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Fabulário da imagem
sobre ilustração do livro Xangô, o Trovão, de Pedro Rafael.
Como seria o universo sem imagens? A criança, desde o nascimento, reconhece o que lhe cerca por meio de códigos visuais. Para que passe a dominar a escrita é fundamental ter domínio dos signos imagéticos. Os livros infantojuvenis são os primeiros aliados nessa transição, ao unir ilustração e palavra em um mesmo objeto.
O filósofo alemão Walter Benjamin escreveu, em 1924, um artigo sobre o surgimento do gênero, que pode ser lido em Reflexões sobre a Criança, o Brinquedo e a Educação (Editora 34, 2002): “[As crianças] aprendem no colorido. Pois na cor, como em nenhum outro lugar, a contemplação (…) está em casa”.
Benjamin é um dos autores de sua geração que se debruçam sobre o universo infantil, elucidando termos como “o brincar”, “a pedagogia”, “o teatro infantil”. Isso porque o conceito de criança nasce apenas no final do século 18, afirmando a necessidade de estabelecer a didática e o ensino para os pequenos.
No Brasil, a partir da década de 1920, Monteiro Lobato (1882-1948) torna-se figura-chave para repensar a produção literária feita para crianças. Em Monteiro Lobato, Livro a Livro (Editora Unesp, 2008), organizado por Marisa Lajolo e João Luís Ceccantini, publicou-se uma carta de Lobato, de 1916, em que ele demonstra a insatisfação pelo que era produzido até então: “Ando com várias ideias.
Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Coisa para criança. (…) Que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos”.
Monteiro Lobato publica sua primeira versão infantil em 1920 sob o título Fábulas de Narizinho com uma novidade: as mais de setenta páginas do livro eram acompanhadas por ilustrações de Voltolino. Segundo Ceccantini, antes de Lobato, o livro brasileiro era feio, aos moldes do francês das capas tipográficas e amareladas. Seria o autor – e sua visão de editor –, ao fundar a Monteiro Lobato & Cia., quem investiria em papel de qualidade e capas coloridas e desenhadas.
Outros títulos seriam ilustrados por nomes importantes do início do século 20, tal qual Belmonte, chargista da vida política da época que emprestou seu traço às histórias do escritor. A partir de então, no Brasil, o livro infantojuvenil começará a ganhar outro status para, nos anos de 1970, dar o grande salto.
A história de uma cor
Em meados de 1960, Ziraldo era colaborador de vários jornais e revistas como chargista. No Pasquim, junto com Jaguar, Fortuna e Millôr, contribuiu para aplicar o humor e a blague contra a ditadura militar. Mas foi um convite despretensioso do editor português Fernando Ferro, à frente da Editora Expressão e Cultura, em 1969, que faria do cartunista um autor – e modificaria para sempre o papel da ilustração nos livros infantis.
“Esse editor era um sujeito inteligente, havia encomendado um livro chamado 10 em Humor para dez humoristas brasileiros. Foi o primeiro álbum de humor coletivo feito no Brasil. Levei meu desenho para ele; aproveitei e propus que fizesse um álbum com meu personagem Jeremias, o Bom. Ele topou e me perguntou se eu não tinha um livro infantil na manga, naqueles moldes europeus. Disse na hora: ‘Claro que tenho!’”, declara Ziraldo.
Evidente que não tinha, como afirma o cartunista. Mas os chargistas europeus de vanguarda, os quais admirava, todos já haviam feito livros para crianças, deixando nos humoristas brasileiros a vontade de seguir os mesmos passos. “André François, Tomi Ungerer... todos tinham seu livro infantil. Fui para casa sem livro nenhum, era sexta-feira e teria de entregar na segunda. Então tive a ideia de fazer um livro para criança sem desenho – mas aí elas não iam gostar –, quando achei melhor colori-lo todo, com uma página de cada cor. Daí pensei em escrever a história de uma cor, sem que ela tivesse forma. O livro estava todo na minha cabeça, foi só paginar.
Comprei papel contact, azul, vermelho, branco etc., colei a história e levei na segunda para o editor”, revela Ziraldo. Flicts, cuja personagem é uma cor que tenta descobrir sua própria identidade, seria um sucesso imediato de crítica e público.
Colunistas de grandes jornais resenharam o livro, que ganhou prefácio de Carlos Drummond de Andrade: “O mundo não é uma coleção de objetos naturais, com suas formas respectivas, testemunhadas pela evidência ou pela ciência; o mundo são cores. (...) Tudo é cor. O que existe, existe na cor e pela cor. A cor ama, brinca, exalta, repele, dá sentido e expressão ao sítio ou à aparência onde ela pousa”, sentenciou o poeta.
