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Paulo César Pinheiro

foto: Silvana Marques

O compositor e escritor Paulo César Pinheiro possui uma obra que se estende por mais de duas mil músicas gravadas. Somam-se ao feito as parcerias ilustres acumuladas na vida, tornando-o testemunha ocular da evolução da música popular brasileira e da história do país.

Suas canções figuram no repertório de diversos intérpretes, mas talvez seja Elis Regina a que mais se identificou com seus versos, ao deitar e rolar em Quaquaraquaquá (Mas que malandro sou eu/ Pra ficar dando colher de chá/ Se eu não tiver colher, vou deitar e rolar/ Quaquaraquaquá, quem riu/ Quaquaraquaquá, fui eu), parceria com Baden Powell que culminou no disco Os Cantores da Lapinha, de 1970.

Nascido no Rio de Janeiro, em 1949, carioca da gema, recolheu dos bares, das esquinas e das ruas da cidade o samba que o acompanha desde o início – 1968, quando Elis gravou Lapinha. “(...) Faço diversos gêneros diferentes porque me dediquei a conhecer o Brasil. Tenho parceiros de todos os cantos, porque sei as linguagens do meu país”, afirma Paulo César Pinheiro em entrevista à Revista E.

Em 2002, recebeu o Grammy pela canção Saudade de Amar, fruto da parceria e amizade com Dori Caymmi, e no ano seguinte o prêmio Shell de Música Brasileira pelo conjunto da obra. Em 2010, lançou Histórias das Minhas Canções pela editora LeYa Brasil. “É através de mim que a poesia acontece”, revela o compositor, que já proclamou sua sina ao escrever: Qualquer que seja a morte ao chegar/ Jamais meu violão me abandonará.

A classe média brasileira descobriu o samba em torno dos anos de 1970. É nesse período que você se torna conhecido. A que se deve essa ascensão?

Comecei na década de 1960, quando o samba já tinha uma marca forte. Os festivais brasileiros, em 1965, estava repleto de bons sambas. Houve, então, uma maior aceitação como música de massa. Nasceram intérpretes poderosos, como Elizeth Cardoso, com o disco Elizeth sobe o Morro (1965), no qual ela gravou Nelson Cavaquinho, Cartola... Desenvolviam-se no Brasil os meios de comunicação de massa.

Quando a Elizeth fez esse disco ou quando a Nara Leão gravou sambas nos idos de 1960, a televisão engatinhava. As multinacionais do disco estavam praticamente começando. A partir da década de 1970 houve um desenvolvimento maior da televisão. E o disco começou a ser um produto de venda. Até então ninguém ganhava dinheiro com isso. E quem os comprava era uma classe média. O pobre não tinha vitrola. Hoje há gravadoras internacionais que não têm dez artistas contratados. Naquela época cada fábrica de discos tinha 90 artistas.

Havia preconceito em relação ao samba por ser uma expressão vinda dos morros?

O preconceito com o samba ocorreu no começo do século. Estava lendo um livro que conta essa história: quando a Nair de Teffé, mulher do marechal Hermes da Fonseca, colocou o chorinho no Palácio do Catete, para ser tocado em recitais, foi um escândalo.

O Rui Barbosa, senador na época, foi para a tribuna esculhambar, porque achava que era uma música menor e não podia entrar algo assim naquele ambiente. O discurso do Rui Barbosa no Senado esculhambou a música brasileira. ‘Essa musiquinha de quarta categoria’, dizia.

Nessa época, o preconceito era ferrenho. Mas a partir da década de 1940 começaram a aparecer compositores extraordinários, como Wilson Batista, Geraldo Pereira, Ary Barroso, e o samba tomou conta do Brasil e do mundo. O samba foi embora com Ary Barroso e Pixinguinha para os Estados Unidos e Europa.

Você tem uma identificação muito forte com o samba. Sempre foi assim?

