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Reforma tributária
por Ives Gandra Martins
Ives Gandra da Silva Martins é bacharel em direito pela Universidade de São Paulo, onde se especializou em direito tributário e ciência das finanças. É doutor em direito pela Universidade Mackenzie, onde foi professor titular e emérito.
É também professor emérito e honoris causa em diversas outras universidades, inclusive no exterior.
Participa de inúmeros conselhos empresariais e acadêmicos e de entidades e institutos de cunho sociocultural, alguns deles de outros países.
É membro da Academia Paulista de Letras e de diversas outras academias no Brasil e no exterior, não somente voltadas para a literatura como também para estudos de direito, educação, política e ciências sociais.
Publicou mais de 50 livros, principalmente sobre direito, mas também sobre questões sociais, políticas e econômicas, além de obras de poesia.
Esta palestra de Ives Gandra, com o tema “Caminhos da Reforma Tributária e Outras Reformas”, foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Fecomercio, Sesc e Senac de São Paulo no dia 10 de novembro de 2011.
Minha tese de doutoramento mostrava que o tributo é uma norma de rejeição social, porque todos nós temos plena consciência de que pagamos mais do que devemos ao Estado prestador de serviços. Ou seja, pagamos o necessário para que ele preste serviços públicos e algo mais para sustentar todas as benesses dos detentores do poder. Isso expus também na Constituinte, defendendo que era necessário colocar as limitações constitucionais ao poder de tributar em seção à parte. Foi o que aconteceu. Para o que estava esparso nas constituições anteriores, com artigos aqui e acolá, foi criada uma seção, sob a alegação de que o Estado tudo poderia, desde que estivesse dentro da lei.
As limitações constitucionais ao poder de tributar consagravam a tese de que o tributo é uma norma de rejeição social, pois sem sanção ninguém a cumpriria. Por exemplo, nesta mesa, falando sobre as normas de aceitação social, se dissesse aos senhores que não haveria penalidade nenhuma se matássemos pessoas, nem por isso sairíamos por aí matando. Quer dizer, o direito à vida é uma norma de aceitação social. Mesmo sem sanção, todos ou quase todos (a não ser os casos patológicos de serial killers) não mataríamos. A norma de rejeição social é o inverso, porque sem sanção ninguém a cumpriria. Neste auditório, em que as pessoas não assassinariam ninguém mesmo se não houvesse sanção, diante da proposta “Paga tributo quem quiser”, duvido que alguém pagasse, porque sabemos que pagamos mais do que devemos.
A Constituição não é ruim naqueles dois primeiros segmentos, nas duas primeiras seções: normas gerais e limitações constitucionais ao poder de tributar. Onde ocorreu uma desfiguração completa, através de diversas emendas, foi na necessidade de o Estado ter cada vez mais receita. Saímos de uma carga tributária de 24% para 35%, sem contar penalidades e o custo burocrático das exigências tributárias que as empresas são obrigadas a enfrentar.
Essa desfiguração é que faz com que desde 1990 discutam-se projetos de emenda constitucional, que não vão à frente porque são barrados pelos “anticorpos burocráticos”. Foi assim com Fernando Collor, através de Ariosvaldo Mattos Filho, com Itamar Franco, através de Osiris Lopes Filho, e com a PEC 175 de Fernando Henrique Cardoso. Houve três projetos no período de Fernando Henrique, de Mussa Demes, de Germano Rigotto e de Pedro Parente, depois de ter ele apresentado a PEC 175. No mandato de Lula foi com Virgílio Guimarães e depois com Bernard Appy. Nenhuma dessas propostas avançou.
Dentro da ideia de que é muito difícil executar uma reforma tributária, defendo uma que seja possível. O que se poderia fazer é nesta linha: procurar a compactação, sem a criação de novos tributos. É o que o Movimento Brasil Eficiente está defendendo. Em vez de termos, como na União Europeia, um único imposto, o IVA [Imposto sobre o Valor Agregado], que incide sobre circulação de bens e serviços, temos no Brasil o IPI [Imposto sobre Produtos Industrializados], o ICMS [Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços], o ISS [Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza], a Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], o PIS [Programa de Integração Social] e a Cide [Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico], todos recaindo sobre a circulação de bens e de serviços. Em nível constitucional é muito difícil tentar compactá-los.
Sugeri, no início das propostas de reforma, um imposto da Federação, na linha do anteprojeto que preparei a pedido de Delfim Netto e em que procurei compactar tudo num só imposto circulatório. A Alemanha, que é uma federação, tem o IVA e faz a partilha desse único tributo, o que simplifica consideravelmente as coisas. Mas isso é extremamente difícil, pois os estados não abrem mão de seu poder impositivo. Há uma guerra fiscal, que o Supremo não resolve, no caso do imposto de vocação nacional, o ICMS, que foi regionalizado. O STF não soluciona porque, cada vez que decide, os estados criam uma lei com número diferente sobre a mesma matéria e tudo tem de ser discutido de novo.
É muito difícil o equacionamento porque os estados não estão dispostos a isso. Essa é a razão pela qual, com algumas propostas pontuais, apresentamos algumas sugestões. São 20 pontos que nos parecem fundamentais e que poderiam ser equacionados, muito pouco em nível constitucional e quase tudo em legislação infraconstitucional.
Propostas
1. O primeiro ponto é a vedação do uso de medidas provisórias em matéria tributária e a instituição do princípio da anterioridade plena. O que vale dizer: não permitir – a não ser com impostos nitidamente regulatórios, que são os do comércio exterior e do mercado financeiro – que se abram exceções ao princípio da anterioridade. E um princípio da anterioridade que seja definido para garantia de pelo menos 90 dias.
