Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Astro do jazz

“Ele olhou para mim e disse: ‘Eu te conheço de Nova York’”, conta o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello sobre um encontro com Miles Davis, em 1986, no Rio de Janeiro, cidade na qual o trompetista iria se apresentar – na casa de shows Canecão.

A conversa relâmpago aconteceu no elevador do hotel onde Miles estava hospedado. “Eu respondi que, de fato, já o tinha visto tocar muitas vezes no [clube de jazz nova-iorquino] Birdland, nos anos de 1950. E fiquei muito surpreso de ele ter me reconhecido.”

A julgar pelo que contam biógrafos e jornalistas que já o encontraram – seja em elevadores, bastidores ou mesmo no apartamento “descolado” onde ele morava, na rua 77 Oeste, em Nova York –, como é o caso do crítico inglês Kenneth Tynan, que incluiu a entrevista, de 1963, no livro de perfis A vida como performance (Companhia das Letras, 2004) , surpreender-se não era difícil na presença de Miles Davis. Sua figura, dizem, era impressionante.

A voz, nas raras vezes em que era ouvida, soava “gorgolejante”, como relata Tynan e confirma Zuza – “era mais para um grunhido que para uma voz”, lembra o jornalista brasileiro –, e seu humor era instável como nitroglicerina: ao mesmo tempo em que era capaz de lembrar-se de alguém que um dia esteve na plateia vendo-o tocar, também sabia ignorar essa audiência, quase sempre ávida de seu talento, com uma solenidade ultrajante.

“[Miles] Jamais anuncia números, se apresenta ou faz piadas”, escreve o crítico inglês. “Jamais agradece, argumentando que sua responsabilidade com a plateia termina assim que a última nota é tocada.” Isso sem contar o vício de drogas que, certa vez, o levou a afanar o instrumento de um colega para comprar heroína.

Cult

Acontece que, a despeito de ser carismático ou não com as massas, bom moço ou bad boy, um artista que entra para a história o faz, antes de tudo, por sua obra. “Ninguém quer saber se Picasso era bom marido, você quer saber de sua pintura”, compara Zuza ao comentar o quanto “Miles Davis era difícil”.

E a sua obra é considerada um dos grandes tesouros da música não somente norte-americana, e não somente da produção jazzística, mas de toda a história moderna da música popular. “Miles Davis é cultuado por diferentes gerações de pessoas que gostam de música de maneira geral, e não apenas de jazz”, avalia Zuza Homem de Mello, que também fez curadoria para dois grandes festivais de música brasileiros: o Free Jazz, que trouxe grandes nomes mundiais para o Brasil de 1985 a 2001, e o Tim Festival, que o substituiu honrosamente de 2003 a 2008.

“Ele tem uma carreira tão ampla, versátil e criativa que consegue obter o interesse das pessoas até hoje.”
Para o especialista, a nascente dessa atenção está na capacidade que Miles Davis mostrou de moldar sua carreira, ao longo das décadas, de maneira a estar sempre à frente do que acontecia. “E essa foi a grande virtude dele, a grande percepção.”

Início bebop

Miles Dewey Davis Jr. nasceu em Alton, Illinois, no dia 26 de maio de 1926. Quando escreveu o perfil do músico, Kenneth Tynan chamou a atenção para um fato da sua vida pessoal que fazia dele um fenômeno ainda mais novo e “relativamente raro” no jazz: ele era um músico negro que nunca conheceu a pobreza.

“De fato, o pai era dentista e a mãe professora de música”, confirma o pesquisador de música popular norte-americana Ronaldo Benvenga, que comanda o programa de jazz Quinta Avenida, na Rádio Trianon AM (740 khz) – é possível ouvir também na internet, pelos sites www.quintaavenida.mus.br e www.trianonam.com.br.

Em 1945, com o apoio financeiro do pai, Davis foi para Nova York e estudou na conceituada Juilliard School, instituição de ensino de artes cênicas e música. Mas a passagem pela escola durou menos de um ano. Ao perceber que o local nunca mostraria interesse pela música negra que se estava fazendo na época, e nas ruas, o jovem pediu para sair.

“Depois ele reconheceu que a formação clássica foi de grande valia para sua carreira, mas ele não quis esperar o diploma”, conta Benvenga.

Poucos meses depois, Miles Davis já tinha colocado a cabeça para dentro da lona do jazz, entrando para banda de Charlie Parker (1920-1955) como terceiro trompetista. Suas primeiras gravações foram feitas ainda em 1945, e ele se tornou um membro não oficial do quinteto de Parker, aparecendo em várias gravações iniciais de bebop, estilo de jazz mais comum na época, “caótico” e marcado por improvisações e andamentos acelerados. “Foi no quinteto do Charlie Parker que Miles Davis começou a sua projeção no jazz”, acrescenta o pesquisador.

