mudanças tão rápidas, no entanto, ele logo será ultrapassado por outro modelo, também nacional. Ainda em testes no Hospital de Messejana, no Ceará, um novo coração artificial deve estar disponível em breve – para isso, falta a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que regula a liberação de novas tecnologias médicas no país. Trata-se de um dispositivo de assistência ventricular mecânica, menor e mais barato que os modelos atualmente utilizados no país. Seu preço, segundo estimativas, será bem menor que o de modelos importados, como o que foi implantado no senador Romeu Tuma, falecido em outubro do ano passado. Diferentemente dos corações artificiais já usados por aqui, o novo modelo funciona como se fosse uma turbina dentro do órgão do paciente e, por meio de um tubo de 3 milímetros de diâmetro, conecta-se a um equipamento externo, por meio do qual é controlado.

Ao mesmo tempo, tem crescido o número de companhias que investem em tecnologia médica no Brasil. “A Siemens Healthcare foi a primeira empresa global a fabricar equipamentos no país. Desde 2002, por exemplo, produzimos um aparelho de raios X conhecido como Multix B, de excelente qualidade e aceitação pelo mercado”, afirma Armando Lopes, gerente geral da empresa no Brasil. De acordo com o relatório da OMS citado no início desta reportagem, a Siemens Healthcare é a terceira no ranking mundial de faturamento, com US$ 15,5 bilhões anuais. No ano passado, outra multinacional, a GE Healthcare, a segunda colocada, com US$ 17,4 bilhões, implantou uma fábrica no país. A unidade foi instalada em Contagem (MG) e deve se dedicar, inicialmente, à produção de equipamentos de raios X e de mamografia.

Outra que se destaca no mercado nacional é a DrillerMed. “Começamos há 20 anos, produzindo o primeiro micromotor elétrico cirúrgico controlado por microprocessador, que permite utilização segura em centro cirúrgico”, lembra o sócio diretor André Vilela. “A inovação também trouxe benefícios ao paciente, já que o cirurgião pode pré-programar o equipamento, não havendo necessidade de tocá-lo durante o procedimento. Assim, o risco de contaminação é menor.” Atualmente, a empresa está desenvolvendo novos dispositivos de ultrassom para tratamento de feridas.

Futuro

Mesmo com tantas boas notícias, o Brasil ainda não pode ser considerado um país produtor de destaque na área de tecnologias médicas. “Faltam profissionais para desenvolvê-las, ou melhor, profissionais com interesse e estímulo para atuar nessa área”, explica Carlo Passeroti, do Hospital Oswaldo Cruz. Armando Lopes, da Siemens Healthcare, concorda: “A participação de produtos nacionais nos hospitais ainda é pequena. Há, porém, uma clara tendência de crescimento, à medida que as empresas do setor priorizem ações entre os hospitais”.

O poder público também pode colaborar. “O convênio de R$ 17,7 milhões assinado em maio do ano passado pela Associação Brasileira da Indústria de Artigos e Equipamentos Médicos, Odontológicos, Hospitalares e de Laboratórios (Abimo), em parceria com a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), é uma das provas de que, mesmo pequeno, o setor médico-hospitalar e odontológico está inserido nas políticas estratégicas de exportação do governo”, ressalta Franco Pallamolla, presidente da Abimo.

A tendência é de crescimento, tanto da produção nacional quanto da participação no comércio internacional, mas depende de alguns fatores. “O mercado é enorme e precisamos de muito incentivo e de profissionais capacitados para produzir e trabalhar nesse ramo. Com isso o Brasil poderá passar da posição de simples consumidor para a de gerador de tecnologia. Em um futuro próximo, não consigo enxergar nenhuma atitude governamental que não seja o financiamento de pesquisas pelas agências de fomento, para produção de novas tecnologias”, declara Carlo Passeroti.

