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O que fazem os bons ventos

por Carlos Juliano Barros

Quem acessar o site do Ministério de Minas e Energia (MME) e baixar o arquivo “Matriz Energética Nacional 2030” lerá na tela do computador um texto com informações definitivamente ultrapassadas. Lançada pelo governo federal em novembro de 2007, a publicação traz previsões para as próximas duas décadas sobre a oferta e o consumo de eletricidade no país. No entanto, em sua página 159, o documento registra uma análise que não se confirmou: “No caso das centrais eólicas, deve-se reconhecer que o esforço de redução do custo de investimento ainda não deverá conferir competitividade econômica a essa alternativa, pelo que sua consideração significa a necessidade de manutenção de mecanismos de incentivo”.

De 2007 para cá, contrariando o ceticismo dos técnicos do Planalto e de muitos analistas de mercado, o crescente número de empreendimentos de energia eólica no país vem derrubando uma série de mitos. O mais forte deles é o de que a eletricidade gerada a partir dos ventos, apesar de ambientalmente sustentável, é cara e pouco competitiva. Mesmo sem contar com os indispensáveis subsídios de anos atrás, hoje a energia eólica já constitui a segunda fonte mais barata do país – o topo do pódio pertence às usinas hidrelétricas de grande porte. Isso porque, em menos de uma década, seu preço foi reduzido em impressionantes dois terços, de R$ 300 para R$ 100 o megawatt-hora (MWh). “Ela realmente se consolidou, e a tendência é crescer. Eu diria que o Brasil talvez seja o país que está contratando energia eólica a menor preço no mundo”, avalia Maurício Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão vinculado ao MME e responsável por estudos que subsidiam o planejamento do setor energético brasileiro.

“Mas por que o preço caiu tanto?”, pergunta Antonio Carlos Tovar, chefe do departamento de energia alternativa do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a principal financiadora dos empreendimentos eólicos. “A questão mais relevante é o avanço tecnológico”, ele mesmo responde. Por exemplo, desde 2004, quando foram instalados os primeiros parques eólicos no país, as torres que sustentam os aerogeradores simplesmente dobraram de altura e atingiram 100 metros, possibilitando dessa forma a “captura” de ventos mais intensos.

“Além disso, com a crise na Europa, vários fabricantes internacionais direcionaram a comercialização de seus equipamentos para o Brasil”, comenta Tovar. De acordo com Tolmasquim, “as empresas de fora que vêm para cá acabam pagando o preço da entrada, oferecendo seus produtos a valores mais competitivos como estratégia para ganhar espaço no mercado”. Outro dos fatores que vêm contribuindo para essa mudança é o real sobrevalorizado, que barateia a importação de componentes e ajuda a derrubar ainda mais os custos. Se em 2004 o capital inicial para montar um parque eólico – o chamado Capex – era da ordem de € 6.400 (o equivalente a R$ 15 mil) por MW instalado, hoje o investimento caiu pela metade.

Para se ter uma ideia da efervescência do mercado e do ímpeto dos investidores em energia eólica no Brasil, vale citar que o valor de todos os projetos aprovados pelo BNDES para esse segmento praticamente triplicou de 2010 para 2011 – um considerável salto de R$ 1,2 bilhão para R$ 3,4 bilhões. “Nossa expectativa é que em 2012 tenhamos um ano tão bom quanto o anterior, em função da carteira de projetos em análise”, analisa Tovar. Em média, o BNDES financia 60% do custo total de um parque eólico. Além dele, alguns atores privados conhecidos do mercado financeiro – como o banco BTG Pactual e o fundo de investimentos Rio Bravo – também começam a aportar recursos.

Por enquanto, a contribuição da energia eólica para o conjunto da matriz energética nacional é bastante tímida: menos de 1,5% do total de 117 GW instalados. Porém, se todos os 281 empreendimentos a ser construídos até 2014 realmente saírem do papel, haverá um aumento substancial de carga no sistema elétrico. A entrada em operação desses novos parques – localizados sobretudo nos estados do Rio Grande do Norte, Bahia, Ceará e Rio Grande do Sul – acrescentará expressivos 7,2 GW ao atual 1,2 GW de eletricidade gerada a partir dos ventos.

