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Não é todo instrumento que se pode ver presente em ambientes musicais tão distintos como acontece com o piano. Ele está nas salas de concerto – modernas, deste século, ou históricas, como as frequentadas pela nobreza há 200 anos –, nas residências de simples apreciadores de música, em casas de jazz e até no palco de astros da música pop, de sabor bem comercial, como o dos norte-americanos Elton John e Lady Gaga, por exemplo.
Ainda que o campeão em popularidade seja o violão, quando se fala de história da música nada seria o mesmo sem o invento do italiano Bartolomeo Cristofori, datado de 1700. Uma invenção que o jornalista e crítico musical João Marcos Coelho classifica como “uma tremenda revolução”.
Nova tecnologia
Antes dele, o cravo era o único instrumento de teclas. Estrela nos salões dos reis e príncipes, onde gênios como o compositor austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) fascinavam a todos com suas criações. Até que a própria música exigiu mais.
Os autores passaram a se sentir tolhidos pela limitada extensão do teclado do instrumento, e se viram diante da necessidade de expandir essa tessitura e experimentar até onde podiam chegar as vibrações graves e agudas. Mas as cordas feitas de tripa do cravo não permitiam essa experiência.
“Elas não tinham a possibilidade de aumentar a tessitura do teclado para baixo [para sons mais graves] por um problema da física”, explica o professor Amilcar Zani Netto, do Departamento de Música da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
“Ou seja, quanto mais grave é um som, mais grossa e comprida tem que ser a corda. E as de tripa não funcionavam para isso.” Em resumo, segundo o docente, o surgimento do piano se deveu a uma questão de tecnologia. “Foi aí que os italianos, os Cristofori, começaram a testar os pianos de martelo, com cordas de metal, que podiam ser mais grossas ou mais finas”, detalha. “E é isso que existe até hoje. Ou seja, o piano nasceu da necessidade de se ter outro instrumento de teclado.”
Instrumento sociabilizador...
João Marcos Coelho, autor do livreto que acompanha o DVD Piano – Uma História de 300 Anos, lançamento do Selo Sesc (veja boxe A trajetória registrada), conta ainda que, nessa nova versão, os teclados deixaram a condição de “meros acompanhantes” para assumir um posto no primeiro plano, devido às novas possibilidades. A evolução não parou por aí.
Em meados do século 19, já na versão que conhecemos hoje, o piano atraía multidões como o grande instrumento do Romantismo, em recitais de nomes como o do polonês Frédéric Chopin (1810-1849), do alemão Robert Schumann (1810-1856) e do húngaro Franz Liszt (1811-1886 – veja boxe O primeiro superstar).
Nessa mesma época, aproximadamente na década de 1840, outro marco tornaria notável a trajetória do piano: sua popularização como instrumento doméstico, o que significou, nas palavras de Coelho, uma “massificação” do acesso da música.
“Isso porque se criou o chamado piano de armário, mais barato”, esclarece o jornalista. “Aí, sim, o piano deixou de ser um instrumento caro e passou a ser possível tê-lo em casa.” Mesmo mais barata, a nova versão conservava a principal característica do revolucionário instrumento: sua completude.
Ou seja, as pessoas poderiam reproduzir, entre amigos, versões reduzidas – transcritas para piano, como dizem os especialistas – de sinfonias inteiras. “Nesse ponto, o piano se tornou mais ou menos um polo de entretenimento”, diz o professor Zani Netto. “As pessoas se reuniam em torno dele, era um instrumento que permitia a sociabilização.”
...e também burguês
A mesma aceitação se reproduziu no Brasil. Segundo o livro O Piano na Música Brasileira (Movimento, 1992), de Maria Abreu e Zuleika Rosa Guedes, os primeiros pianos vieram junto com dom João VI e a Família Real, em 1808. “Existe uma informação (...) de que em Pernambuco, em 1810, já existiam vários pianos”, relata o livro.
