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A saúde como prática popular

A educação popular em saúde valoriza a cultura e os saberes ao longo da história. Por meio de ações sociais e práticas pedagógicas, contribui para o bem-estar coletivo ao agregar conhecimento milenar a técnicas da medicina moderna.

Pensando nisso, foi realizado no Sesc Santo André um encontro sobre o tema com os principais agentes da área. Para dar continuidade ao debate, o professor Gastão Wagner de Sousa e a médica Vera Dantas trazem novas visões sobre saúde popular em artigos inéditos.



Educação Paideia, ciência e as práticas populares em saúde
por Gastão Wagner de Sousa Campos

A medicina e a saúde pública, desde sua origem, reconhecem a importância, para a saúde, do modo de vida das pessoas. Alimentação, higiene, saneamento básico, equilíbrio emocional, trabalho, atividade física, ambiente e hábitos saudáveis, tudo isso interfere na quantidade e na qualidade dos anos vividos.

Saúde, em geral, é medida pela ausência de doença e pelo adiamento da morte. O enfrentamento desses adversários nunca ficou por conta somente de especialistas. Caberia às pessoas e às comunidades o cuidado consigo mesmo. Entretanto, tanto para a Saúde Pública como para a Medicina modernas, a população necessitaria ser educada.

Os meandros da saúde e da doença seriam tão misteriosos que somente o árduo e sistemático esforço da ciência conseguiria desvendar seus segredos. Os costumes populares, a tradição terapêutica leiga, as noções de proteção à saúde do senso comum estariam contaminados por superstições, preconceitos e erros grosseiros. A saúde coletiva dependeria, portanto, de que a população fosse educada segundo as verdades da ciência médica e sanitária.

Daí, talvez, advenha o forte traço pedagógico da instituição médica. Uma educação ao estilo iluminista, em que o detentor da verdade científica deveria esclarecer o vulgo sobre o cuidado de si mesmo. Durante anos, médicos e enfermeiros desfrutaram de grande consideração, sua palavra era o caminho para a vida saudável, ainda que a maioria das pessoas, simples pecadores, nem sempre seguisse suas prescrições.

A Saúde Pública herdou essa perspectiva pedagógica autoritária da medicina, tratando de radicalizá-la ao transformar em objeto de leis condutas e comportamentos considerados nocivos à saúde. Os infratores deveriam padecer algum tipo de punição.

Os resultados dessa forma de “educação” são controversos. O programa de vacinação no Brasil é considerado modelar em todo o mundo. Por meio de um sistema público (o Sistema Único de saúde – SUS), da produção conforme as necessidades sociais e da aplicação gratuita e sistemática de vacinas, reduziu-se a mortalidade infantil e se preveniram epidemias.

Essa saga começou na primeira década do século 20, quando proclamou-se a Lei da Vacinação Obrigatória contra Varíola. Conforme nos relata Nicolau Sevcenko, em seu livro A Revolta da Vacina: Mentes Insanas em Corpos Rebeldes, essa campanha provocou um motim popular na cidade do Rio de Janeiro. Ele observa que grande parte da intelectualidade de então apoiou e até mesmo estimulou a rebeldia dos moradores da capital. Segundo o autor, nunca se contaram os mortos dessa rebelião, reprimida duramente pelas Forças Armadas. Eficácia no controle da varíola e desastre político e cultural.

Alguns anos depois, houve a campanha contra o amarelão e outras verminoses que acometiam a maioria dos brasileiros em virtude das precárias condições de vida e de trabalho no campo. Essas enfermidades agravavam a desnutrição, que era, então, um flagelo epidêmico, facilitando o advento de várias doenças infecciosas.

Pois bem, sob a liderança criativa de Monteiro Lobato, construiu-se a figura do Jeca Tatu, uma caricatura do brasileiro pobre, malvestido e, em geral, analfabeto. O Jeca era apresentado como um selvagem que necessitaria ser civilizado para que usasse botinas, lavasse os alimentos e adotasse padrões de higiene adequados aos costumes da elite. Essa simples mudança de comportamento enriqueceria o Brasil e o próprio Jeca Tatu.

