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Uma doença em ritmo preocupante
por Milu Leite
Não há tempo a perder. As estatísticas demonstram que a incidência de câncer segue em expansão preocupante: o número de novos casos em todo o mundo mais do que dobrou em 30 anos. A informação consta do relatório do Instituto Nacional de Câncer (Inca), a partir de dados do World Cancer Report 2008, coletados pela Agência Internacional para Pesquisa sobre o Câncer (Iarc, na sigla em inglês), da Organização Mundial da Saúde (OMS). E não é só. Segundo um estudo divulgado no Congresso Mundial do Câncer, realizado em 2010 na China, as nações mais afetadas são as que estão em fase de desenvolvimento, respondendo por 70% dos diagnósticos feitos em todo o planeta (prognóstico até 2030). Sabe-se também que o envelhecimento das populações terá enorme impacto sobre os casos da doença no mundo, o que mais uma vez deve se evidenciar principalmente nas nações mais pobres ou em desenvolvimento.
As razões de tamanha expansão, de acordo com o oncologista Alexandre Chiari, da Clínica Oncomed, de Belo Horizonte, são variadas. Entre as principais causas ele relaciona a “maior exposição da população a fatores de risco, como alimentação inadequada e o consequente aumento da incidência de obesidade, e hábitos indevidos, como tabagismo e etilismo”. Além disso, informa Chiari, os números relativos à incidência de câncer têm crescido “porque a expectativa de vida está aumentando e os métodos de diagnóstico são hoje melhores”.
O câncer não é uma única doença. Trata-se na verdade de um conjunto de aproximadamente cem doenças que se caracterizam pelo crescimento desordenado das células do organismo. O corpo humano produz, diariamente, uma quantidade indeterminada de células “defeituosas”, mas, sendo ele uma máquina muito bem construída, possui recursos próprios para eliminá-las sem outros problemas. Quando algo não anda bem e esses mecanismos falham, as células defeituosas se multiplicam e buscam um lugar para alojar-se (pode ser no sangue, nos ossos, na pele ou em outros órgãos). Juntas, elas se tornam mais fortes e passam a dominar, pouco a pouco, o corpo em desequilíbrio, tornando-o doente.
As causas do câncer são muitas e, geralmente, estão interligadas. De um lado, há as internas, ou seja, aquelas que estão diretamente vinculadas à genética e à capacidade do organismo de responder ao meio. De outro, há fatores externos, que afetam diretamente o equilíbrio da pessoa, como aqueles já citados, relacionados ao modo de vida, a hábitos alimentares e ao ambiente. Falar de câncer, portanto, é levar em conta tudo isso, e combatê-lo é um dos grandes desafios da medicina moderna, uma vez que, para prevenir ou tratar a doença, muitos outros aspectos têm de ser considerados: educação, saneamento, investimento em pesquisas e tratamentos, tecnologia disponível, sem falar de uma vontade política que o coloque como prioridade no âmbito da saúde pública.
A questão é que, quanto mais pobre o país, piores as condições de vida e mais deficiente a infraestrutura disponível para lidar com a saúde pública. E não estamos falando de tribos, de povos que levam a vida de modo simples, mas nos referindo à pobreza, a populações subdesenvolvidas num mundo globalizado. As explicações para esse quadro se baseiam, então, na falta de preparo ou tecnologia para realizar os diagnósticos precocemente e, ainda, na inacessibilidade a tratamentos eficazes. Um exemplo: uma paciente que sofre de câncer de mama e vive em Gâmbia, na África, tem apenas 12% de chance de cura, ao passo que em países da Europa esse índice pode chegar a 84%.
São assim muito efetivas iniciativas como a Partners in Health (Parceiros na Saúde), uma ONG baseada em Boston, nos Estados Unidos, e que atua em 12 países periféricos ou carentes, como Ruanda, Peru, Rússia e Cazaquistão, segundo informação publicada na Revista Onco& de fevereiro passado. De acordo com um dos dirigentes da organização, o cardiologista Gene Bukhman, abordar as doenças não transmissíveis de forma conjunta permite que a aplicação de recursos se torne mais eficiente, podendo diminuir a mortalidade por câncer. Antes, porém, é preciso logística e treinamento.