Naquele momento, havia na revista Recreio importantes escritores que se dedicavam às fábulas infantis – Ruth Rocha e Ana Maria Machado eram nomes dominados pela lembrança de Monteiro Lobato. Já a romancista Rachel de Queiroz, no mesmo ano em que Ziraldo lançou o Flicts, escreveu O Menino Mágico, publicado com ilustrações do italiano Gian Calvi. “Ele foi um ilustrador importante para a literatura brasileira. O Menino Mágico veio um pouco antes do Flicts”, diz Ziraldo ao referir-se às colagens de pano feitas por Calvi.
Filão para todas as idades
A imagem terá, a partir de Flicts, um papel predominante na compreensão da narrativa infantil – anteriormente, apoiada apenas nas palavras. A geração de ilustradores dos anos de 1970 e 1980 levaram a cabo a experimentação e feitura do livro como objeto estético.
Ângela Lago, Eva Furnari e Eliardo França são nomes de destaque nesse cenário. “A literatura infantil se abriu para algo que os críticos chamam de Picture Books, qualquer literatura em que, sem imagem, a obra não acontece. A palavra diz uma coisa; a imagem, seu oposto. E a obra acontece exatamente na negação de um e outro”, explica o ilustrador Odilon Moraes, um dos três curadores da exposição Linhas de História (ver boxe Aprender e Brincar), amplo recorte sobre o panorama do livro ilustrado no Brasil, em cartaz entre os dias 12 de julho e 29 de agosto, no Sesc Belenzinho.
Segundo Moraes, o Picture Book nasceu de uma ideia simples e se tornou uma das obras mais complexas da literatura infantojuvenil. “No processo de aprendizagem existem dois iniciantes: a criança na leitura e o adulto se reiniciando nas imagens”, diz o curador. É comum o adolescente abandonar o livro ilustrado quando ingressa na leitura formal dos clássicos. “O problema do livro para adultos é que é inacessível para as crianças, já os bons livros infantis servem para todas as idades.”
A escritora e ilustradora Eva Furnari completou 30 anos de carreira, no ano passado, com mais de 50 livros publicados, dentre os quais A Bruxinha Atrapalhada, que recebeu o prêmio de melhor livro-imagem da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em 1982. Nascida em Roma, Itália, radicada no Brasil, passa a fazer livretos sem texto na faculdade de arquitetura, ainda na década de 1970, quando nasce sua filha. “A literatura infantil já estava no meu imaginário.
Comecei a fazer ilustrações sem texto e desenvolvi jogos de palavras, até que, em 1990, passei a inventar histórias mais complexas e me tornei escritora também”, diz Eva. O convívio com o universo lúdico a fez perceber que o livro ilustrado é uma alternativa para as crianças diante da imagem vinculada à publicidade, tão recorrente nos dias atuais. “Elas têm acesso a uma arte produzida sem o risco dos estereótipos, uma ponte para as artes visuais”, afirma Eva.
Graça Lima, autora de livro-imagens como Sai da Lama Jacaré, também acredita nesse contraponto ao apelo comercial. “A criança cresce sabendo o que é McDonald’s e marcas de brinquedo. A boa ilustração fará o diferencial em relação à massificação da imagem”, diz. “A criança prefere imagens realistas. Em um primeiro momento, ela sente um estranhamento com a forma abstrata. Mas ao crescer, seu repertório se tornará mais amplo caso os pais incentivem a leitura desses livros.”
A responsabilidade das ilustrações na educação infantil é tal que as editoras são cada vez mais cuidadosas quanto à produção dessas obras. Afinal, o Ministério da Educação é o maior comprador de livros infantojuvenis do país, podendo adquirir em torno de 4 milhões por ano pelo Programa Nacional de Bibliotecas Escolares (PNBE). “É muito importante que eles sejam adotados nas escolas, pois terão vida mais longa.
Temos um cuidado pedagógico, mas também nos preocupamos muito com que as ilustrações estabeleçam diálogo com as crianças”, afirma Júlia Schwarcz, editora do selo Companhia das Letrinhas. Outro fator de mudança é a autonomia dos ilustradores dentro das editoras. Além de receberem direitos autorais, discutem o projeto gráfico com os escritores, prática antes impensável. “Hoje em dia, os ilustradores têm uma narrativa própria, sugerimos que evitem repetir o mesmo caminho trilhado no texto”, afirma Júlia.
Em 2010, os vencedores do Prêmio Jabuti na categoria infantil – Nelson Cruz com Os Herdeiros do Lobo Comboio de Corda (Grupo SM); Roger Mello com Carvoeirinhos (Cia. das Letrinhas); e Ângela Lago com A Visita dos 10 Monstrinhos (Cia. das Letrinhas) – eram todos escritores e ilustradores de suas próprias obras, fato que afirma a dimensão autoral desse profissional no século 21.
