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Paulo José

Paulo José é um sobrevivente, como afirma em entrevista concedida à Revista E. Veterano dos palcos, iniciou a carreira no Teatro Equipe em Porto Alegre, em 1955, junto a um time de peso – Lilian Lemmertz, Fernando Peixoto, Ítala Nandi, Antônio Abujamra. De lá para cá, expandiu a atuação para o cinema e a televisão, conquistando respeito de crítica e público, além de vários prêmios.

Depois de uma pausa de nove anos no trabalho com o teatro, estreou, em 2009 no Sesc Santana, Um Navio no Espaço ou Ana Cristina César, fruto da convivência com a poeta nos anos de 1980, quando ela era analista de roteiros da Rede Globo. A relação com Ana Cristina César não foi das melhores, mas o ator transpôs as diferenças e realizou uma peça sensível, que trouxe fragmentos de cartas e poemas da escritora morta em 1983.

Em 2011, revisita Murro em Ponta de Faca, texto de Augusto Boal que dirige pela segunda vez (a primeira foi em 1978), no Sesc Belenzinho. “Qualquer um pode se reconhecer e se colocar na posição dos personagens”, define Paulo José. Para ele, a peça se mantém atual porque pouca coisa mudou nesses 30 anos. “A gente vive em uma aparente tranquilidade, pois as guerras são mais localizadas. No entanto, o inimigo de hoje é invisível. Estamos na mão do capital financeiro, a coisa mais terrível e insidiosa que poderia nos acontecer”, declara.

Há 19 anos convive com o Parkinson, doença que, se o afastou da cena durante os primeiros anos, o mantém disposto a seguir em frente e ativo. Levará para o Festival de Porto Alegre a peça História de Amor Líquido, dirigida por ele e baseada na obra do filósofo polonês Zygmunt Bauman. “Sinto-me cansado, mas não dá para diminuir o ritmo do trabalho porque as solicitações estão aí. (...) Não posso parar.”

Por que você resolveu dirigir a peça Murro em Ponta de Faca, do Augusto Boal, e qual é a atualidade do texto?

Fizemos uma série de leituras dramáticas, em 2010, sobre os anos da ditadura, e a peça do Boal foi um sucesso. As pessoas riam e choravam muito. O debate que ocorreu depois foi quente, caloroso, embora a plateia fosse jovem e não houvesse presenciado a repressão.

Em uma conversa com a produtora Nena Inoue, descobrimos que Murro em Ponta de Faca foi o texto que mais havia emocionado as pessoas. E ela me convidou para dirigi-lo, já que eu estava na direção da peça em 1978, quando Boal tinha acabado de escrevê-la e a enviou ao Brasil para ser encenada, porque ele estava no exílio.

Tenho a impressão de que ele a enviou para fazer a campanha da anistia. As peças do Boal sempre tiveram um olhar crítico, irônico, sobre a realidade. Ele conta a história de seis personagens exilados, o que mostra uma fotografia de algo que ele próprio estava vivendo no momento.

Eram seis pessoas que viviam juntas rodando por vários países – do Chile para o México, do México para Buenos Aires, depois para Paris. É um depoimento afetivo dele. A peça pode parecer datada, já que os acontecimentos políticos ocorreram nos anos de 1960.

Mas, independentemente dos fatos – a queda de Salvador Allende no Chile, o AI-5 [o Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, dava poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os que fossem inimigos do regime militar] no Brasil, a América Latina sofrendo um processo de retração política –, a condição de exilado, de estar isolado, desprovido de cidadania, pode ocorrer em qualquer época e lugar. Qualquer um pode se reconhecer e colocar-se na posição dos personagens.

Como hoje o público jovem consegue captar a angústia do desenraizamento e do deslocamento?

Vivemos o perigo de um novo autoritarismo, um fundamentalismo de direita, a exemplo do que ocorreu no governo [George W.] Bush nos Estados Unidos. Ou mesmo [Vladimir] Putin na Rússia e sua política baseada na doutrina da guerra preventiva. O Iraque e o Afeganistão estão desolados. Vemos também os palestinos, que vivem em campos de refugiados, numa situação muito parecida com a dos exilados, sem nacionalidade.