Desafio mundial
A OMS informa que o câncer é a segunda principal causa de mortes em todo o mundo, perdendo apenas para as moléstias cardiovasculares. Claro está, portanto, que se trata de um desafio que se impõe a ricos e pobres. E a escalada da doença, antes encarada como um problema da porção ocidental do planeta, acendeu a luz de alerta também em nações do Oriente, sobretudo a China. Dois anos atrás, no último Congresso Mundial do Câncer, o governo daquele país informou que a incidência local da doença aumentou em 80% nas últimas três décadas. Trata-se, segundo as autoridades chinesas, da moléstia que mais mortes tem causado a cada ano (cerca de 1,8 milhão de pessoas que recebem o diagnóstico e vão a óbito).
Estranhamente e furando qualquer teoria, o número de afetados naquele país é maior nas áreas rurais, e os tipos de câncer mais comuns são de pulmão, estômago e esôfago. Nesse aspecto, é importante ressaltar, é na China que se concentra o maior número de fumantes do planeta: 350 milhões. A OMS estima que 5 milhões de pessoas morrem por ano, no mundo, devido ao consumo direto do tabaco. De acordo com o World Cancer Report 2008, “nas próximas duas décadas, o número anual de mortes decorrentes do hábito de fumar vai aumentar para além de 8 milhões, com mais de 80% dos óbitos nos países de baixa e média rendas. Se medidas eficazes não forem tomadas urgentemente, o tabaco poderá matar mais de 1 bilhão de pessoas no século 21, sem incluir as mortes provocadas pelo fumo passivo”.
O câncer é um mal que se alastra silenciosamente pelo corpo, mas não passa despercebido aos governos, que se aplicam em programas de prevenção. Uma das razões para isso, e que vai além da obrigação de prestar serviços de saúde ao cidadão, reside no fato de que tratar o doente custa caro. No Brasil, programas de combate ao tabagismo, por exemplo, são cada vez mais frequentes e, apesar de não ser este o responsável pelo câncer que mais leva à morte no país, os números não são nada desprezíveis. Segundo o relatório da OMS, 11% de todos os óbitos registrados aqui são atribuíveis ao tabaco. É sabido também que 72% das mortes de brasileiros por câncer de pulmão, traqueia e brônquios decorrem do hábito de fumar.
Há duas formas de inibir o consumo de tabaco. Uma delas é aumentar as taxas sobre o produto; outra é divulgar seus malefícios entre a população. No ano passado, foi apresentada uma nova proposta de taxação dos cigarros pelo Ministério da Fazenda, estabelecendo dois regimes, um geral e outro especial, com alíquotas mais altas de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI). As empresas tinham até o último dia útil de novembro passado para informar às autoridades fiscais em qual das categorias se enquadrariam. O prazo para que as medidas começassem a valer esgotou-se em 1º de dezembro.
O alvo central das campanhas governamentais é o jovem, principalmente de baixa renda e escolaridade. De acordo com dados coletados pelo Sistema Internacional de Vigilância do Tabagismo da OMS, no Brasil quase oito em cada dez fumantes iniciam a prática com idade inferior a 20 anos. Tendo isso em vista, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) aprovou em 13 de março último uma resolução que proíbe a comercialização de cigarros com substâncias que alterem seu sabor ou cheiro – como menta, baunilha ou chocolate –, muito consumidos entre os adolescentes que começam a fumar. Na prática, a medida passa a valer em um ano e meio.