Por uma identidade visual brasileira
A partir dos anos de 1990, uma nova geração de ilustradores retoma um antigo tema, esquecido em meio à profusão dos livros importados: a questão da identidade nacional. Um dos fatos marcantes para esse passo foi a homenagem a ilustradores brasileiros realizada na Feira de Bolonha, Itália, em 1995, que os levou a ter contato com a produção internacional.
O autor europeu era muito fiel a suas origens enquanto a produção brasileira evitava esbarrar no nacionalismo tão presente nas obras de Monteiro Lobato dos anos de 1920. “O trabalho deles era infinitamente mais poderoso do que o nosso. Apesar de sermos mais atuantes no mercado, não chegávamos aos pés dos europeus”, revela Graça Lima. “Começamos a nos questionar e chegamos à conclusão de que eles tinham um respeito pela própria cultura muito grande”, completa.
A partir de então a produção de livros ilustrados no Brasil tem uma guinada. “Os artistas fizeram um mergulho ?no folclore brasileiro, passaram a usar uma paleta de cores mais fortes e vibrantes”, informa o ilustrador e curador Odilon Moraes.
Para Graça Lima, alguns desses produtores, entre eles Roger Mello, Andrés Sandoval e Fernando Vilela, estão no limiar da vanguarda devido à experimentação da linguagem e por permitirem à criança ?um repertório imagético apurado. “O livro Lampião e Lancelote, do Fernando Vilela, dialoga com as gravuras do Lívio Abramo”, diz Graça.
Vilela, gravurista e ilustrador, também curador da exposição Linhas da História, no Sesc Belenzinho, afirma que o desenvolvimento da ilustração no Brasil e no mundo só se concretizou pela compreensão do livro como objeto artístico, para além da função didática para crianças. “É uma condição muito específica de trabalho em que texto e imagem se transformam numa forma de expressão artística, tanto que é consumido por adultos também”, ressalta Vilela, que ilustra a capa da Revista E deste mês.
Imagem e tecnologia
Com o desenvolvimento da tecnologia e a inserção do livro digital no mercado, autores se deparam com uma nova mudança por vir, pela qual a animação terá um peso ainda maior na narrativa, proporcionando participação ativa entre leitor e obra. “Estamos diante de uma mudança social grande, com certeza isso altera a maneira de a criança olhar o mundo e acaba interferindo na linguagem do livro”, diz Eva Furnari.
“O livro requer uma escuta mais atenta, e a tecnologia ainda não preenche algo essencial do livro: o ritmo mais humano do texto.” Para Ziraldo, as circunstâncias mudaram, mas a criança é a mesma. “Elas seguem sofrendo e sorrindo pelas mesmas razões. Não podemos fazer previsões quanto ao fim do livro, mas vou continuar a escrevê-los”, informa o autor, que lançará no mês de julho Meu Primeiro Maluquinho em Quadrinhos, pela Editora Globo. A obra contém apenas imagens, para introduzir a criança (e os adultos) no universo narrativo dos quadrinhos. “O adulto só vai ler com felicidade se leu os livros da infância. Se não leu, ler para ele será sempre um sacrifício”, diz.
Colcha de retalhos
Confira algumas linhas de força presentes na produção da ilustração brasileira atual
Livro-Imagem – Não contém palavras e se apoia na narrativa visual para criar significados. “Esse tipo de obra é aberta a qualquer pessoa que se disponha a abandonar a segurança da palavra”, afirma Fernando Vilela, ilustrador e um dos curadores da exposição Linhas da História. Nessa categoria, nomes como Juarez Machado, Nelson Cruz e Roger Mello (ilustração) são destaques.
Humor – A influência do cartoon e das histórias em quadrinho é visível na obra. “O ilustrador que tem como berço o desenho de humor é habilidoso como contador de piadas gráficas e sabe tecer comentários pontuais e irônicos”, afirma Vilela. Eva Furnari, Mariana Massarani (ilustração) e Ivan Zigg são referências para as novas gerações.
Clássicos e Contos de Fadas – Ilustrar clássicos pode ser um desafio, pois esses livros já ocupam o imaginário de crianças e adultos. Trabalhos ilustrativos que renovam a linguagem dessas histórias podem ser conferidos em Chapeuzinho Vermelho e Outros Contos por Imagem, de Rui de Oliveira, e O Rouxinol, Contos de Andersen, de Eliardo França (ilustração).