Ruptura

Mesmo com o sucesso que começava a experimentar ao lado de nomes como o do próprio Parker e ainda de Dizzy Gillespie (1917-1993), Miles decidiu abrir caminho para a primeira das muitas experiências que viriam a marcar sua carreira e enveredou para um estilo de jazz bem diferente do que se vinha fazendo: o chamado cool jazz – algo como jazz tranquilo, em inglês, mais suave e lento. E esse é o som pelo qual a maioria se lembra de Miles Davis até hoje.

“É um estilo mais acessível”, define o jornalista Emerson Lopes, editor do site Guia de Jazz (www.sobresites.com/jazz) e autor do livro Jazz ao seu alcance (Multifoco, 2009).

O andamento mais tranquilo do cool jazz e os solos longos e suaves, acabaram se tornando algumas das maiores características do som de Miles Davis – cuja maior expressão é a obra-prima Kind of Blue, disco de 1959, considerado não somente um marco na carreira do músico, mas um dos maiores discos de jazz da história.

“Primeiro por uma questão do contexto mesmo, houve essa ruptura com o bebop, que já estava cansativo”, observa Lopes. “E, além disso, tem o time que ele escalou para o disco, que o faz ficar ainda mais histórico: ele no trompete, Cannonball Adderley no sax-alto, John Coltrane no sax-tenor, Bill Evans no piano, Wynton Kelly no piano também, Paul Chambers no contrabaixo, Jimmy Cobb na bateria.”

Para o jornalista, outro trunfo de Kind of Blue é estar no ponto de convergência entre a qualidade e a complexidade musical e a acessibilidade para ouvidos menos treinados. “É um disco muito fácil de ouvir”, analisa. “Isso acabou popularizando-o mais do que outros do jazz ou mesmo do próprio Miles Davis.”

Na surdina

Para o músico Nahor Gomes, trompetista na Banda Mantiqueira, outra lição de casa quando o assunto é Miles Davis é atentar para a limpidez com que as notas saíam de seu trompete. Um som livre do que, em música, se conhece por vibrato, recurso que consiste em oscilar a altura da nota principal, fazendo-o “tremer”. “Eu acho isso muito interessante na maneira dele de tocar”, diz Gomes. “Porque, na época, os trompetistas usavam muito vibrato no som.

E ele já quebra com isso de cara, mudando a estética.” Além disso, Miles Davis personificou o uso da surdina, peça que se coloca nos instrumentos de sopro para enfraquecer ou abafar o som. “Ele começou a usar a surdina Harmon para solos”, segue o trompetista.

“Aproveitando muito o recurso de tocar perto do microfone, tocando de uma forma bem leve, extraía um som diferente da surdina, um som ‘maior’, não no volume, mas o timbre acabava mudando, o som ficava ‘aerado’. E isso é muito marcante até hoje.”.

Gomes conta que, de tão famosa nas mãos de Davis, a peça acabou se tornando uma espécie de propriedade do músico no métier musical. “É comum a gente sair para tocar ou para fazer uma gravação e o arranjador pedir pra usar aquela ‘surdina do Miles’ (risos). A surdina Harmon ficou sendo a surdina do Miles.”

Visionário

É certa e indiscutível a importância de Miles Davis para o jazz e para a música em geral – e mais seu talento, estilo único etc. –, mas há outro aspecto importante a ser observado quando se analisa por que ele se tornou tão conhecido, mesmo daqueles que não necessariamente se interessam pela infinita constelação do jazz norte-americano.

Em outras palavras, das dezenas de músicos que zanzavam por Nova York, Chicago ou Nova Orleans, nos anos de 1940 e 1950, Miles foi um dos poucos que experimentaram o gosto da celebridade. A ponto de, nos anos de 1960, chegar a ganhar entre US$ 3.500 e US$ 4.500 por semana nos clubes onde tocava.

A ponto também de poder escolher em qual deles se daria ao trabalho de tirar o trompete do case – geralmente locais cujos donos não tivessem sido “tocados pelo espírito segregacionista”, como destaca o crítico Kenneth Tynan, uma vez que consciência sociopolítica era um dos atributos do músico.

Na análise de Zuza Homem de Mello, o fator X de Miles Davis foi o visionarismo. “Ele soube estar à frente de sua época durante toda a sua carreira”, diz o especialista. “E com isso ele conseguiu atingir setores do jazz que outros músicos não conseguiram.”

Alguns dos exemplos desse alcance, afirma o musicólogo, estão na fase jazz fusion de sua carreira, na virada dos anos de 1960 para 1970, quando ele se interessou por sonoridades mais eletrônicas e amplificadas – como o funk de Sly Stone e James Brown (1933-2006) e o rock’n’roll de Jimi Hendrix (1942-1970) – e se misturou a elas.

Daí o fusion – fusão em inglês. Na época, o próprio Miles ligou seu trompete na tomada, dando início a uma nova fase. São dessa época álbuns como In a Silent Way (1969) e Bitches Brew (1970). “Na fusion, ele consegue, por exemplo, atingir o rock”, continua Zuza. “E as pessoas que não estavam nem um pouco interessadas em jazz acabaram se interessando pelo Miles Davis. Ou seja, ele ampliou o seu público, atravessando as barreiras que se erguem em função dos diferentes estilos musicais.”