O samba tem uma força muito grande em mim, ele sempre prevalece. Tenho mais de duas mil músicas compostas, acredito que 70% devem ser sambas. Quando faço música sem parceiro, minha inspiração vem na maior parte das vezes em forma de afro-sambas – porque tenho uma mistura forte de negro, índio e branco.

A minha avó é uma índia guarani e tenho muito negro na família, isso foi forte na minha formação. Talvez eu seja o compositor que mais faça afro-sambas no país. Tenho um disco inteiro sobre isso em parceria com o Sérgio Santos, que se chama Áfrico. As manifestações da Umbanda e do Candomblé me fascinam. Não sou religioso, não participo de nenhuma doutrina, mas o folclore negro me arrebata.

Sou apaixonado pelas danças, pelo colorido das roupas, pelas comidas – essa é a fonte de onde mais bebo. Mas também faço diversos gêneros diferentes porque me dediquei a conhecer o Brasil. Tenho parceiros de todos os cantos, porque eu conheço as linguagens do meu país. Por convivência, por estar junto, por andar pelo Brasil afora escutando manifestações musicais. Eu me especializei no Brasil, sei fazer os gêneros brasileiros quase todos. Baião, maracatu, frevo, toada mineira... Agora, o samba está na minha alma desde que comecei a fazer música.

Como você fez esse mergulho na cultura brasileira?

Nos anos de 1970, o maestro Guerra Peixe, um dos grandes conhecedores de música no Brasil, catalogou em viagens mais de 300 ritmos. Um país riquíssimo em música, nunca precisou importar absolutamente nada. Fui atrás desse manancial, viajei para outros estados, e sou mestiço; então, como mestiço, tenho no sangue diversos desses ritmos e gêneros.

Meu pai era paraibano, sertanejo; minha mãe é de uma ilha no litoral de Angra dos Reis; e minha família está espalhada pelo nordeste brasileiro – com tudo isso eu convivi de perto, e foi me entranhando, me dando tarimba, prática, para tudo isso se tornar uma coisa simples para mim.

Em mais de duas mil músicas gravadas já existe um método próprio na composição das letras? Você é um compositor pragmático?

Não tem regra, existe sim uma disciplina. Acordo, tomo meu café da manhã, vou para minha mesa de trabalho e fico ali esperando que chegue alguma coisa. Fico ali o tempo inteiro, todos os dias sentado. Como eu trilho diversos caminhos – não só o musical – se não vem uma coisa vem outra, porque sou romancista, contista, faço crônica para jornal, peças de teatro.

Então algumas coisas vêm. Se no final do dia eu não gostei de nada, jogo fora e começo tudo de novo no dia seguinte. Mas essa disciplina é cotidiana, dia a dia. Depois fico com a mente cansada e não quero saber disso. Geralmente chego até as cinco horas da tarde.

Essa disciplina é o que me faz trabalhar o tempo inteiro das diversas formas e maneiras possíveis. Às vezes, faço letra e música sem parceiro, às vezes parceiros meus mandam a música gravada para eu fazer letras, às vezes fazemos tudo junto. Então, não há uma fórmula, é tudo muito disperso.

É mais difícil fazer a letra partindo da música de um parceiro ou buscar inspiração a partir do zero?

Esse tipo de dom artístico não se explica. Eu não tenho explicação para isso, sou compulsivo. É através de mim que a música vem, que a poesia acontece. Sou só um veículo. Por causa disso, não existe a história de ser fácil ou difícil.

Ou é fácil ou é impossível. É a música que me diz o que ela quer e não o contrário. A minha função é descobrir o que ela me pede. Pode ser rápido ou demorar. Acontece de eu escutar uma música e vir a frase inteira na cabeça, uma palavra, o tema aparece e aí é rápido. Em outros momentos, escuto e nada acontece, e uma música pode ficar na minha mão durante um ano.