Falando ainda de Brasil, as estimativas para 2011 eram basicamente as mesmas de 2010, de acordo com o Inca: quase 490 mil novos casos de câncer. Os mais frequentes, excluindo-se o câncer de pele de tipo não melanoma, são, entre os homens, os de próstata e de pulmão, e, entre as mulheres, os de mama e do colo do útero, basicamente o mesmo perfil observado em toda a América Latina. Em 2010, houve 236.240 casos novos para o sexo masculino e 253.030 para o sexo feminino. Em relação aos principais tipos de câncer eram esperados naquele ano os seguintes números: 114 mil casos novos (registrando a maior incidência no país) de câncer de pele do tipo não melanoma, 52 mil de próstata e 49 mil de mama feminina. Já o câncer do intestino é o quarto tumor mais frequente, com estimativa de 28 mil novas ocorrências por ano, segundo Chiari. Ele é tratável e, na maioria das vezes, perfeitamente curável, se detectado precocemente. “Uma dieta rica em vegetais e pobre em gordura (principalmente a saturada), e atividades físicas regulares previnem o câncer colorretal. Deve-se evitar o consumo exagerado de carne vermelha”, diz o oncologista. De acordo com o médico, alguns fatores aumentam a probabilidade de desenvolvimento da doença, como idade (acima de 50 anos), obesidade e sedentarismo. “Também são fatores de risco as doenças inflamatórias do intestino (retocolite ulcerativa crônica e doença de Crohn), bem como moléstias hereditárias, como a polipose adenomatosa familiar e o câncer colorretal hereditário sem polipose [respectivamente, FAP e HNPCC, nas siglas em inglês]”, explica.
Qualidade de vida
A medicina tradicional tem procurado lidar com essa verdadeira epidemia, tanto no campo da pesquisa como no terapêutico, como lembra o doutor Chiari: “O tratamento do câncer vem sofrendo mudanças significativas nos últimos anos, com o advento de medicamentos mais específicos, de maior atividade e menos efeitos colaterais, aliados a melhores técnicas cirúrgicas e ao diagnóstico precoce da doença, com o decorrente aumento das taxas de sobrevida”. Em entrevista publicada no “Relatório Anual” da Fundação do Câncer no final de 2010, o chefe do Serviço de Pesquisa Clínica do Inca, Carlos Gil Moreira Ferreira, afirmou que “a melhor compreensão do que é a doença trouxe como consequência a individualização do tratamento”, sendo essa nova maneira de lidar com ela um dos maiores avanços da última década. Isso quer dizer que um mesmo tumor, por exemplo, será tratado de maneiras distintas, levando-se em conta as características de cada paciente. Essa abordagem, que só se tornou possível com a disponibilidade de exames cada vez mais específicos, traz ganhos também nos prognósticos, cada vez mais exatos.
Embora seja recente, a individualização do tratamento já teve efeitos sobre um grupo muito específico de doentes: as crianças. Compreender as diferentes formas de manifestação levou a um aumento nas taxas de tratamento do câncer infantil, que em geral afeta as células do sangue e dos tecidos de sustentação, ao passo que o câncer em adultos, na maior parte das vezes, atinge as células que recobrem os órgãos. Além disso, hoje se sabe que não basta tratar. O acompanhamento do paciente é fundamental, garantindo assistência no tocante aos efeitos colaterais. A cura e a sobrevida são o objetivo, mas não devem ser buscados a qualquer custo.
A qualidade de vida do paciente é, atualmente, a pilastra que está na base de todos os tratamentos, e isso implica em medicamentos menos tóxicos e cirurgias menos invasivas e mutiladoras. Porém, como alertam os especialistas, a prevenção deve ser priorizada. Eles afirmam que programas de divulgação sobre a prevenção de alguns tumores extremamente prevalentes e o diagnóstico precoce podem levar a altas taxas de cura, como nos casos de câncer de mama e de colo uterino nas mulheres, e de próstata nos homens. O exame de sangue oculto nas fezes, feito anualmente após os 50 anos de idade para a população em geral, é recomendável para o diagnóstico de câncer de intestino grosso, explicam. Mas não é apenas isso. Alimentação adequada (rica em verduras, frutas e legumes e pobre em gorduras), atividade física regular e IMC (índice de massa corporal) normal são a chave para escapar da doença. Além disso, não fumar, fazer uso limitado de bebidas alcoólicas, aplicar protetor solar quando necessário e consultar um médico para exames de prevenção são medidas que previnem o surgimento desse mal.