Miles Davis morreu em 28 de setembro de 1991, vítima de um AVC e de complicações decorrentes de uma pneumonia e insuficiência respiratória, no estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Ele tinha 65 anos.


Compasso acelerado

1945
Miles Davis deixa o academicismo da Juilliard School para mergulhar no som das ruas de Nova York, quando entra para o quinteto de Charlie Parker.

1949 e 1950
O trompetista começa a trabalhar com o maestro Gil Evans, que passaria a fazer o arranjo dos seus álbuns; as sessões ficaram conhecidas como The birth of the cool (o nascimento do cool).

1955
Davis cria seu primeiro Miles Davis Quintet, grupo que reúne John Coltrane (saxofone tenor), Red Garland (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Philly Joe Jones (bateria).

1959
Miles Davis lança Kind of Blue, considerado obra-prima da história do jazz. Junto com Davis, no disco, tocam Cannonball Adderley (sax-alto), John Coltrane (sax tenor), Bill Evans (piano), Wynton Kelly (piano), Paul Chambers (contrabaixo) e Jimmy Cobb (bateria).

1965
Sai o álbum E.S.P; que traz o chamado segundo grande quinteto de Miles Davis, a formação agora tem Wayne Shorter no saxofone, Herbie Hancock no piano, Ron Carter no baixo e Tony Williams na bateria.

1968 a 1975
É a fase elétrica e psicodélica de Miles, influenciada, entre outros gêneros, pelo rock lisérgico de Jimi Hendrix.

1981 a 1991
A década de 1980 é a que mais divide os interessados na música de Miles Davis. Há quem o conheça mais por ela e os que torcem o nariz para coisas como as versões de Time after Time, de Cyndi Lauper, e de Human Nature, de Michael Jackson, ambas encontradas em You’re Under Arrest, de 1985.


Homenagem ao Ícone

Após deixar a Cité de la Musique, em Paris, exposição com fotos e objetos de Miles Davis chega a São Paulo

Organizada originalmente pela instituição cultural francesa Cité de la Musique, a mostra, que, no Brasil, recebeu o divertido nome de Queremos Miles!, já passou pelo Museum of Fine Arts, de Montreal, no Canadá, e pelo Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) do Rio de Janeiro. Em São Paulo, a grandiosa exposição – são mais de ?300 peças – foi organizada pelo Sesc São Paulo, na unidade Pinheiros, onde abriu no dia 19 de outubro e fica até 25 de janeiro de 2012.

Podem ser vistas partituras originais, manuscritos, instrumentos de companheiros de viagem de Miles Davis, cedidos pela família do músico, além de filmes, documentários, obras de arte – como pinturas de Jean Michel Basquiat –, fotografias da top fotógrafa norte-americana Annie Leibovitz e de Irving Penn, e mais roupas, figurinos, prensagens vintage de seus discos e uma grande coleção de trompetes.

Segundo o curador da mostra, o francês Vincent Bessières, toda a cenografia foi desenhada tendo a música de Miles como ponto de partida. E a tecnologia das instalações, conta, permitirá ao visitante descobrir a trajetória do artista, com temas como a infância em St. Louis, a descoberta do sonho do bebop, a abertura do caminho para o cool jazz, a união com a vanguarda jovem negra e a invenção do estilo de jazz livre e intuitivo.

“A mostra está dividida entre diferentes seções que mostram como a vida e a música de Miles Davis mudaram através dos tempos”, contou Bessières à reportagem da Revista E. “É uma mostra multimídia, na qual diferentes meios se unem para contar uma história e criar uma jornada por sua obra.”

A combinação de diversos aspectos técnicos possibilita uma experiência high tech de som e imagem. Segundo a organização, Queremos Miles! busca recriar “a experiência sensorial inspirada por Miles Davis pessoalmente”.

Bessières complementa dizendo que, com isso, o que se quis foi uma mostra que fosse capaz de refletir a intensidade da própria música de Miles Davis. “Trabalhamos cuidadosamente com o engenheiro de som para criar cabines de som, nas quais você pode realmente ter uma experiência com o som e a música dele, porque para mim isso é o mais importante.” O curador finaliza dizendo que, infelizmente, ele não teve a oportunidade de ver Miles Davis ao vivo, mas que justamente por isso ele se sente tão feliz por ser capaz de criar essa exposição. “É realmente um trabalho com amor.”

A música de Miles Davis pôde ser ouvida também na trilha do filme Ascensor para o Cadafalso (1958), filme do diretor francês Louis Malle, que o CineSesc exibe em novembro. O clássico, com Jeanne Moreau no elenco, conta a história de um casal de amantes que, para se livrar do marido dela, planeja o crime perfeito, fazendo-o parecer um suicídio. Mas as coisas, claro, não saem como o planejado e tem início uma trama intrincada embalada por temas compostos e interpretados por Miles Davis, que a fazem ainda mais hipnótica.

::