Experimentais – O trabalho está bem próximo das artes visuais, com inclinação para a busca de materiais novos e soluções que ampliem os sentidos das histórias. “Muitos ilustradores contemporâneos extrapolam os limites da pintura, do desenho, da colagem e das ferramentas digitais”, revela Vilela. Trabalhos como o de Luiz Zerbini, Andrés Sandoval (ilustração) e Daniel Bueno caracterizam-se pela força da experimentação.
Artesanato – Muitos artistas trabalham de forma artesanal para criar ilustrações delicadas e com texturas diferentes. O tecido e o bordado são elementos que aproximam as crianças do universo sensorial do toque, por exemplo. “Em contrapartida ao uso do computador, muitos seguem a tradição do trabalho manual”, diz Vilela. A família Dumont é exemplo representativo dessa tradição. Graça Lima também se aventurou ao compor A Menina Transparente (ilustração).
Cultura Brasileira – Autores vão atrás dos contos e folclores enraizados no interior do Brasil para compor narrativas e ilustrações com influência nas celebrações do candomblé, das lendas amazônicas e histórias de saci. “O tema da cultura brasileira sempre esteve presente na nossa literatura infantojuvenil. As narrações inventadas se apropriam e dialogam com esse universo cultural”, explica Vilela. A imersão nas tradições populares em trabalhos de Roger Mello, Nelson Cruz (ilustração) e Pedro Rafael é exibida na exposição que ocorre no Sesc Belenzinho (veja boxe Aprender e brincar).
Aprender e Brincar
Mostra no Sesc Belenzinho apresenta Labirintos de histórias e contos de fada em tamanho real
A exposição Linhas de História – Um Panorama do Livro Ilustrado no Brasil, aberta ao público no dia 12 de julho, no Sesc Belenzinho, reúne uma pesquisa inédita em torno da ilustração no Brasil. Com curadoria conjunta de Fernando Vilela, Odilon Moraes e Kátia Canton, a mostra abarca a produção de 40 artistas a partir do final da década de 1960 até 2010.
Terá dois núcleos expositivos: Homenagem, sobre cinco livros que se destacaram ao longo do tempo por seu pioneirismo – Flicts, de Ziraldo; A Bruxinha Atrapalhada, de Eva Furnari; O Rei de Quase Tudo, de Eliardo França; Ida e Volta, de Juarez Machado; e Cântico dos Cânticos, de Ângela Lago. As obras funcionam como instalação, reverberando por todo o espaço expositivo com grandes intervenções criadas a partir da temática de cada livro.
No núcleo Panorama, dividido em seis eixos temáticos, será possível mostrar as vertentes da ilustração produzida até então.
Nomes como Ângela Lago, Eva Furnari, Marcelo Cipis (imagem ao lado), Roger Mello e Graça Lima dividem-se em categorias como Livro-Imagem, Humor, Experimentais, Cultura Brasileira e Clássicos, e Contos de Fada. “Esse tipo de produção ocupa um posto quase de vanguarda dentro do gênero. No Brasil, não temos uma pesquisa que dê conta da ilustração brasileira.
Por isso tentamos apontar quem são os principais autores e quais linhas seguem ao longo de suas carreiras”, afirma Alcimar Frazão, assistente responsável pelas exposições de artes visuais do Sesc Belenzinho. A produção brasileira se caracteriza desde o desenho e a pintura, as técnicas tradicionais, a colagem, a fotografia e os bordados. Será a oportunidade de crianças e adultos vivenciarem o mundo mágico das narrativas infantis e entrarem em contato com o universo plástico das ilustrações.
Jogos da imaginação
Edições Sesc São Paulo investem em livros com apelo visual para todas as idades
Os livros experimentais, em que o universo da ilustração ganha força, tanto em histórias para crianças quanto para os jovens, conquistaram espaço de destaque no catálogo das Edições Sesc São Paulo. Exemplo disso é o lançamento, em julho, de Quer Jogar? (imagem ao lado), de Adriana Klisys e ilustrações de Carlos Dala Stella. A narrativa se apoia em regras e conceitos da brincadeira por meio do olhar poético de Carlos Dala Stella.
Já para os jovens, mas sem excluir as crianças das páginas ilustradas por importantes autores brasileiros, as Edições Sesc São Paulo, em parceria com a Cosac Naify, lançaram a coleção Ópera Urbana, composta de quatro livros com apelo gráfico para narrar o ritmo acelerado da cidade de São Paulo.
Uma homenagem à “selva de pedra” por meio de ilustrações que se identificam muito com o jovem que transita pelas ruas. São eles: Av. Paulista, de Carla Caffé; Surfando na Marquise, de Paulo Bloise e ilustrações de Daniel Kondo; Cidade dos Deitados, de Heloisa Pietro e ilustrações de Elizabeth Tognato; e Montanha Russa, de Fernando Bonassi e ilustrações de Jan Limpens.