Houve casos inclusive de eu começar uma música, fazer até um certo ponto e empacar ali, não deixando alternativas. Conto isso no meu livro Histórias das Minhas Canções (LeYa Brasil, 2010), em que há histórias de como fiz cada música. Fiz uma música em que faltaram dois versos finais que só saíram vinte anos depois. Vinte anos para fazer dois versos. Eu já tinha desistido. Num determinado dia, acordei cantando os dois versos. É tudo muito misterioso.

Você já compôs com João de Aquino, Edu Lobo, Baden Powell, uma infinidade de bons parceiros. Como você os escolhe?

Eu nunca escolhi parceiros. Eles é que me escolheram. Estou sempre disposto tanto para os velhos quanto para os novos. Sou um dos compositores da minha geração que mais fizeram música com gente nova.

Tenho parceiros hoje que são filhos dos meus antigos amigos, alguns com 20 anos de idade. Fui um dos poucos que deram maior abertura, gosto de ouvir o que essa nova geração está fazendo. E, quando vejo um talento despontado, uma pessoa que sei que será um compositor, que está na veia, debruço nisso e vou a fundo.

Você compôs Lapinha com o Baden Powell, que ficou impregnada no cancioneiro brasileiro. Como era o entendimento entre vocês?

Ele era um virtuose não só como instrumentista, mas como compositor. Na segunda metade do século 20, os dois compositores que mais influenciaram todo o resto foram Tom Jobim e Baden Powell. Para todos da minha geração – Dori Caymmi, Edu Lobo, Francis Hime, Chico Buarque, Milton Nascimento –, esses dois foram fundamentais.

Comecei a compor com o Baden muito cedo. Ele era parceiro do Vinicius de Moraes e com ele fez uma obra magistral. Um dia resolveu que estava na hora de fazer parceria comigo, porque nós nos tornamos amigos. Pôs essa responsabilidade na minha mão e me assustei, porque eu tinha 16 anos e o Vinicius de Moraes tinha 52. A primeira música que fiz com Baden foi Lapinha (1968).

Ele me deu a melodia de um refrão folclórico recolhido por ele na Bahia, desenvolveu a segunda parte, e fiz a letra. E a partir daí nos tornamos parceiros e fizemos uma obra em torno de 100 músicas. Baden Powell era um sujeito muito fértil. A música brotava com muita facilidade. A gente convivia muito, cheguei até a morar na casa dele durante um tempo, no começo da década de 1970.

Tínhamos uma relação de amizade; como a gente estava junto o tempo inteiro, é claro que a música surgia com facilidade, por isso mesmo a quantidade de músicas juntos. O Baden com um violão era um assombro, deixou seguidores por toda a vida. Inclusive, essa música gerou muitos anos depois minha peça Besouro Cordão de Ouro, um musical que está em cartaz desde 2006. Este ano circulará pela Região Norte do Brasil.

Você também compôs com Edu Lobo. O processo de trabalho com ele também é livre?

O Edu é muito meticuloso, porque também é letrista. O Baden não era um letrista, era compositor de música. O Edu além de compositor de música é um letrista muito bom. Com ele, converso mais. Às vezes, ele fala que uma palavra não soa bem – eu mudo. Manda a melodia para mim, faço a letra e mando de volta.

Aí se inicia o processo de trabalho que é sempre longo, porque ele começa a cantar, vê que uma palavra não se encaixa dentro da música dele, então busco outra sonoridade, e assim vai. Em um disco que ele gravou no exterior, ligou para mim do estúdio, às três horas da manhã, para perguntar se eu podia mudar uma palavra. Ele estava nos Estados Unidos e eu não entendia direito o que ele dizia, porque eu estava no meio do sono. E mudei a palavra, mas a música estava pronta há muito tempo.

Quando surge alguma divergência, como é resolvida?