A Associação Brasileira de Energia Eólica (Abeeólica), que representa as indústrias do setor, alimenta um sonho ainda mais ambicioso: ver esse número inflar para 20 GW até 2020. “O potencial eólico do país é quase 300 vezes superior ao da geração efetiva atual”, garante Elbia Melo, presidente executiva da entidade. Em sua avaliação, 2011 foi o ano de consolidação da energia dos ventos no país. Agora, inicia-se uma nova etapa, ainda mais desafiadora: a da inovação industrial com vistas a garantir maior eficiência a essa fonte.

Do subsídio à competição

Elbia conta que a história da energia eólica no Brasil conheceu três fases. A primeira delas data de 2004, ano em que o governo federal, com o propósito de exorcizar de uma vez por todas o fantasma do apagão de 2001 e, de quebra, limpar a matriz energética, regulamentou o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (Proinfa). Além das centrais eólicas, enquadravam-se na categoria “alternativas” as usinas de biomassa e as pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Contudo, 2004 não ficou marcado apenas pelo lançamento do Proinfa, mas sobretudo pela completa remodelação do setor elétrico nacional. Desde então, passou a ser adotado o mecanismo dos leilões, pelo qual o governo federal organiza basicamente dois tipos de competição: uma relativa às empresas que se interessam apenas pela geração de eletricidade e outra voltada para as companhias que se dedicam exclusivamente à transmissão da energia.

“Por que foi criado o Proinfa? Justamente porque as fontes alternativas não tinham competitividade. Os custos de produção eram muito superiores ao preço corrente da energia”, explica Elbia. Por essa razão, as tarifas previstas nos contratos celebrados oito anos atrás entre as empresas e o governo federal eram fortemente subsidiadas – na casa dos R$ 300 o MWh. “Esses contratos a preços altos serviram para que pudéssemos botar na praça os primeiros aerogeradores”, conta Alexandre Street, professor do Departamento de Engenharia Elétrica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). A principal virtude do Proinfa foi sinalizar para as indústrias de bens de capital – as fabricantes dos equipamentos – que o Brasil iria, sim, apostar suas fichas na eletricidade dos ventos.

Porém, nos cinco anos seguintes ao lançamento desse programa, não houve mais nenhuma contratação. “Então veio a segunda fase, a partir de 2009, período em que a energia eólica começou a entrar no mercado de forma mais competitiva”, explica Street. Isso só foi possível porque, ao longo desse hiato de meia década, a crise mundial e o desenvolvimento tecnológico do setor fizeram o preço do MWh despencar para cerca de R$ 180. Para dar novo fôlego ao setor, o governo federal resolveu, ainda naquele ano, fazer um leilão para contratar somente geradores de energia eólica, já sem qualquer tipo de subsídio. “Isso também contribuiu para a consolidação da tecnologia na matriz. A prova disso é que não houve necessidade de novos leilões exclusivos, visto que os preços se tornaram competitivos”, pondera Antônio Leite, pesquisador do Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), órgão vinculado à Eletrobras.

O ápice desse processo de consolidação se deu nos recentes leilões realizados no segundo semestre do ano passado, em que as geradoras eólicas puderam, enfim, entrar na disputa com outras fontes, incluindo as termelétricas e as grandes hidrelétricas. “Hoje, nesse ambiente de contratação regulada, todas as fontes de energia acabam competindo entre si”, afirma Tovar, do BNDES. O mesmo não se dá na Europa. Lá, os empreendimentos eólicos ainda contam com subsídios estatais – recursos que, em tempos de crise, governos locais não parecem mais dispostos a desembolsar. “Eles contratam fontes alternativas pela metodologia do feed-in tariff, que nada mais é do que o leilão com a tarifa estabelecida, da mesma forma que fizemos no início do Proinfa”, recorda Elbia. “Utilizamos esse mecanismo uma única vez, mas o resto do mundo continua lançando mão dele”, afirma.