E desde seus primeiros movimentos em terras brasileiras, o instrumento se enraizou e proliferou, a ponto de, em 1922, o escritor Mário de Andrade – ele próprio um aventureiro das teclas – ter categorizado o Brasil como o país da pianolatria, tamanha a adoração ao instrumento, seu repertório e seus intérpretes. “Quando falou pianolatria, Mário quase falou em praga, porque só dava piano nesta terra (risos)”, informa João Marcos Coelho. “E isso tanto do lado erudito, que era muito cultivado, quanto do lado popular.”
Com toda essa fascinação, o instrumento foi parar na sala das casas burguesas. “Durante todo o século 19, não havia aqui casa de razoável ‘distinção’ que não tivesse as moças estudando piano – nem que fosse numa versão de armário”, pondera João Marcos Coelho. Segundo o maestro Júlio Medaglia, isso se deve à própria origem de um instrumento marcado pela sofisticação de sua estrutura. “O piano é, por natureza, digamos, elitista, porque ele tem uma tecnologia muito complexa.”, enfatiza.
88 teclas
Característica do piano que aparece na ponta da língua – e dos dedos – de músicos, maestros e estudiosos, a completude é fruto de suas 88 teclas, que representam uma infinidade de recursos ao longo de sua vasta extensão, entre graves e agudos.
O instrumento pode emitir acordes com um grande número de notas, ao mesmo tempo em que produz melodias de acompanhamento. “Ou seja, as duas mãos podem trabalhar sobre ele fazendo coisas completamente diferentes”, ilustra Júlio Medaglia.
“O que não acontece, por exemplo, com um violino, em que uma mão produz as notas e a outra, com o arco, as ‘tira’ das cordas. No piano, as duas mãos são ativas e produzem ideias diferentes.” O maestro explica ainda que o piano se destaca na possibilidade de produzir uma grande quantidade de variações de timbres por meio do uso do pedal, desafiando a maestria do instrumentista, enquanto lhe oferece um mundo de sonoridades.
Para o pianista André Mehmari, essa propriedade faz do piano o “instrumento do compositor por excelência”, já que sua versatilidade atinge pontos a que nenhum outro instrumento é capaz. “No violão, por exemplo, você pode harmonizar, mas há uma limitação de vozes que você pode tocar, pela própria natureza do instrumento”, compara o pianista, que chama também a atenção da eficácia particular do piano para o ensino da música.
“Porque você visualiza, nas teclas, o acontecimento musical”, justifica. “O contraponto, a harmonia, fica tudo muito gráfico, muito visível. E isso também não acontece em nenhum outro instrumento.” O professor Amilcar Zani Netto vai mais longe e classifica o instrumento como “fundamental” para fins acadêmicos. “No curso de música da USP, a disciplina piano complementar é obrigatória”, exemplifica. “Todas as pessoas precisam ter o mínimo de noção de piano para poder fazer um exercício de harmonia ou de contraponto.”
Poder incomum
Com tamanha possibilidade de síntese, não é de estranhar que o piano tenha extrapolado os limites da música erudita e invadido furiosamente outros gêneros musicais, mais populares. De acordo com João Marcos Coelho, seus recursos o levaram a essa utilização.
Por isso ele está nos choros brasileiros de Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-1934), no jazz de Louis Armstrong (1901-1971), que tinha o grande pianista Earl Hines (1903-1983) na linha de frente da banda, no experimentalismo de John Cage (1912-1992), na excelência da música instrumental de Egberto Gismonti, e em mais uma lista infindável de artista e estilos. “O piano é um instrumento que permite a música mais comercial e a mais cerebral, e isso é impressionante”, comenta Coelho.
Gostos musicais à parte, de acordo com o pianista André Mehmari, a “natureza tímbrica” do instrumento fez com que ele se amalgamasse com os mais diversos estilos. “Então, se você pega o piano do Nelson Freire e o do Elton John são como instrumentos diferentes”, avalia Mehmari.