Existem navios que viajam cheios de gente e não podem parar em porto algum. No histórico geral, pouca coisa mudou de 1978 para cá. A gente vive em uma aparente tranquilidade, pois as guerras são mais localizadas. No entanto, o inimigo de hoje é invisível. Estamos na mão do capital financeiro, a coisa mais terrível e insidiosa que poderia nos acontecer. O inimigo é a economia, com a crise que ataca a Grécia, a Espanha, a Itália. E há povos que vêm sofrendo com isso. Essa guerra é invisível.

Você faz parte de uma geração em que o teatro serviu como front. Vocês usavam a arte como um instrumento de política. O que restou daqueles tempos?

Queríamos fazer da arte um instrumento de combate. Éramos muito coerentes, autênticos. As produções eram honestas. Havia o teatro da União Nacional dos Estudantes (UNE), em que os estudantes encenavam peças de guerrilha para apresentarem na rua.

Tinha o teatro de resistência, como a Feira Paulista de Opinião [espetáculo produzido em 1968 com direção de Boal], o qual Augusto Boal coordenou – eram peças curtas de vários autores sobre a situação brasileira da época. Era impressionante como o Teatro de Arena, com uma lotação de apenas 200 lugares, influenciou os teatros de todo o país.

Levava-se em cena o personagem brasileiro, com atores mulatos e caboclos que emergiam não só na dramaturgia, mas dentro do espetáculo teatral. Hoje, temos muito mais negros fazendo teatro graças à investida daquela época. E eles não hesitavam em fazer papéis que eram para brancos, de costume.  No Teatro de Arena de São Paulo havia o Milton Gonçalves, ator negro, que fazia um florentino da Florença dos Médici.

Isso era uma atitude política dentro do grupo. O Arena passou a ser formador de opinião. Procuravam atores que pudessem responder à realidade nacional. Não só na interpretação, mas que falassem de maneira mais coloquial. No Arena, queriam uma naturalidade e espontaneidade principalmente para textos realistas.

Algo que se diferenciava bastante do Teatro Brasileiro de Comédia [TBC], em que os atores tinham uma voz mais bem colocada e um tipo físico mais europeu. Nós, do Arena, éramos contra o TBC, porque achávamos que era um teatro maneirista. Eles mantinham uma postura que não era brasileira.

Como se deu seu envolvimento com a direção?

Sempre fui muito curioso. Gostava de saber sobre tudo que envolvia a concepção do espetáculo. Gostava de ver o funcionamento das coisas, como se articulavam as partes para, no final, a peça se transformar em algo orgânico.

Comecei a dirigir um grupo em 1958, em Porto Alegre. Lá, estavam Fernando Peixoto, Lilian Lemmertz e Antônio Abujamra. No Sul, tínhamos muita ligação com o teatro de vanguarda europeu: Eugène Ionesco, Jean Cocteau. Quando vim para São Paulo, as pessoas daqui não conheciam esse tipo de teatro mais contemporâneo.

Na província, sempre fomos mais sedentos de informações e novidades. Líamos muito mais do que se lê em São Paulo. Nós montamos Esperando Godot, de Samuel Beckett, com direção de Luiz Carlos Maciel. Ficamos muito tempo em cartaz. Quando Bertolt Brecht morreu, em 1956, traduzimos A Exceção e a Regra e a montamos no Teatro Universitário de Porto Alegre. Foi a peça de estreia de Lilian Lemmertz.

Vocês estavam sintonizados com o Teatro de Arena?

Sim, os grupos se comunicavam. O pensamento do Teatro de Arena se cristaliza mesmo em 1956, quando encenam Eles Não Usam Black-Tie. As peças do Arena entraram nesse ciclo, com textos de Gianfrancesco Guarnieri, Vianinha, Chico Assis, Augusto Boal.

Naquela época havia muita leitura. O Jorge Andrade pegava um texto inédito, tirávamos cópia e depois discutíamos. A Semente, do Guarnieri, foi montada por Flávio Rangel no TBC. Assim como o Fauzi Arap, que era ator do Arena, foi para o Oficina. Era uma mistura interessante.

O filme Macunaíma foi um marco na sua carreira?

Algo que se inicia em 1964 com o Cinema Novo, que de alguma maneira tem ligação com o Teatro de Arena, termina em 1968 com o AI-5. Macunaíma representa o fim desse processo criativo.