Por aqui, o preço da energia eólica caiu tanto que, dos 1.365 MW contratados pelo governo federal no leilão de dezembro de 2011 para ser adicionados ao sistema dali a cinco anos, 81% terão o vento como força motriz essencial. Daqui para a frente, porém, a tendência é os preços se estabilizarem. “A segunda fase da energia eólica acabou em 2011”, sentencia Street. “Agora, de 2012 em diante, inicia-se uma terceira fase, em que a inovação científica vai se fazer necessária para que a eletricidade vinda dos ventos possa competir de maneira ainda mais arrojada no mercado”, complementa.

Tropicalização

Apesar do cenário promissor, o Brasil precisa vencer alguns desafios. Um dos mais urgentes é a chamada “tropicalização tecnológica”, como define Maurício Tolmasquim. “Na verdade, são duas questões diferentes: o desenvolvimento tecnológico e o aumento do conteúdo nacional nos parques eólicos”, define o presidente da EPE. Atualmente, quem detém o conhecimento para transformar a força do vento em eletricidade são empresas sediadas principalmente na Europa – como a alemã Wobben, a francesa Alstom e a espanhola Gamesa. De olho no mercado da América do Sul, algumas delas já cruzaram o Atlântico. No caso do Brasil, a isenção de alguns impostos até 2015 tem atuado como um forte atrativo. “Temos nove fábricas instaladas aqui e uma capacidade de produção de quase 4,4 mil MW por ano, que é uma coisa enorme”, comemora Tolmasquim.

Vale lembrar que quando os primeiros parques foram projetados, na época do Proinfa, ainda em 2004, estimava-se o fator de capacidade dos aerogeradores – o rendimento propriamente dito – em cerca de 32%. Porém, uma vez instalados os equipamentos, uma agradável “surpresa” aconteceu: a qualidade natural dos ventos brasileiros fez esse fator subir para 45%. Hoje, com as inovações desenvolvidas nos últimos anos, já existem parques eólicos trabalhando com índices superiores a 50%. Por essa razão, sustenta Antônio Leite, do Cepel, “não se trata, exatamente, de tropicalizar a tecnologia, mas de desenvolver aerogeradores adequados aos regimes de ventos da América Latina”.

Do ponto de vista da indústria, outro desafio significativo diz respeito ao incremento do conteúdo nacional dos parques eólicos. O pontapé inicial foi dado ainda na época do Proinfa, quando o BNDES condicionou o financiamento de novos parques eólicos a um mínimo de 60% de componentes produzidos por fábricas instaladas em território brasileiro – exigência que vigora até hoje. Porém, a maior parte dessas peças é constituída por itens acessórios, de baixa complexidade. Por enquanto, só existe tecnologia genuinamente brasileira para fabricar as pás que giram as turbinas.

O fato é que boa parte das indústrias é mais montadora que realmente fabricante. Trocando em miúdos: as peças de maior valor agregado dos aerogeradores ainda vêm de fora. Isso não só aumenta custos como também atrapalha a performance dos parques brasileiros, já que a tecnologia disponível no mercado é desenhada originalmente para condições climáticas e regimes de ventos típicos da Europa. “Além de os ventos serem mais fortes no Brasil, eles são mais estáveis. Isso significa que não exigem um equipamento tão sofisticado como os que existem hoje”, afirma Elbia Melo. “É como se eu estivesse importando uma Ferrari para usar como táxi”, compara. Todavia, conforme observação de Tolmasquim, “o primeiro desafio a gente já superou: instalar um número grande de empresas no Brasil”.