Nosso grande escritor (apesar da crítica, considero Monteiro Lobato um grande artista e não concordo com aqueles que pretendem colocá-lo em um índex do suposto politicamente correto) estimulou o preconceito contra a gente da roça, desvalorizou sua sabedoria e cultura tradicional e ainda simplificou a complexidade dos problemas e carências que, de fato, a afligiam.

Além de tudo, o resultado dessa campanha foi pífio desde a perspectiva sanitária. A legislação de proteção ao trabalho e o salário mínimo fizeram muito mais pela saúde da população do que esse programa “educativo”.
Recentemente, dentro dessa mesma tradição, o SUS armou uma grande campanha contra o tabaco.

Usaram-se recursos de comunicação – a divulgação de evidências sobre o risco de fumar, ainda que o maior impacto seja atribuído às imagens – fotos – de pacientes vítimas de câncer e outras doenças e o fumante sendo apresentado como um suicida egoísta, que estaria lesando a si mesmo e aos outros. Apesar dessa estratégia agressiva, a eficácia sanitária dessa campanha deveu-se principalmente à força da lei.

Editaram-se normas severas restringindo a propaganda, a venda e o uso do tabaco, proibiu-se o fumo em todo espaço de convivência fechado e, com tudo isso, a prevalência desse hábito reduziu-se drasticamente entre os brasileiros. Apesar de coercitivo, o programa conseguiu atingir seus objetivos.

Desde os anos setenta, vários profissionais vêm criticando essas estratégias educativas. Inspirados em Paulo Freire e no construtivismo social, chamaram atenção para a desvalorização da cultura popular pelas instituições de saúde. Descobriu-se, por exemplo, que a alimentação básica de quase todo o Brasil – arroz, feijão, legumes, ovos e pequenas porções de carne – era extremamente saudável.

Assegurando crescimento e desenvolvimento adequado às pessoas e evitando o risco da obesidade. Mais do que inventar dietas em laboratórios, caberia aos profissionais dialogar com a população sobre seus próprios hábitos alimentares, estimulando a troca de conhecimentos e de experiência entre a comunidade e, em alguns casos, apresentando sugestões técnicas.

A partir desse referencial, vêm se reformulando vários programas de saúde, repensando-se o pré-natal, o aleitamento materno e mesmo o cuidado especializado com vários portadores de doenças de longo curso e que exigem terapêutica especial. Em vários serviços públicos do mundo, experimentam-se formas de clínica compartilhada, em que pacientes e seus cuidadores são estimulados a realizar uma espécie de cogestão de seu projeto terapêutico.

Nessa perspectiva os profissionais têm obrigação tanto de informar o usuário sobre seu problema de saúde – prognóstico, terapêuticas, efeitos colaterais, riscos etc. – quanto de escutar e de considerar sua história de vida, hábitos culturais, valores e desejos. Um grupo de pesquisadores, coordenados pela professora Rosana Onocko Campos, organizou um manual sobre psicofármacos para portadores de transtornos mentais, com base no qual a equipe compartilha todo o processo de atenção à saúde. 

Um evento trágico, a epidemia de Aids, obrigou a saúde coletiva a rever, com ainda maior radicalidade, nosso referencial sobre educação em saúde. O controle da epidemia dependia de mudança de hábitos estritamente de ordem pessoal; a saber, a sexualidade, a relação com outros, o uso de drogas injetáveis e o cuidado de si mesmo, enfim, dependia de mudanças nas próprias pessoas.

Assim, as estratégias de prevenção e de promoção passaram a respeitar e a interagir com as escolhas existenciais das pessoas, cuidando para reduzirem-se riscos e eventuais danos decorrentes dos vários estilos de vida. Isso tem nos obrigado a inventar estratégias singulares conforme a coletividade com que se trabalha: ora jovens – alguns universitários, outros da periferia –, ora idosos – alguns religiosos, outros hedonistas, e assim por diante.