Numa parceria não podemos impor o que queremos. Senão sou eu sozinho. Tudo é discutido até se chegar a um consenso. Esse é o grande barato da parceria e da amizade. Eu e o Edu Lobo, por exemplo, temos uma amizade de 40 anos. A gente começou a fazer música no final da década de 1960. É um casamento, um convívio, que, se um começar a impor ideias ao outro, termina em separação.

O Dori Caymmi, o Francis Hime e o Edu Lobo são parcerias e amizades de décadas. Esse convívio só dá certo porque um tem que baixar a cabeça para o outro uma vez ou outra. Senão é briga na certa. Se eu não conseguir fazer com que minha ideia prevaleça, mudo o conceito. Invento outro, por isso sou um criador. Não posso martelar em uma única tecla. A gente discute; caso não se chegue em acordo, alguém tem que se curvar. É mais fácil haver um rearranjo nas palavras do que nas notas musicais, então quem está com a letra muda mais. Mudo a frase, mudo a palavra, mudo a ideia: quero que meu parceiro fique satisfeito.

Temos na música brasileira dois outros autores da sua geração que navegam no universo do samba: Aldir Blanc e Chico Buarque. O universo musical de vocês três é o mesmo?

Aldir é meu amigo desde os anos de 1960. Crescemos juntos, nos conhecemos desde adolescentes. Volta e meia um escreve coisa para o outro. Fiz um soneto para um jornal a propósito do aniversário dele e acabou virando música.

Um compositor carioca chamado Luis Carlos fez a melodia e foi gravada recentemente – chama-se Irmão de Sangue. Já o Chico é uma referência para o universo poético do Brasil. A obra do Chico é vasta, muito difícil eleger entre as composições dele apenas algumas poucas referências. Gosto muito dos dois sem dúvida.

Em artigo, o compositor e escritor Nei Lopes dizia que as escolas de samba não têm conseguido produzir compositores que alcancem o estrelato, tal qual Paulinho da Viola, Cartola e Dona Ivone Lara – que vieram das escolas de samba. Como você analisa o carnaval carioca e toda essa engrenagem atual?

A escola de samba hoje é uma indústria. A música não é a mesma de 40 anos atrás. Tanto que os sambas enredos cantados hoje são os antigos. O novo enredo morre de um carnaval para o outro. Ninguém mais sabe o que aconteceu no carnaval anterior.

Virou uma indústria de entretenimento. Na época que se fazia escola de samba sem dinheiro por trás, fazia-se música por gosto. Hoje o carnaval é vendido para o mundo inteiro – como espetáculo de massa e não de arte. Os desfiles das escolas de samba viraram um grande teatro popular.

Tudo ficou mais veloz, o samba já não é samba, e sim uma marcha. A grande música continua sendo feita, mas sobrevive em guetos. A música de massa é aquela que no ano que vem já não existe mais – isso é entretenimento. A arte é atemporal, ela permanece.

O caminho de volta é mais complicado. Tem gente nova e muito competente surgindo. Se a mídia enxergará isso é outra história. Sou otimista, senão estaria fazendo música para quê? Quero que isso passe adiante, para os novos. E isso vai acontecer.


“Eu me especializei no Brasil, sei fazer os gêneros brasileiros quase todos. Baião, maracatu, frevo, toada mineira... Agora, o samba está na minha alma desde que comecei a fazer música”


“Fiz uma música em que faltaram dois versos finais, que só saíram 20 anos depois. Vinte anos para fazer dois versos. Eu já tinha desistido. Num determinado dia, acordei cantando os dois versos”


“Um dia [Baden Powell] resolveu que estava na hora de fazer parceria comigo, porque nós nos tornamos amigos. Pôs essa responsabilidade na minha mão e me assustei, porque eu tinha 16 anos e o Vinicius de Moraes tinha 52”



“O Dori Caymmi, o Francis Hime e o Edu Lobo são parcerias e amizades de décadas. Esse convívio só dá certo porque um tem que baixar a cabeça para o outro uma vez ou outra. Senão é briga na certa”