2. Limitação das exigências e obrigações acessórias. Hoje, quem trabalha no setor tributário sabe perfeitamente que as multas acessórias muitas vezes são consideravelmente superiores àquelas por falta de pagamento de tributos. Em outras palavras, o cidadão às vezes tem uma multa de 50% sobre o não pagamento do tributo, ou de 75% no Imposto de Renda ou de 150%, mas sofre multas de 200%, 300% ou 400% por não ter feito o papel de agente fiscal. A obrigação acessória é aquela que obriga o contribuinte a trabalhar de graça para o governo, ao preparar a escrituração que este último deveria fazer. Se não fizer de acordo, pode ser punido.
3. Fixação de sanções relativas à obrigação de consolidar anualmente a legislação de cada tributo. Cada vez que há uma emenda constitucional, imediatamente todos os exemplares da Constituição já têm o artigo inserido pela modificação. Por que não fazer o mesmo na legislação infraconstitucional? No Brasil, consultar a legislação do Imposto de Renda, por exemplo, é um sacrifício, por conta das inúmeras alterações.
4. Fixação de prazo máximo para a solução de consultas. Muitas vezes temos um problema, numa reorganização de empresa, fazemos uma consulta para ver se há riscos e levamos dois anos para ter uma resposta. Então fica tudo parado, a economia não anda. Tem de haver um prazo.
5. Instituição da obrigação de justificar a ineficácia de consultas. Hoje essa é uma das formas de não se comprometer. O Fisco recebe a solicitação e responde: “Essa consulta é ineficaz”. Diz isso e acabou, o contribuinte não é informado das razões. É preciso que se diga por que e onde a consulta é ineficaz e ainda por que não deveria ser apresentada. Isso me parece o mínimo de cortesia que deveria haver na relação entre o Fisco e o contribuinte.
6. Obrigatoriedade de compensação universal de tributos no âmbito de cada ente federativo. Recentemente, a Receita Federal baixou uma portaria dizendo que só se podem compensar os precatórios que cada cidadão, entidade ou empresa tiver contra o Fisco. Vale dizer: se eu tiver um crédito com o Fisco e houver débitos, só posso compensá-los com meu crédito. Ora, o crédito é fungível, posso perfeitamente negociá-lo. Seria uma das formas de reduzir a dívida dos precatórios, que mostram um Estado aético e imoral, que não paga suas dívidas e prende o cidadão que não pagar as suas no prazo. Quem tiver o título pode compensá-lo, pois se trata de um título líquido contra o governo.
7. Possibilidade de compensação de precatórios de títulos públicos, em decorrência, com créditos inscritos na dívida ativa no âmbito de cada ente federativo.
8. Equivalência entre os encargos aplicáveis às restituições e ressarcimentos de pagamentos dos tributos em atraso. Os tributos em atraso vão acumulando juros sobre juros, há discussões permanentes nos tribunais quanto a isso, mas quando o governo tem de pagar o que deve faz uma liquidação simples. Mesmo no tempo do regime militar não podia haver diferença entre dívida e crédito do governo, então os encargos deveriam ter o mesmo tratamento.
9. Observar a obrigação de informar previamente, na declaração de Imposto de Renda da pessoa física, os critérios para a retenção na malha. Hoje os jornais dizem que foram retidas tantas declarações, mas ninguém sabe as razões para isso. Então, antes de ser apresentada a declaração esses critérios têm de ser publicados.
10. Instituição, em âmbito nacional, do conceito de empresa preponderantemente exportadora, visando o diferimento obrigatório dos tributos indiretos. Isso é importantíssimo, pois continuamos exportando tributos. Podem dizer que não há IPI nem ICMS quando se exporta, mas em tributos cumulativos temos o impacto de todas as operações anteriores, que nem sempre são compensadas. É necessária uma legislação muito clara para que o Brasil ganhe competitividade internacional e deixe de ser exportador de produtos e tributos.
11. Regras sobre a imputação de responsabilidade tanto fiscal quanto de contribuintes. Hoje um cidadão que 20 anos atrás foi diretor de uma empresa que passou por execução fiscal e nunca foi citado, no momento em que os bens vão a leilão, é chamado. Isso sem ter tido nenhuma chance de se defender, provar que não foi administrador naquele período. Precisamos de regras claras na imputação de responsabilidades também para o Fisco.
12. Exigência de justa causa em mandado específico nos procedimentos de fiscalização. Hoje, um dos grandes problemas da fiscalização é que muitos fiscais lavram o auto de infração (não sei por que razão, às vezes porque pretendem compensações que não tiveram) sem nenhuma justificação. E o empresário gasta uma fortuna com honorários advocatícios para se defender. É um verdadeiro absurdo. Por exemplo, os produtos da Suframa [Superintendência da Zona Franca de Manaus] são aprovados por um órgão técnico, com a presença da Secretaria da Receita Federal. Então, um fiscal diz que aquele não é o produto aprovado, é diferente. “Mas o senhor é um técnico?” “Não. Mas vou autuar e depois os senhores se defendem.” Ele não apresenta nenhuma justificativa técnica e cabe ao empresário se defender, apesar da aprovação feita pela Suframa e pela Receita Federal. E esse exemplo se multiplica em todas as áreas.
13. Premiação da boa conduta fiscal. Isso me parece fundamental. Uma das formas efetivas de estimular o bom contribuinte é premiá-lo.
14. Limitação das hipóteses de anistia e remissão. Se tivermos um projeto simplificado, vai ser mais fácil. O bom contribuinte corre sempre o risco de um agente fiscal entender que uma vírgula não foi bem interpretada em determinado dispositivo e lançar uma multa pesada. Com a simplificação da legislação, haverá menos remissões e anistias. Não se trata de eliminar, mas de reduzir.