Ajustes

A indústria eólica brasileira não enfrenta obstáculos apenas no plano tecnológico. Na avaliação do professor Alexandre Street, da PUC-Rio, também é preciso aparar algumas arestas no modelo de comercialização da energia gerada por essas centrais de modo a torná-la tão barata quanto aquela produzida pelas grandes hidrelétricas. O complicador aqui é uma sigla de apenas três letras: PLD, que significa “preço de liquidação de diferenças”.

Quando o contrato que rege a produção de energia eólica está exposto ao temido PLD, a empresa pode sofrer um prejuízo considerável caso não consiga gerar a quantidade de eletricidade acordada em leilão. E é bom lembrar que a possibilidade de ocorrer um déficit de geração não é tão remota assim, já que a atividade de uma central eólica será sempre refém do humor da natureza. “Quais são os dois fatores de incerteza de uma eólica? O vento e o PLD”, define Street. O professor fornece um exemplo: se uma geradora se compromete a colocar no sistema elétrico 100 MWh em um mês, mas devido a ventos não muito fortes sua produção atinge apenas a metade disso, ela terá de comprar no mercado aquilo que deixou de produzir. “O próprio mercado vai suprir a diferença. Mas o preço dessa energia de curto prazo – o PLD – é muito volátil e, em alguns momentos, pode se apresentar até seis vezes acima do preço do contrato”, explica Street. “Isso pode representar uma perda financeira muito grande”, resume o professor da PUC-Rio.

Apesar de também dependerem dos fenômenos da natureza, as grandes hidrelétricas estão menos expostas aos riscos do PLD. Isso porque elas atuam em conjunto, formando uma espécie de “clube” que reduz a volatilidade do preço da energia gerada por todas as usinas. Dessa maneira, aquela que tiver dificuldade de produzir a eletricidade prevista em contrato é “ajudada” pelas outras. As pequenas centrais hidrelétricas também fazem parte desse grupo. Já as centrais movidas a vento, apesar de consideradas fontes alternativas, assim como as PCHs, ainda não gozam do mesmo benefício.

Entrar para esse “clube” é uma das principais reivindicações das empresas eólicas. Na avaliação de Street, trata-se de algo justificável principalmente por um motivo. “Os ventos no nordeste devem ser vistos como complementares à geração hidrelétrica majoritária do sudeste e até da própria região norte”, analisa. “Então, entre uma PCH e uma eólica, é melhor a segunda porque no período de baixa das hidrelétricas ela estará produzindo.”

Estender esse modelo de comercialização às centrais eólicas é, assim, uma das boas ideias que podem dar maior segurança aos investidores que apostam no setor. Outra é construir novos empreendimentos que misturem aerogeradores com PCHs ou com placas solares, de modo a ganhar eficiência e driblar a perigosa dependência de um único recurso natural. “Essa é, a meu ver, a terceira fase da eólica: pesquisa em torno dos temas que estão faltando para consolidar a fonte no Brasil e não só torná-la competitiva, mas deixá-la em consonância com o sistema elétrico brasileiro”, resume Street.

A pedido da Abeeólica, o professor da PUC-Rio – em parceria com um colega docente da mesma instituição – vem construindo uma rede para colocar em contato universidades, centros de pesquisa privados e a indústria de energia eólica, sempre em nome da inovação. Em linhas gerais, o objetivo dessa rede é encontrar pessoas que pensem em novos modelos de negócio e aprimorem tecnologias adaptadas às condições brasileiras. Criar um centro de pesquisas e de testes para desenvolver equipamentos faz parte desses projetos. Enfim, facilitar o atendimento das demandas desse setor energético que tende a crescer muito num futuro próximo. “Grande parte do financiamento das pesquisas vai vir da própria indústria”, diz Street. Ele também destaca a escassez de engenheiros elétricos e de outros profissionais capacitados para trabalhar no setor. Atualmente, o Brasil já tem cerca de 70% de sua matriz energética baseada em recursos renováveis. Pelo andar dos ventos, essa proporção tende a crescer ainda mais.