A procura por tratamentos menos agressivos é cada vez mais corrente. Ao receber um diagnóstico de câncer, o doente fica acabrunhado, mas a grande maioria tem deixado o abatimento de lado e arregaçado as mangas. Uma parcela deles, no entanto, além de se submeter ao tratamento indicado pelo oncologista, sai em busca da preconizada “qualidade de vida” por meio de terapias alternativas. Em seu livro Anticâncer (editora Fontanar), o médico David Servan-Schreiber destaca que é preciso “prevenir e vencer usando nossas defesas naturais”.
A obra é um best-seller, com mais de 300 mil exemplares vendidos somente na França, e traduzido para 26 países. Ao relatar sua luta contra um câncer no cérebro, o neurocientista e psiquiatra explica de modo simples e direto o que é a doença e como ela se instala no organismo, levanta possibilidades para explicar por que os mecanismos de defesa falham e de que modo é possível reverter o quadro por meio de uma alimentação específica, com a escolha certa dos alimentos, a prática de exercícios e a meditação. No entanto, ele chama a atenção para a importância da continuidade dos tratamentos com quimioterapia e radioterapia, ou seja, não aconselha o abandono da medicina alopática tradicional. Esse tipo de abordagem é típico do que se convencionou chamar de “terapia complementar”.
O livro de Servan-Schreiber também é farto em pesquisas feitas no mundo todo, algumas oficializadas por laboratórios, outras realizadas em centros de pesquisa sem ajuda oficial, mas todas, absolutamente todas, levadas a cabo por cientistas respeitados no meio acadêmico. Ao fazer isso, presta um enorme serviço aos doentes e não doentes. É com a leitura dessa obra que ficamos conhecendo um relatório do Instituto Nacional do Câncer, dos Estados Unidos, segundo o qual “a presença de numerosas substâncias tóxicas no meio ambiente tem tudo a ver com o fenômeno chamado carcinogênese: o surgimento das primeiras células cancerosas no organismo, seguido de sua transformação em um tumor mais agressivo”. E, o que é mais grave, que o acúmulo de produtos químicos cancerígenos atinge oceanos, plantações e rebanhos das mais variadas partes do planeta.
Servan-Shreiber morreu em julho do ano passado, não sem antes terminar seu terceiro livro, Podemos Dizer Adeus mais de uma Vez, em que, embora desenganado, defende os princípios enunciados em suas obras anteriores e que lhe deram uma sobrevida de mais de 20 anos.
É também à luz desses livros que podemos arriscar uma teoria para o surpreendente aumento do número de casos da doença na China. Os cânceres ainda são notadamente mais frequentes no Ocidente, e sua incidência, segundo levantamentos, vem crescendo desde 1940. Servan-Schreiber indica um caminho para tentar explicar esse fato: examinar o que mudou na porção ocidental do planeta depois da Segunda Guerra. E arrisca uma análise, levando em conta três fatores: o aumento do consumo de açúcar, a transformação da agricultura e da criação de animais (e consequentemente de nossa alimentação) e a exposição a produtos químicos que não existiam ali antes da guerra. São conclusões que podem levar ao entendimento da expansão da doença não só nos países em desenvolvimento como naqueles que se abrem ao modo de vida ocidental.
Entretanto, a compreensão por si só não atenderá à urgência de ações que minimizem o problema. Um estudo conduzido pelo Global Task Force on Expanded Access to Cancer Care and Control in Developing Countries (GTF.CCC), publicado na Lancet, uma das mais importantes revistas científicas da área médica, informa que dos 7,6 milhões de pessoas que morrem de câncer todos os anos no mundo, dois terços estão em países em desenvolvimento. Portanto, é preciso investir em pesquisas e em prevenção, mas é mais do que premente a necessidade de as nações buscarem soluções para a doença de maneira global, respeitando, obviamente, as especificidades de cada região, de cada povo e de cada indivíduo.