15. Unificação cadastral. Não tem sentido um número enorme de cadastros para todo tipo de responsabilidade em todas as áreas, como trabalhista, fiscal, da União, estados, municípios e empresas. A unificação cadastral é um velho desejo que até hoje não se realizou.
16. Simplificação dos procedimentos de inscrição e baixa de contribuintes. Hoje, para encerrar uma empresa é uma obra e tanto, passam-se anos. Alegam que precisam fazer fiscalização, verificações. Para abrir uma empresa também levamos muito tempo. Uma análise do Banco Mundial de alguns anos atrás mostrava que dentre 175 países aquele em que se gastava mais tempo para atender a exigências burocráticas era o Brasil, com 2,6 mil horas, em média, por ano. A Nigéria ficava em segundo lugar, com 500 horas a menos, enquanto na Alemanha o processo dura pouco mais de 100 horas e nos Estados Unidos cerca de 300 horas.
17. Nova conceituação de certidões fiscais, vedando-se sua utilização como sanção política. Hoje, não ter a Certidão Negativa de Débito representa um calvário para todos os empresários. Sem ela não podem entrar em concorrências, e o governo utiliza isso como uma sanção, porque muitas vezes o empresário é forçado a pagar o que não deve para obtê-la. Na maior parte dos países que consultamos, a certidão positiva ou de débito não elimina a possibilidade de entrar em concorrências. O Brasil foi um dos poucos que criou esse tipo de sanção. Se o cidadão está se defendendo contra um auto de infração absurdo, tem a certidão negada. É obrigado então a entrar com mandado de segurança, mostrar ao juiz que aquele auto é absurdo, mas muitas vezes precisa aguardar a execução fiscal. Teríamos de adotar o critério mundial de que a certidão não pode inviabilizar a vida de uma empresa.
18. Restrições à redução da base de cálculo do ICMS e do ISS. Isso também pode ser feito através de legislação complementar. Quando se colocou na Constituição que 2% será o ISS mínimo, muitos municípios diminuíram a base de cálculo, o que na realidade representa reduzir a própria alíquota. Isso deveria ser proibido.
19. Revisão dos limites de receita bruta do Simples e do regime por lucro presumido e fixação das áreas de transição entre os dois. Esse regimes foram os mais bem-sucedidos para a maioria das empresas brasileiras, não as grandes, mas as médias, pequenas e microempresas. Quando Everardo Maciel lançou o lucro presumido como uma fórmula para fazer uma reforma tributária, mais de 90% das empresas brasileiras o adotaram. É facultativo, mas foi adotado e simplificou consideravelmente a vida dos contribuintes e também o controle por parte do Fisco. Everardo era até favorável a não impor teto de receita para definir o lucro presumido. Não se conseguiu eliminar o teto, mas podemos ter um sistema de integração que permita um controle. No Imposto de Renda é a diferença entre receita e despesa, mas o lucro presumido é sobre a receita e só pode utilizá-lo quem facultativamente concordar, porque senão se estaria violentando o conceito de Imposto de Renda. Mas se adotássemos critérios mais simples, poderíamos simplificar o controle da Receita.
20. Por fim, revisão das regras aplicáveis à competição fiscal. Trata-se de impedir que a imposição tributária seja um instrumento de descompetitividade, pois cria a guerra fiscal. Empresas que estão em estados onde não há benefícios tributários ilegais e inconstitucionais evidentemente são prejudicadas em concorrências em relação às outras. Se está na Constituição, por que não regulamentamos? Contamos com isso desde a emenda 45, mas não temos a regulamentação.
A questão do euro
Essas são as 20 propostas de simplificação do sistema, em nível infraconstitucional, que debatemos no Conselho Superior de Direito da Fecomercio [Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo], a partir de sugestões de Everardo Maciel. E podemos tentar fazer isso, evidentemente, também em nível constitucional, embora seja um pouco mais complicado. Para concluir esta exposição, vou analisar um pouco a crise mundial.
No livro Uma Visão do Mundo Contemporâneo, que publiquei em 1996, há um capítulo em que mostrava minhas dúvidas quanto à sobrevivência do euro diante de uma crise. Depois a moeda europeia deu certo e ficou a impressão de que eu não entendia muito de economia. Minha posição era simples: um país precisa do direito de ter moeda e a moeda está inteiramente vinculada à administração orçamentária. Vimos experiências de grandes economistas que falharam completamente ao confundir moeda, que é apenas um instrumento, com a questão do desenvolvimento econômico etc. Os planos que fracassaram, como o Cruzado, o Bresser e o próprio Plano Collor, não levaram em consideração que a moeda é apenas um instrumento. O primeiro grande congelamento de preços que houve na história aconteceu com o Código de Hamurábi, que tinha algo assim: só se pode trocar tantos bois por tantos porcos; se o número for maior, o cidadão será punido. Os congelamentos sempre fracassam, na história do mundo.
Administrar finanças é muito complicado. Cada país tem de agir de acordo com sua realidade. Quando as economias deixam de controlar suas finanças públicas, fica muito difícil ter uma moeda universal. Nenhum país da zona do euro poderia ultrapassar o déficit nominal de 3%. Mas, em 2004, França e Alemanha estouraram esse limite. Numa palestra que fiz na embaixada brasileira em Bruxelas, disse que, se não punissem esses dois países, eu via a manutenção do euro com dificuldades. Hoje estamos vivendo essa crise, que é muito mais complexa do que estamos pensando.