Humanização

Porém, tantos benefícios propiciados pela tecnologia não aparecem sem consequências negativas. Hoje em dia o contato entre médico e paciente é muito menor do que no passado. Muitas vezes o diagnóstico não inclui nem mesmo uma boa conversa sobre o histórico de saúde do paciente – seja por falta de tempo do profissional, seja pela valorização excessiva dos exames laboratoriais. A utilização dos cinco sentidos para fazer o diagnóstico, como propunha Hipócrates, hoje passou a ser coadjuvante. “O uso da tecnologia em si não é ruim – só precisa haver bom senso e parcimônia. É imprescindível, para a utilização correta de métodos de alta tecnologia, que o médico faça a anamnese adequada do paciente e realize um exame físico minucioso”, adverte Cláudio Campi de Castro, professor de diagnóstico por imagem da Faculdade de Medicina do ABC, na região metropolitana de São Paulo. “Quanto mais experiente o profissional, menos exames ele precisa pedir ao paciente; e aqueles que ele vier a indicar serão os indispensáveis e relevantes para o diagnóstico.”

Na opinião de Joffre Marcondes de Rezende, “era de se esperar que todo esse progresso trouxesse maior aproximação entre médico e paciente, mas ocorreu exatamente o oposto. O médico ganhou em eficiência, em capacitação profissional, em recursos diagnósticos e terapêuticos, mas perdeu em prestígio. Por que esse paradoxo?” Ele mesmo explica, e não é difícil entender: “A medicina se tornou mais técnica e menos humana. O médico, de modo geral, passou a se preocupar mais com imagens e constituintes biológicos do que com o paciente como ser humano; começou a dar menor atenção às queixas e a fazer o exame mais apressadamente. A tendência atual é o doente ser examinado pelo médico durante cinco minutos e ficar cinco dias submetendo-se a exames e testes, na esperança de que o diagnóstico saia do laboratório como o coelho sai da cartola de um mágico”, diz.

Infelizmente, nem sempre é isso o que ocorre. Os pacientes, por sua vez, têm sua parcela de culpa. Afinal, alguns adoram pedir mais exames do que os necessários – pela falsa sensação de segurança que a tecnologia proporciona. “Tanto os médicos quanto os pacientes foram seduzidos pelas máquinas, pelos gráficos e pelos números, que dão a aparência de exatidão, substituindo a medicina qualitativa pela quantitativa. É preciso, porém, lembrar que todo exame tem suas limitações e falhas ligadas à técnica, ao equipamento e ao observador”, completa Joffre. Não será fácil, mas o caminho a ser trilhado no futuro deverá encontrar o equilíbrio entre técnica e humanização. “A tecnologia ajuda, mas não substitui o contato e a relação médico-paciente, que não apenas auxilia no diagnóstico como na adesão ao tratamento”, finaliza Carlo Passeroti.


Do estetoscópio à robótica

1816 – A instrumentalização do médico tem início, com a invenção do estetoscópio, então um simples tubo oco de madeira.

1852 – Embora o termômetro fosse conhecido desde o século 17, seu emprego como instrumento para medir a temperatura corporal ocorre apenas nesse ano.

1880 – Torna-se possível medir a pressão arterial. O primeiro aparelho nada mais é que uma bolsa de borracha cheia de água e ligada a uma coluna de mercúrio.

1895 – W. C. Roentgen descobre os raios X.

1927 – Surge o respirador artificial.

1945 – É desenvolvida uma máquina para diálise.

1951 – A primeira válvula cardíaca artificial é colocada à venda.

1970 – Surgem os sistemas de tomografia computadorizada.

1977 – A ressonância magnética é usada para escanear o corpo inteiro.

1982 – O coração artificial de uso permanente é desenvolvido.

1985 – Ocorre o primeiro procedimento cirúrgico realizado com a ajuda de um robô.

2003 – Um coração artificial 100% brasileiro é criado.

2008 – O robô DaVinci chega ao Brasil.

2010 – É realizada a primeira cirurgia totalmente robótica da história, sem que o paciente tenha sido sequer tocado pelos médicos.