A trajetória registrada
Lançamento do Selo Sesc aborda os três séculos do piano
O Sesc São Paulo lançou, por meio do Selo Sesc, na unidade Vila Mariana, no dia 29 de junho, o DVD Piano – Uma História de 300 Anos, que reúne depoimentos e performances de grandes nomes do instrumento no Brasil. Cada um deles abordou uma fase dessa história, desde o surgimento, na Itália, em 1700, até os dias de hoje.
Os concertos inseridos no disco foram realizados no Sesc Consolação, nos dias 21, 22, 28 e 29 de outubro de 2009, e o lançamento acompanha também um livreto escrito pelo jornalista e crítico musical João Marcos Coelho, também curador do projeto. “O objetivo desse DVD é orientar os interessados sobre como se movimentar em meio a tantas variações que o piano tem hoje”, comenta Coelho.
“Já que temos o teclado eletrônico, o piano acústico, o piano de armário, o sintetizador etc.” O jornalista afirma que, por meio do DVD e do livro, é possível ter uma ideia do vasto universo que o piano abriga. “Além, claro, de mostrar todo o glamour dos teclados, a amplitude que vai do cravo até o piano acústico – rei do século 19? – e chega ao sintetizador.” Para o técnico responsável pelo Selo SescSP Gilberto Paschoal, o material serve como guia de escuta, possibilitando elementos para a fruição da música.
“O resultado é um conteúdo bem aprofundado, que pode interessar tanto ao leigo quanto ao público já familiarizado com o repertório do instrumento; e numa linguagem que evita o tom didático”, acrescenta Paschoal. Vale lembrar, acrescenta, que o DVD vem somar-se ao trabalho de educação musical que o Sesc São Paulo desenvolve nas programações e Centros de Música das unidades Consolação e Vila Mariana.
O primeiro superstar
Considerado um dos grandes pianistas, o húngaro Franz Liszt foi também o responsável pela criação de um mercado para música erudita
No livreto que acompanha o DVD Piano – Uma História de 300 Anos, lançado pelo Selo Sesc (veja boxe A trajetória registrada), o jornalista e crítico musical João Marcos Coelho abre o primeiro texto contando uma curiosa história sobre o pianista húngaro Franz Liszt (1811-1886).
“O concerto sou eu”, disse o músico ao minimizar a ausência de orquestra para acompanhá-lo numa apresentação, em 1837. “A arrogante declaração do pianista, compositor, arranjador e superstar húngaro (...), parafraseando o rei Luís XIV, encantou a plateia que se preparava para assistir ao primeiro recital de piano solo da história da música”, escreve Coelho.
A passagem dá uma boa ideia de quem foi Liszt: um carismático e talentoso astro que revolucionou a técnica do piano, criou um mercado para a música erudita e aplicou espertíssimas jogadas de marketing, séculos antes de o mundo conhecer essas estratégias. “Ele surge como o primeiro grande solista do piano, tinha uma técnica inata absolutamente incomum, que era inata nele, e ele era, acima de tudo, um grande marqueteiro”, define o professor Amilcar Zani Netto, do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Segundo Zani Netto, partiu dele uma revolução na forma de os pianistas se apresentarem: não mais de costas para o público, como era antes de Liszt. O húngaro queria ser visto, por isso passou a realizar suas performances com o piano posicionado de lado no palco, como é até hoje.
“Ele foi o primeiro a ter a coragem de dispensar os demais instrumentos e a orquestra. Até então, não havia essa concepção do recital de piano, ou seja, de um instrumento apenas se bancar”, diz João Marcos Coelho. Além disso, explica o crítico, o pianista também inaugurou a era do intérprete. Até então, o comum era que cada compositor apresentasse sua própria música.
Já no caso do húngaro, das cerca de 1.400 obras suas catalogadas, 700 são paráfrases, arranjos e transcrições de peças de outros músicos – nomes como o do alemão Ludwig van Beethoven (1770-?-1827) e do francês Hector Berlioz (1803-1869). Para o jornalista, além da contribuição para produção pianística, Liszt realizou um “extraordinário” trabalho de divulgação da música como um todo, criando um mercado para o gênero clássico. “Ele fez com que a música clássica chegasse ao povão. E com isso popularizou o piano.” ::