Os ativos financeiros no mundo inteiro hoje representam valores consideravelmente superiores ao PIB mundial, porque a velocidade de circulação da moeda, nos momentos de inconfiabilidade, fica muito maior. John Kenneth Galbraith falava no livro A Era da Incerteza daquela célebre fórmula de Irving Fisher em que P (nível de preços) é igual a MV (quantidade de moeda vezes velocidade de circulação) dividida por T (volume de transações). Quais são esses ativos? Eu empresto R$ 100 mil para A, que empresta o mesmo valor para B, que empresta para C. Então parece que temos R$ 400 mil, mas são só R$ 100 mil. Em outras palavras, temos ativos financeiros que não valem, pois o que vale é a confiança na adimplência. O que caracteriza a moeda é essa confiabilidade.
A crise de 2008 e 2009 foi do sistema financeiro, vinculada, fundamentalmente, à não credibilidade de determinados segmentos do setor privado, a saber, a prime nos bancos americanos que tinham emprestado sem lastro. Aquela crise mostrou que os governos tinham de agir. A de 2011 é muito mais séria, porque diz respeito aos próprios débitos financeiros dos governos. No caso da Grécia, o PIB representa 2,5% da zona do euro, mas na Itália são 17% e seu débito está entre 120% e 130% do PIB nacional. É um dinheiro que não existe. Como vão capitalizar o sistema financeiro? Grande parte do lastro é de títulos governamentais.
Isso equivale a dizer que, considerados os problemas políticos e sociais, estamos numa crise que transcende em muito as soluções. Os próprios americanos não têm condição de ajudar porque também estão na crise. Em 1988, a dívida americana era de 70% do PIB e hoje já está em 100% – e de ativos que deixaram de existir.
Então a crise mundial não tem solução imediata, a não ser que haja profundos cortes e duras lições de casa a serem feitas por todos os governos. Aceitar as restrições, porém, vai representar aumento do desemprego. E a meu ver não estamos no meio da crise, mas no começo dela. Roberto Campos dizia que “a melhor forma de evitar a fatalidade é conhecer os fatos”. E é. Precisamos ter consciência de que estamos no início da crise. Com a contaminação de Itália, Espanha, Portugal e Irlanda, que pode ainda alcançar a França, que não está em uma situação tão confortável assim, certamente o que vai ser mais atingido será a moeda, que depende de uma política comum, sob controle de um banco central. Há um banco central que controla a moeda, mas não as finanças de cada país, seu endividamento.
Para terminar, um comentário. Tivemos um considerável aumento das despesas públicas com o presidente Lula, mas a política anticíclica que ele adotou logo depois da crise de 2008 foi muito inteligente. Naquela ocasião, nossa banca toda estava em mais de 50% lastreada em títulos do governo. E o governo era confiável. Então podíamos crescer para dentro, o que foi feito com uma política anticíclica correta. Mas estávamos todos preparados para entrar na ciranda financeira internacional. Como o Brasil cresceu menos do que Índia, China e Rússia, atrasou essa entrada, o que impediu que nossa banca fosse atingida.
Isso me faz lembrar uma história de Jorge Amado, narrada num livro – não me lembro do nome, talvez Os Velhos Marinheiros ou O Capitão de Longo Curso. É a história de um cidadão que se dizia capitão de grandes navios. Um dia fez uma viagem e foi convidado a comandar o barco. E quando os marinheiros lhe perguntavam o que fazer, dizia: “Peça ao imediato, porque é ele quem tem minhas ordens”. Então o imediato ia dirigindo o navio. Os passageiros o consideravam um comandante excepcional, mas os marujos sabiam que ele não entendia nada. Quando chegaram ao porto de destino, os marinheiros lhe perguntaram o que fazer, já que a decisão sobre a operação final cabia ao capitão. Ele disse: “Prendam as amarras”. “Quantas?” E o capitão, com toda a seriedade: “Todas”. E a marujada cumpriu as ordens, rindo e se divertindo com aquilo. Ele saiu desmoralizado do episódio, mas durante a noite caiu uma tempestade tão forte que arrastou todos os navios que estavam no porto, menos aquele que estava todo amarrado. Às vezes, penso que Lula foi um pouco esse comandante, porque foi salvo pelo gongo. Mas adotou as políticas anticíclicas certas.
DEBATE
Nota do Editor: As colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.
CLÁUDIO CONTADOR – No tocante à legislação de precatórios, no caso de municípios, existe prescrição? Depois de algum tempo perdem valor? Quanto à crise, comungo totalmente com seu pensamento. Há perguntas que ninguém quer responder. Quem vai pagar a conta na Europa? Criaram um fundo de € 3 trilhões, mas ele não tem lastro. Mais uma vez é feito em cima de sistemas financeiros podres, então nada resolve. Penso que no final a Alemanha vai pagar esse pato, porque é o único país com alguma solvência, por enquanto.
O marco regulatório do sistema financeiro mundial não é de má qualidade, pois tem solvência, como foi aprovado em Maastricht. O problema é que não houve supervisão, como você mencionou. O presidente americano Jimmy Carter criou o chamado Community Reinvestment Act, que estimulava a insolvência das classes de renda mais baixa. Era uma espécie de incentivo ao sistema privado para que emprestasse à vontade, porque isso ajudaria a melhorar os indicadores sociais. Daí surgiu uma série de títulos públicos, como os subprimes, as hipotecas etc.
Isso começou na década de 1970. Então não se trata somente do marco regulatório, da supervisão, pois os governos também estimularam essa bolha. A primeira fase da crise foi a americana, a segunda a europeia. A terceira não surgiu ainda, mas vai estourar em breve, que é a questão das seguradoras e dos fundos de pensão, porque as reservas estão desaparecendo.
IVES – Sobre os precatórios dos municípios, houve uma perda de valor, porque só há prescrição em cobrança de títulos privados, que são acordados por um prazo. O que acontece é que tivemos o primeiro calote na Constituição, com prorrogação de dez anos, depois um segundo calote constitucional, por mais dez anos. Depois veio a terceira emenda, que está sendo agora discutida no Supremo, com voto favorável de que é inconstitucional, elevando para 15 anos o calote dos precatórios. Nessa emenda o problema é mais sério, porque antes eram prestações iguais, mas hoje são diferentes, o que equivale a dizer que posso pagar 1% do montante anualmente e deixar o resto para o 15º ano, quando haverá uma nova emenda que aumentará o prazo.
