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Inéditos

ilustração: Marcos Garuti

AZUL

O mar repetitivo como as marinhas
ininterruptas pintadas por Pancetti
tal e qual as mensagens das garrafas
de Morandi, das incessantes maçãs
de Cézanne na mesa: Leitmotiv, adesão
identidade, dia a dia decorado
pelo mar. A mão que o leva do chão
às telas no cavalete, não molha
ao seu redor, nada – de mar a mar
mancha, com a colaboração do céu.

TARDE

A lua, de Goeldi
                            posta
no céu, ilumina
com seu vermelho bem aberto
a cidade carnal e o ser
sanguíneo que trabalha enterrado
no estrume da calçada negra, noturna.

(Ou será o sol final que o dia
ainda não trocou pela mancha lunar?)

O lixo da noite, que não foi digerido
enche de negrume o carro que atravessa
as ruas já riscadas de branco giz
e o céu que se esforça para chegar na manhã.

FAUVE

Matisse sabia da tessitura
do tempo que o corpo
de qualquer coisa leva
para recortar-se.

Leve, mas com lastro
de raiz e asa, levitando
entre voo e pouso, incor
porando as duas intenções.

Fios afins e os que não se afinam:
o belo e o fero, acesos
entretidos nas suas cores
se não ferozes, felizes.

Piano forte de tons, improviso
do pincel que pinta por música
mas também aprende de ouvido
o que, instantâneo, toca.

MORTE-COR 

Morta-viva, a noite passa.
O trabalho do sono não começa
perde o fio, e descobre a nudez.
Mortalha desfeita pelo tempo
pelos focinhos de luz que farejam
e já furam a janela em busca
do corpo transgressor, insepulto.

Morta-viva, em outro passo.
Pálida, translúcida, impalpável
enfrenta a luz dos dias
com a sua, de opala, em agonia
e glória. Não se deixa enterrar
apesar do peso de toda a terra
sobre seu corpo irradiante.

EDWARD HOPPER

Este pincel em vez de espalhar a cor
coordena-a e adensa sua luz pensada
que chega exata sem um pingo, um ponto
de exclamação! O silêncio é o hábito
nessas telas ao cobrir de dentro para fora
ou vice-versa, a fachada e o interior
o desabitado, e a ocupação quieta de poucos
à sombra, quase manequins sem pose
ao abandono cotidiano, atrás do sol
do ar vítreo das janelas e vidraças
do ar livre, em câmara lenta, parado:
dianônimo, ou um domingo impassível
deserto, povoado de autoexílios.

Armando Freitas Filho é poeta. Em 2003, reuniu sua poesia de até então (1963 – 2003) em Máquina de escrever. Em 2006 e 2009 publicou Raro mar e Lar, respectivamente