Para o bem-estar, necessitamos tanto de trabalho especializado – prevenção e clínico – quanto de práticas de autocuidado. A educação em saúde deverá ser uma educação para a defesa da vida, no entender dos gregos, Paideia; ou seja, a capacidade de compreender e de agir sobre si mesmo e sobre o mundo.

Gastão Wagner de Sousa Campos é professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).


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Diálogos entre as práticas populares de cuidado, a promoção e o cuidado em saúde
por Vera Lúcia de Azevedo Dantas

Trazer à cena a temática do cuidado e da promoção da saúde sob a perspectiva da educação popular nos remete a situar os cidadãos como centro dos processos de organização das práticas de saúde, a serem pautadas nos desejos e necessidades da população.

Para Leonardo Boff, a globalização de sociedades do capitalismo avançado tem levado à perda de valores humanos nos planos da ética, da política, da convivência social e à valorização do individualismo, do consumismo, do poder como fontes privilegiadas de consideração e status, privatizando os meios de produção e promovendo a desigualdade no acesso aos bens necessários à vida.

Malgrado os extensos e graves desafios que permanecem, é possível vislumbrar cenários nos quais as ações de saúde estejam voltadas para o enfrentamento dos seus condicionantes e caminhem no sentido da produção de um processo emancipatório dos sujeitos sociais, promovendo diálogos entre os serviços e os movimentos populares na luta pelo direito à saúde e à vida.

Falamos de saúde não apenas na sua dimensão fisiológica ou material, mas como algo que nos remete à singularidade do ser humano como ser complexo, multidimensional, em sua integralidade biopsicossocial e espiritual e com potencial de construir superações para os desafios cotidianos.

Nesse sentido, percebe-se a importância de que profissionais de saúde e cidadãos em geral busquem construir diálogos no que diz respeito à compreensão e ao enfrentamento de situações que produzem o adoecimento dos cidadãos com suas múltiplas e singulares necessidades, submetidas às mais diferentes situações de vida e de trabalho, reconhecendo os cidadãos como sujeitos ativos, que se corresponsabilizam pelo seu processo saúde-doença.

Apesar da importância inquestionável do sistema de saúde oficial, ofertado à população, não podemos negar outros itinerários terapêuticos construídos no cotidiano das culturas populares no seu processo de busca de recuperação da saúde e superação dos agravos vivenciados cotidianamente. Esse conjunto de elementos provenientes do chamado “saber de experiência feito”, como define Paulo Freire, às vezes é visto emblematicamente com a denominação genérica de medicina popular, ou saúde popular. 

A Organização Mundial da Saúde (OMS) caracteriza essas práticas como “medicina tradicional”, que define como “práticas, enfoques, conhecimentos e crenças sanitárias diversas que incorporam medicinas baseadas em plantas, animais e minerais, terapias espirituais, técnicas manuais e exercícios”.

É importante lembrar que o trabalho em saúde tem sido historicamente construído sob a hegemonia do conhecimento técnico-acadêmico, o qual, via de regra, não está acessível à população. Nessa perspectiva, temos uma contradição onde se tem nos contextos de vida da população todo um arsenal de práticas que se orientam numa perspectiva integral e humanizadora, e concomitante observa-se que a organização dos serviços de saúde ainda se pauta hegemonicamente pela racionalidade biomédica.

Que amplidões ofuscam e desvelam essa nomeação de medicina popular e como essas práticas são reconhecidas e visibilizadas pelo sistema oficial são questões importantes para que esses diálogos se estabeleçam. 
Nesse contexto, a educação popular oferece um instrumental teórico fundamental para o desenvolvimento dessas novas relações, “através da ênfase ao diálogo, a valorização do saber popular e a busca de inserção na dinâmica local” (VASCONCELOS, 2001, p. 14), tendo a identidade cultural como base do processo educativo e compreendendo que o “respeito ao saber popular implica necessariamente o respeito ao contexto cultural”. (FREIRE, 1999, p. 86).