Voltando à crise, quem vai pagar a conta? Meu receio é de um calote orquestrado por parte dos governos, aquilo que tivemos no Plano Collor. Ou, se a inconfiabilidade for muito alta, os governos podem criar um imposto, como uma grande CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira], em que controlem uma parte do fluxo financeiro. O calote usaria a alegação de que a dívida pública é soberana e que a qualquer momento pode deixar de ser paga.
Sobre o estímulo ao mercado financiando a baixa renda, temos isso no Brasil e em diversos países. A subprime nos Estados Unidos decorreu disso, todo mundo comprava casa sem dinheiro. Então estou plenamente de acordo em que a origem da crise é anterior. O que tivemos em 2008 foi seu estouro.
Por fim, quanto à seguridade, esse é um senhor problema no mundo inteiro. Este ano, no Brasil, o orçamento aprovado foi de R$ 185 bilhões só para mão de obra ativa e inativa da União. Na ativa são 650 mil funcionários e na inativa 900 mil, ganhando o que recebiam. O déficit, só para esses inativos, foi de mais de R$ 50 bilhões. Essa conta só tende a crescer, e no mundo inteiro. É um problema que não queremos enfrentar, mas não tenham dúvida de que vai estourar.
NEY FIGUEIREDO – O ministro Garibaldi Alves vem sendo elogiado por apresentar a criação de um fundo de aposentadoria para os funcionários públicos, o que Fernando Henrique não fez. Isso é uma questão prioritária do governo Dilma. Se for aprovado, vai resolver o problema não para trás, mas para o futuro.
Com relação à crise mundial, penso que estão faltando estadistas no mundo. O último foi Nelson Mandela. Barack Obama foi um blefe, não demonstrou coisa alguma. Nicolas Sarkozy parece estar mais preocupado com Carla Bruni. Esta semana li o discurso de posse do presidente Franklin Roosevelt, feito em 1933, em que teve a coragem de dizer que a situação dos Estados Unidos e do mundo era tão calamitosa que ele teria a ousadia de pedir ao Congresso que desse a ele poderes ditatoriais, como se o país estivesse em guerra. Isso tem sucedido ao longo da história. Há não muito tempo, o professor Trevor-Roper, da Universidade de Oxford, disse que a democracia devia sua subsistência na Segunda Guerra Mundial a Winston Churchill, que por decisão própria e contra a maioria do Parlamento resolveu enfrentar a situação. Então me parece que, apesar da crise econômica, que é gravíssima, não existe nada que não possa ser resolvido se tivermos líderes para isso.
Com relação à reforma tributária, todos dizem que é prioritária, mas nunca foi feita. Tenho notado que nas pesquisas de opinião essa questão não está entre as inquietações do brasileiro. Ele está preocupado com a previdência, com a segurança, saúde e educação, mas a reforma tributária não aparece. Se isso não é importante para a sociedade, deixa de ser também uma preocupação dos políticos. Pergunto: falta vontade política ou realmente não é um problema para a sociedade brasileira?
IVES – Quando Prisco Viana foi relator, no governo Fernando Henrique, do projeto de reformulação da previdência, a ideia era rigorosamente igual. Estou convencido de que esse fundo é a solução. Ao analisar as medidas que Sarkozy está tomando para tentar reduzir as despesas, está lá a da seguridade social, ele vai mexer nisso. A partir de 2017, haverá dois sistemas jurídicos: um em extinção e o novo, em que o estado de bem-estar social terá menos responsabilidades em relação a quem entrar no sistema. Tem de ser por aí, com regime menos oneroso para o Estado.
Quanto à falta de líderes, estou de acordo, hoje temos uma carência. O que vemos é uma proliferação de partidos, inclusive na Alemanha, e temos lideranças potenciais que terminam não se formando. Quando havia até cinco partidos era mais fácil a formação de líderes. E temos uma espécie de estelionato eleitoral, com as mudanças constantes de partido, em que não há liderança, mas detentores e controladores.
Sobre a carga tributária, por que nossa proposta é de legislação infraconstitucional? Porque a carga tributária no Brasil é condicionada pela carga burocrática. Se o Estado gasta, tem de encontrar tributos para cobrir o gasto. Como não se pode mexer na carga burocrática, a não ser que os governos tenham coragem de cortar a própria despesa, se reduzirmos e simplificarmos o sistema, cortando custos operacionais, já teremos feito um bom avanço.
ROBERT APPY – Sua reforma tributária possível é realmente muito urgente e vai aliviar as empresas. Mas gostaria que se fosse além disso, para mudar esse sistema regressivo que impede o desenvolvimento. Sobre a crise mundial, cheguei à conclusão de que temos um sistema financeiro internacional tão frágil que será derrubado totalmente. Existe uma solução, desde que os países aceitem não ter um crescimento muito rápido e não abusem de empréstimos externos. Devemos voltar um pouquinho ao tempo de nossos avós, que se protegiam com uma poupança e não contavam com o Estado.
IVES – A razão do fracasso de todos os projetos de reforma foram os anticorpos que se multiplicam e inviabilizam qualquer mudança. Em relação ao imposto sobre valor agregado, no caso o ICMS, o Canadá tem algo semelhante, mas todos os outros países tem o IVA centralizado, enquanto nós resolvemos regionalizar. E os estados abrirem mão disso é praticamente impossível. Precisamos trabalhar onde for possível, mas sinto que uma reforma tributária global não temos condições de fazer, porque os estados contam com o imposto mais importante da Federação, que é o ICMS.