Quando ocorreu a realização do filme O Grande Momento, de Roberto Santos [1958], desenvolveu-se a noção de microrrepresentação, método do Stanislavski [ator e diretor russo que inovou o método de interpretação cênica] com que, em São Paulo, tanto no Arena quanto no Oficina, passamos a trabalhar.

Augusto Boal foi fazer um curso nos Estados Unidos, no Actors Studio, quando da apresentação da peça Marido Magro, Mulher Chata [Augusto Boal, 1957]. E trouxe de lá umas apostilas do cineasta e diretor Elia Kazan. Começamos a usar esses exercícios no Teatro de Arena. Nos Estados Unidos, todos os atores passaram pelo Actors Studio.

Ao mesmo tempo, trouxemos o método para o cinema brasileiro, que tinha como característica uma espontaneidade maior. Fui um dos primeiros a usar as técnicas no filme de Joaquim Pedro de Andrade, O Padre e a Moça, e depois em Todas as Mulheres do Mundo, de Domingos de Oliveira. Outra característica desse método era que não se podia fazer uma representação exaltada.

Os gestos eram pequenos, a fala baixinha. Isso deu muito resultado para o cinema americano e, no Brasil, o Teatro de Arena introduziu isso. Trazia a ideia de que não se buscava a representação, mas a vivência. Os atores ficavam impregnados por aquela situação. O ator não se preocupa com a expressão, trabalha mais com a impressão.

Isso é Stanislavski. Ainda hoje o ator brasileiro representa muito, ele está preocupado com a expressão. E a expressão é muito mais a relação de como a câmera capta a emoção de um personagem.

Você tem sido muito requisitado por essa nova geração de cineastas. Como é seu trabalho com os jovens?

Sou um sobrevivente. Da minha geração poucos sobreviveram. Percebo que estou cada vez mais econômico. Em O Palhaço, de Selton Mello, fiquei impressionado comigo. Deixo transparecer a serenidade do meu pai. Eu o via ali: severo, grave.

Fiz um filme do Felipe Hirsch, Insolação, de que gosto muito, no qual não me reconheço. Percebo que fiz um bom trabalho quando não sou eu aparente, quando é um outro eu que aparece por trás. Com a idade, meu pai aparece muito em minhas representações.

Isso é bom, torna-se um ponto de partida para meu trabalho, já que a chegada ninguém sabe onde será. Em Benjamin, de Monique Gardenberg, uma adaptação do livro do Chico Buarque, havia algumas dificuldades de filmagem. Na última cena, quando o personagem morre, sintetizava o filme todo. São filmes belíssimos e me emociono por ter feito.

Como você convive com o Parkinson?

Convivo com o Parkinson há 19 anos. Coloquei um chip no cérebro, um marca-passo. E tem um eletrodo que vai por baixo da pele até o fundo do cérebro. Ele emite um sinal que normaliza as disritmias e as arritmias. Os tremores desaparecem e o enrijecimento diminuiu bem.

Com isso, os efeitos colaterais da medicação diminuem. Sinto-me cansado, mas não dá para diminuir o ritmo do trabalho porque as solicitações estão aí. Fiz a peça sobre a Ana Cristina César, faço novela, fiz Murro em Ponta de Faca, História de Amor Líquido vai agora para o Festival de Porto Alegre. E vou viajar com a peça. Não posso parar.


“As peças do Boal sempre tiveram um olhar crítico, irônico, sobre a realidade. [Em Murro em Ponta de Faca] Ele conta a história de seis personagens exilados, o que mostra uma fotografia de algo que ele próprio estava vivendo no momento”


“Queríamos fazer da arte um instrumento de combate. Éramos muito coerentes, autênticos. As produções eram honestas”


“Da minha geração poucos sobreviveram. Percebo que estou cada vez mais econômico. Em O Palhaço, de Selton Mello, fiquei impressionado comigo. Deixo transparecer a serenidade do meu pai. Eu o via ali: severo, grave”


“Sempre fui muito curioso. Gostava de saber sobre tudo que envolvia a concepção do espetáculo. Gostava de ver o funcionamento das coisas, como se articulavam as partes para, no final, a peça se transformar em algo orgânico”