A aproximação entre os profissionais da saúde e os sujeitos populares com suas vivências de cuidado, historicamente construídas na luta popular como superação às dificuldades de acesso ao sistema oficial e que Freire (1987, p. 77) denomina saber de experiência feito, possibilita o reconhecimento do protagonismo desses sujeitos na promoção do cuidado à saúde em sua diversidade e singularidade.

Aqui referendamos Leonardo Boff (Boff, 1999), que traz a ideia de cuidado como essência humana, como relação amorosa para com a realidade, cuja ética se orienta na defesa da vida e das relações solidárias e pacíficas entre os seres humanos e com os demais seres da natureza.

Portanto, pensar a saúde sob a ótica do cuidado significa incluir dimensões como a espiritualidade, entendida como a capacidade de transcender, de unir, ligar, religar e integrar os seres humanos entre si e com o mundo; a cordialidade e a convivialidade, estreitando as relações; a compaixão como capacidade de compartilhar a paixão com o outro, de sair do seu próprio círculo e entrar no universo do outro em sinergia; assim, podemos pensar a humanização na saúde.

Nesse sentido, o reconhecimento do jeito de fazer saúde acumulado tradicionalmente nas formas populares de cuidar, que optamos por nomear Práticas Populares de Cuidado, tem desvelado possibilidades de construção de processos de cuidado dialogados, participativos e humanizados, acolhedores da cultura e do saber popular.

Podemos considerar essas práticas como práticas sociais, uma vez que se constituem no encontro entre diferentes sujeitos, que se identificam com uma postura mais integradora do ser humano, reconhecendo e legitimando crenças, valores, conhecimentos, desejos e necessidades das classes populares, refletindo sua leitura do mundo, referenciadas na ancestralidade, nas experiências e condições de vida, no contexto sociocultural, e reconhecendo o ser humano em sua totalidade, comprometido com a transformação da sociedade, com o enfrentamento das iniquidades e a emancipação dos atores.

Podemos aqui nomear alguns dos seus protagonistas, entre os quais estão parteiras, raizeiros, benzedeiras, pajés, xamãs, puxadores de ossos, massoterapeutas, homeopatas populares, terapeutas comunitários, mães e pais de santo e outros atores vinculados aos espaços de afrorreligiosidade, os mestres da cultura popular e tantos outros, cujas principais referências são a profunda vinculação e amorosidade às pessoas e à comunidade onde vivem e a luta solidária por uma vida mais digna para todos.

A riqueza de potencialidades dessas diversas formas de cuidado tem desvelado possibilidades de diálogo concreto dessas práticas com o sistema oficial de saúde. Essas potências têm concretizado ações que caminham no sentido do acolhimento e humanização, da desmedicalização, da mobilização comunitária, da escuta qualificada e da produção de espaços e ferramentas criativas para a produção do cuidado, para a reflexão sobre diversas situações de adoecimento e sua prevenção partindo das culturas locais, de forma a promover a saúde e a autoestima, fortalecendo os vínculos comunitários e a identidade.

Em alguns municípios brasileiros, existem iniciativas de inclusão dessas práticas como complementares ao trabalho das equipes de saúde da família, fortalecendo os vínculos, ampliando o olhar dos profissionais e da própria população sobre a realidade. O reencontro da ciência com o saber popular, saber de experiência feita, remete-nos à necessidade de um saber plural, no qual os profissionais de saúde e a comunidade possam vislumbrar atos-limite subvertendo a dominação e estabelecendo o inédito (viável), como nos ensina Paulo Freire.

Vera Lúcia de Azevedo Dantas é médica e educadora popular em saúde pública e doutora pela Universidade Estadual do Ceará.


“Falamos de saúde não apenas na sua dimensão fisiológica ou material, mas como algo que nos remete à singularidade do ser humano como ser complexo, multidimensional, em sua integralidade biopsicossocial e espiritual e com potencial de construir superações para os desafios cotidianos”