Sobre a regressividade do sistema, qual é a forma de eliminá-la? Dizem que é criar um imposto sobre grandes fortunas, o que é um contrassenso monumental. Todos os países o rejeitaram. O projeto que está no Congresso Nacional é um verdadeiro absurdo. Já aprovado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, ele determina que o imposto será de 1% a 5% ao ano. Quem tiver um patrimônio de mais de R$ 50 milhões vai pagar 5%. Admitindo que os bens de um cidadão como Jorge Gerdau Johannpeter, por exemplo, estejam na casa dos R$ 5 bilhões, se pagar por ano 5%, em 20 anos perde tudo.
Sobre a crise internacional, quero só dar um exemplo. Normalmente, a média europeia de poupança interna é de 20% do PIB. A média da Grécia é de 4%. Eles não têm como chegar à média europeia, é um país falido. No Brasil devemos estar com 17% ou 18%. A Grécia tem 2,5% de participação na zona do euro, vamos admitir que saiam. Vão ter de dar um calote global, não de 50%. Sofrerão um brutal aumento de desemprego. Vamos ter muitos problemas pela frente.
JOSÉ ROBERTO FARIA LIMA – Vivemos um momento novo no planeta, em que a tecnologia provocou a aceleração das transformações e mudou todos os paradigmas anteriores. Vamos ter de reconstruir tudo isso. No portal entre o mundo real e o virtual, o setor financeiro praticamente tornou obsoleto o setor produtivo. A soberania dos Estados-nações se dilui muito rapidamente. Estamos numa era de crisálidas. O poder hoje está com as empresas multinacionais. E não temos controle sobre o que está acontecendo nesse mundo virtual, que é o mundo das finanças.
No Brasil brigamos contra o Leviatã. A nação criou o Estado e o Estado tudo pode. O primeiro passo para tentar controlar esse Leviatã, que talvez tenha acontecido num cochilo do Congresso Nacional, foi a Lei de Responsabilidade Fiscal. Pergunto se não deveríamos ter uma lei semelhante para limitar o nível da carga tributária do país.
IVES – Tenho a impressão de que estamos no início de uma eventual reformulação de uma série de conceitos sobre o sistema financeiro, sobre sobrevivência, sobre alavancagem. Vamos ter uma mudança, apesar do papel das multinacionais, porque as empresas são grandes, mas dependem de uma série de fatores vinculados à crise financeira. E estamos num mundo completamente diferente, com a quebra de privacidade nos sistemas eletrônicos, perda de controles e segredos revelados.
FARIA LIMA – Até que ponto os jovens de hoje vão aguentar que os governos, que na realidade foram financiados por multinacionais, continuem impondo situações que tornarão a vida deles cada vez pior?
IVES – O desemprego na Espanha é de 22%, mas para quem está para entrar no mercado de trabalho, a juventude, é de 40%. Os mais jovens não têm como arrumar emprego. O mundo é dirigido por burocratas, mais do que por políticos, e nos países parlamentaristas a burocracia profissionalizada domina. No Brasil, nenhum governo tem condições de enfrentar a burocracia. Ela faz greve quando bem entende, consegue os resultados que quer, e cresce permanentemente.
Adolph Wagner, no século 19, numa obra sobre política econômica, disse que as despesas públicas tendem sempre a crescer e que toda vez que aumenta a receita tributária elas se ampliam na proporção desse acréscimo. Trata-se da teoria da permanente distensão das despesas públicas. É uma realidade que temos de enfrentar.
A Lei de Responsabilidade Fiscal foi, a meu ver, um dos grandes trabalhos de Fernando Henrique Cardoso e Everardo Maciel. Ela vem sendo torpedeada e não é seguida por muitos municípios. Não há como puni-los e existem inúmeros projetos no Congresso Nacional para diminuí-la. Na verdade, é uma lei mais de condução, porque da responsabilidade fiscal mesmo ainda estamos muito longe.
Já houve diversos projetos determinando que a carga tributária não pode passar de x%. Mas é muito difícil colocar um limite, pois os fatores econômicos não são aferíveis por antecipação. É como os 3% do déficit público nominal que os países da zona do euro teriam de observar para que não houvesse o estouro da moeda. França e Alemanha ultrapassaram e hoje todos os países da zona do euro têm um déficit público superior a 3%. Mas seria uma tentativa de fixar alguns parâmetros para impedir o aumento da carga tributária além de certo limite. Seria como criar um cinturão de segurança para proibir novos aumentos e novos tributos.
JOSEF BARAT – Uma reforma tributária implica a reformulação do pacto federativo, pois altera completamente as relações dos entes que compõem a Federação. A União não quer abrir mão do controle dos repasses devidos a estados e municípios e estes também não querem perder. Na discussão do pré-sal já se vê a confusão, imaginem numa reforma tributária. Gostaria de ouvir sua opinião sobre isso. Outra questão é como a crise europeia pode contaminar o Brasil. A posição do governo brasileiro tem sido triunfalista. Estamos imunes à crise?
IVES – Estou convencido de que as reformas não têm avançado por causa do pacto federativo. Há dois grandes problemas no sistema tributário: como equacionar o ICMS e como resolver o problema das contribuições que substituíram os impostos arrecadatórios. A União não quer solucionar o problema das contribuições, porque não é obrigada a partilhá-las, como ocorre no Imposto de Renda e no IPI. E os estados não querem solucionar o problema do ICMS, que é enorme, assim como os municípios não têm interesse em resolver o do ISS. Basta dizer que em muitas ocasiões cobra-se duas vezes pelo mesmo fato gerador, no município onde são prestados os serviços e onde está instalada a empresa.
É evidente que tudo seria mais fácil se houvesse uma redução da carga burocrática. Com a proibição do incentivo fiscal e uma só alíquota, não teríamos mais o turismo de notas fiscais nem guerra fiscal. Se o Supremo eliminasse a guerra fiscal de vez, não decidindo em cada caso, não haveria mais esse problema. É possível dar em ações diretas de inconstitucionalidade, pelo artigo 27 da lei nº 9.868/1999, efeitos prospectivos, ou seja, que valem para o futuro. Então equaciona-se o problema do passado e do futuro. O Supremo deveria ter coragem. Eles decidiram, mas faltou dizer que vale para todas as novas leis em termos de reclamação, porque o princípio é o mesmo.
Quanto à crise mundial, ela contamina o Brasil, sim. Guido Mantega já está admitindo isso, depois de ter negado o tempo inteiro. Vamos ser atingidos, embora não duramente, assim como ocorreu na crise de 2008, porque ainda temos como crescer internamente. Embora tenhamos dívida na balança de pagamentos, na balança comercial ainda estamos com superávit. Vamos perder em algumas commodities, mas não em nível tal que isso inviabilize o crescimento.
China, Brasil e Índia vão continuar crescendo, independentemente da crise. O sistema financeiro poderá ser contaminado, mas num nível muito menor. Nossa dívida interna, comparada à da Itália, da Islândia, da Grécia, é absolutamente administrável. Tenho a impressão de que a banca não será atingida, porque não a universalizamos. Estamos vendo agora que a China está tomando medidas mais ou menos semelhantes de proteção à sua banca. Vamos ser atingidos, sim, porque vai haver uma redução do mercado mundial, mas não de forma tão sensível como nos países desenvolvidos.
Resta saber, porém, como fica a política cambial. Não encontramos ainda a formulação cambial correta no Brasil, estamos apanhando. Não adianta denunciar outros países, porque cada um age de acordo com seu interesse. Quanto maiores a crise e a competitividade internacional, mais as nações vão fazer política cambial, como a China. No Brasil, nesse particular, não vejo nenhuma formulação inteligente, continuamos dependendo de flutuação. Tenho, porém, a sensação de que temos condições de adotar políticas econômica, financeira e cambial capazes de fazer com que os efeitos da crise sejam muito menores. Estamos numa situação que podemos administrar, dependendo da inteligência do governo.
ADIB JATENE – A carga tributária é o que o governo arrecada. Com esses recursos, ele tem de pagar parte do juro da dívida e enfrentar a carga burocrática e a trabalhista, que consomem 90% do que arrecada. Para as ações de governo sobram 10%. Se reduzimos a carga tributária sem reduzir as outras cargas, como vamos ficar?
IVES – Se o governo não tem como reduzir a carga burocrática, não vejo como diminuir a tributária. A mão de obra oficial custa R$ 185 bilhões. O orçamento da cidade de São Paulo, com seus 11 milhões de habitantes, é de R$ 35 bilhões. Vale dizer, o orçamento paulistano é quase seis vezes menor que o volume de recursos necessários para pagar a mão de obra da União.
JATENE – Podemos reduzir isso?
IVES – É uma questão de vontade política. Por essa razão é que não acredito na possibilidade de redução da carga tributária em nível constitucional. Sarkozy está tentando diminuir a burocracia oficial na França. Em Portugal estão reduzindo os salários dos servidores públicos. No Brasil isso seria impossível, porque a Constituição engessou o tema. Mas, na prática, é preciso primeiro simplificar o sistema e depois pensar na redução.
JATENE – Dos recursos da carga burocrática, uma boa parte vai para o Ministério da Educação, universidades federais e hospitais universitários. Mas quando se sugere que um hospital universitário, pelo prestígio que tem, capte recursos fora do orçamento, todo mundo é contra.
IVES – Na educação a situação é crítica. E o governo ultimamente tem procurado cobrar do sistema privado, alegando que as instituições não são filantrópicas. O que tem ocorrido é uma inversão de valores, atingindo o terceiro setor, que faz o que o governo deveria fazer com os tributos que pagamos. Nas universidades federais temos um sorvedouro de dinheiro, não destinado propriamente à educação ou ao ensino. Então há muito a ser mudado, pois a burocracia cresceu demais. Por exemplo, agora, depois que se permitiu a presença de representantes de servidores nos conselhos universitários até na votação, a tese que está sendo debatida nas universidades federais é de que reitores sejam servidores e não professores.
JATENE – Quando as universidades federais decidiram eleger o reitor com voto universal, nós, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, dissemos não e fizemos publicar nos jornais um manifesto dizendo que a Medicina sairia da USP. Tivemos o apoio da Faculdade de Direito, da Politécnica, da Farmácia, e graças a isso a USP hoje não tem o sistema federal.
MÁRIO ERNESTO HUMBERG – Grande parte do problema brasileiro é a centralização excessiva, que se reflete na questão tributária. O IVA, que é nosso ICMS, deveria ter regulamentação estadual e não federal. O que a União deveria fazer é estabelecer um limite. Em vez de 18% de ICMS em São Paulo, teríamos no máximo 10% e o outro estado cobraria seus 8% ou 10%, quanto quisesse.
Como pequeno empresário que sofre as dificuldades da burocracia, considero extremamente louvável buscar esses 20 pontos. São coisas relativamente simples de implementar e importantes para as empresas. Sugiro apenas que se incluam na anterioridade também as normas, já que cada departamento resolve a cada dia estabelecer novas regras.
Em relação à crise da Europa, lembro que não é nova. No século 19, quando China e Índia eram potências econômicas do mundo, os europeus viveram uma crise e as pessoas passavam fome nas ruas. A imigração europeia em grande parte foi consequência dessa crise. Talvez seja novamente o caso de os europeus invadirem a África e os outros países, levando know-how e informação, como fizeram nos Estados Unidos e na América Latina. Termino com uma pergunta: você acha que a estatização dos bancos seria um caminho para resolver os problemas mundiais do fluxo de dinheiro?
ZEVI GHIVELDER – Professor, a Europa, além de ser uma união de moedas, de livre comércio e de livre trânsito das pessoas, certamente tem um componente ideológico. Gostaria de sua opinião sobre isso.
LUIZ GORNSTEIN – A presidente Dilma está enviando ao Congresso um projeto que prorroga a lei da Zona Franca por mais 50 anos. Isso é bom ou ruim? Outra pergunta: os ricos pagam 5,7% de sua renda de imposto e os pobres 16%. Como se chegou a esse ponto? E a terceira questão diz respeito à guerra fiscal. Alguns economistas liberais são favoráveis a ela, porque retira dinheiro do governo e a empresa que recebe incentivo pode deixar o produto mais barato para o consumidor. A guerra fiscal não seria saudável?
HUMBERG – Lembro que guerra fiscal não é um problema brasileiro. Quando a Volkswagen pensava em se instalar nos Estados Unidos, cada estado ofereceu vantagens para atraí-la.
ÁLVARO MORTARI – Com as mudanças que estão ocorrendo na área trabalhista, futuramente não seremos praticamente os únicos exportadores de commodities? A China vai continuar comprando, mas não podemos ficar à mercê de determinados produtos agrícolas. O que vai acontecer?
ISABEL ALEXANDRE – O senhor acredita que o euro está com os dias contados? E a Inglaterra, que não aderiu ao euro, se beneficiou em alguma coisa nessa crise?
HUGO NAPOLEÃO – A Suíça também não aderiu.
IVES – Dinamarca e Suécia também não entraram. Quando foi criado o pacto federativo brasileiro, escrevi em artigo que a Federação não cabia no PIB. Ulysses Guimarães, que certamente presidiria a revisão da Constituição em 1993, pretendia criar uma comissão de juristas, para preparar um texto enxuto. Com sua morte trágica, tivemos uma revisão pífia, com seis emendas. Só para se ter noção, quando foi promulgada a Constituição, os dois principais impostos arrecadativos da União, o IPI e o Imposto de Renda, que destinavam 33% para estados e municípios, passaram para 47%. A União começou então a cobrar contribuições, e hoje estamos com 7% na Cofins. Se naquela época o governo federal tinha 45% do bolo tributário, hoje detém 60%. Estados e municípios empenham-se numa busca fratricida em busca de recursos.
No que tange ao princípio da anterioridade, estou de acordo. Ele vem de 1215, quando os nobres da Inglaterra o impuseram a João sem Terra, e depois foi sendo reproduzido em todas as constituições. Estamos falando de um princípio de 800 anos, portanto. Na prática é o que dá garantia, o contribuinte não tem de ser surpreendido.
Quanto à estatização dos bancos, tenho muita dúvida sobre sua eficácia. Estou convencido de que ela vai ocorrer. E, como aconteceu na Bélgica, é possível que os governos tenham de socorrer os bancos. Mas a estatização tira muito da liberdade do setor privado. E a liberdade de iniciativa e a livre concorrência propiciam alternativas. Se a banca mundial for estatizada, tudo vai depender de critérios econômicos e políticos.
Sobre o componente ideológico na Europa, apesar de todos os países partirem para certo socialismo, eles se adaptaram a uma economia de mercado, mas o que é pior em relação a outros lugares é que o europeu deixou de trabalhar. O resultado é que passaram a receber um contingente muito grande de imigrantes. Habituaram-se a um padrão de vida que não têm mais condição de manter dentro da crise e estamos sentindo o componente ideológico nas diversas reações sociais a qualquer medida de contenção.
No que respeita à Zona Franca, sou favorável a ela, pois trouxe desenvolvimento para a região. Foi importante colocar ali esse polo, para dizer que a Amazônia é nossa. Quanto a aumentar os incentivos fiscais, ainda peço vista.
A política de incentivos municipais é de uma injustiça monumental, embora atraia investimentos. Quem mora na cidade e a ajudou a crescer não recebe benefício nenhum. Aí vem um empreendimento estrangeiro e ganha asfaltamento de ruas, cessão de terreno etc. E o morador vai continuar pagando os tributos para que o novo empreendedor possa se beneficiar. O argumento é de que essa é a forma de atrair investimentos e alcançar desenvolvimento. Implica, porém, uma violação do princípio da isonomia, tratando desigualmente os que auxiliaram o crescimento e os que agora se beneficiam dele com incentivos.
Isabel, Dinamarca e Suécia estão fora da zona do euro, e a dívida deles é inferior a 50% do PIB. A Inglaterra tem o euro, paga-se tudo com euro, mas a moeda é a libra. Então estão menos vulneráveis. Creio que vão fazer de tudo para a Grécia não sair, mas o primeiro que sair tornará vulnerável todo o sistema.
Por que o euro ainda tem sobrevivência? Porque a moeda dos Estados Unidos não vale nada, mas é universal. Não criamos ainda uma alternativa. A única é uma moeda extremamente doente, o euro. Creio que vão fazer de tudo para superar essa crise.
Se analisarmos a história do mundo, vamos ver que é nas maiores crises que aparecem os grandes líderes. O ser humano sempre encontrou soluções quando tudo parecia perdido, desde os primeiros impérios. Depois da Segunda Guerra, por exemplo, Alemanha e Japão se recuperaram e construíram uma indústria moderníssima. É possível que tudo o que estamos observando venha a ser completamente superado com a capacidade que a humanidade tem de criar soluções quando é encostada na parede.