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O que resta é ressurgir das cinzas
por Evanildo da Silveira
Às 2 da manhã do dia 25 de fevereiro, um sábado, três décadas de pesquisas do Brasil na Antártica sofreram um forte abalo. Um incêndio destruiu 70% das instalações da Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), um pé do país naquele continente, que abrigava laboratórios e servia de moradia temporária a cientistas brasileiros que se aventuravam a realizar estudos naquelas paragens geladas e desertas. De acordo com cálculos iniciais, as perdas materiais relativas a equipamentos científicos chegam a R$ 5 milhões. O maior prejuízo, porém, incidiu mesmo sobre as pesquisas. A estimativa é que 40% delas, principalmente na área de biociências, tenham amargado perdas e 16% tenham sido interrompidas. A situação só deverá voltar ao normal com a construção de uma nova base, que, segundo as projeções mais otimistas, deverá ficar pronta somente em 2018.
No momento do acidente estavam na base 59 pessoas, das quais 30 cientistas, um alpinista que presta apoio às atividades de pesquisa, um representante do Ministério do Meio Ambiente, 12 funcionários civis e 15 militares da Marinha do Brasil, responsáveis pela manutenção e operação da EACF. Dois destes últimos morreram tentando apagar o fogo. Nos primeiros dias depois do acidente, a Marinha instaurou um inquérito policial militar (IPM), que até o fechamento desta edição não havia sido concluído. O que foi divulgado é que o incêndio começou com uma falha elétrica na praça de máquinas, local onde ficavam os geradores de energia da estação.
A primeira consequência foi um rápido “apagão” elétrico na EACF, que surpreendeu os que ainda estavam acordados e conversavam em pequenos grupos. Era por volta da 1 hora local – 2 horas, em Brasília. “Muitas pessoas estavam na sala de estar quando, de súbito, faltou energia”, lembra o físico José Valentin Bageston, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que já esteve na estação cinco vezes. “Então eu e um colega saímos para ver como estava a condição de tempo (minhas pesquisas – observações ópticas – dependem de céu noturno limpo) e vimos o incêndio, já bem adiantado, na área dos geradores. Fomos nós, de imediato, que demos o aviso do que estava acontecendo.”
Em seguida, de acordo com Valentin, a eletricidade foi restabelecida pela entrada em funcionamento de um gerador de emergência. Mas durou pouco. Logo esse segundo equipamento também foi alcançado pelo fogo e a energia acabou por completo. No começo, muitos imaginavam que o incêndio não iria destruir toda a base. “No entanto, por suas dimensões, logo concluí que seria quase impossível controlá-lo com os recursos limitados para combate ao fogo que se tem na Antártica”, conta. “Não é como numa cidade equipada com corpo de bombeiros.” Segundo Valentin, o acidente deixou em todos um sentimento de perda. “A estação era como uma extensão de nossa casa, já que passávamos bastante tempo lá”, diz.
Experiência traumatizante
Para todos os que estavam na estação foi um momento difícil, que não será esquecido tão facilmente. Que o diga a engenheira-agrônoma e doutora em oceanografia biológica Theresinha Monteiro Absher, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Há 20 anos ela realiza pesquisas na Antártica, principalmente com organismos bentônicos (que vivem junto ao fundo marinho), com enfoque principal na reprodução. “Foi uma experiência muito traumatizante, e ainda é bastante difícil falar sobre isso”, diz. “Acho que não vou esquecer nunca.” De acordo com Theresinha, sua sorte é que na hora em que o fogo começou ela e seu grupo estavam acordados, numa pequena reunião. Mesmo assim, a cientista perdeu todos os seus pertences pessoais. Em relação a seu trabalho, os danos não foram grandes. “Só perdi os dados coletados em fevereiro”, conta.
Essa era a terceira vez que a pesquisadora do Paraná ia à Antártica. Assim como os outros cientistas, ela integrava a 30ª Operação Antártica (Operantar XXX) do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), que começou em 9 de outubro de 2011, com a partida dos navios de apoio Ary Rongel e Almirante Maximiano do porto do Rio de Janeiro. A operação se estenderia por um ano. Nesse período, estava prevista a realização de 17 projetos científicos de diferentes áreas do conhecimento, apoiados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), e que envolveriam cerca de 300 cientistas.
Entre as pesquisas planejadas, algumas versavam sobre a biodiversidade e o ecossistema antárticos, as mudanças climáticas naquela região e suas consequências em nível global. Estavam sendo desenvolvidos trabalhos em oceanografia, glaciologia e geologia. Muitos deles foram prejudicados, mas é difícil dizer em que medida. “Na área científica, qualquer afirmação sobre perdas é irresponsável, tanto por existirem trabalhos que não dependiam da infraestrutura da estação, como por também haver estudos que podem ter continuidade a partir de alguns ajustes”, diz a arquiteta Cristina Engel de Alvarez, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que coordena o grupo de pesquisa Arquitetura na Antártica (Arquiantar).
Ela não estava lá na hora do incêndio, mas já foi àquele continente mais de 15 vezes para estudar a própria EACF. O objetivo de seu trabalho é desenvolver tecnologias adequadas para a presença brasileira naquela região gelada. Em seu caso específico, Cristina diz que perdeu seu principal objeto de estudo. “Estávamos empenhados em buscar soluções para tornar a estação mais eficiente”, explica. “Com sua destruição, nossas pesquisas relacionadas a corrosão, energia, aspectos térmicos e acústicos, consumo de água e produção de resíduos, entre outros temas, ficaram meio sem sentido.”
Perdas irreparáveis
O Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Antártico de Pesquisas Ambientais (INCT-APA) também teve prejuízos irreparáveis. “Perdemos todo o material levantado na Operantar XXX, desde dezembro de 2011 até 25 de fevereiro deste ano”, lamenta sua coordenadora, Yocie Yoneshigue Valentin, bióloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O INCT-APA foi criado pelo MCTI com o objetivo de monitorar a atmosfera daquele continente e seus impactos ambientais na América do Sul, analisando as consequências das atividades do homem naquela região. Segundo Yocie, a destruição da EACF interrompeu séries históricas de longa duração, prejudicando a obtenção dos dados sequenciais do impacto da presença humana na baía do Almirantado, na ilha Rei George, onde fica a base brasileira atingida pelo fogo.
A coordenadora do INCT-APA, que atua na Antártica desde 2009, também registrou perdas em suas pesquisas pessoais. Ela realiza estudos sobre macroalgas marinhas em colaboração com colegas da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto de Botânica de São Paulo e da Universidade de Magallanes, do Chile. “Estávamos primeiro fazendo um levantamento desses organismos fotossintetizantes na região da baía”, conta. “Queríamos entender a sobrevivência a baixas temperaturas, as exigências em relação à luz, a época de reprodução e qual o tipo de substância bioativa que essas algas produzem. O homem pode, algum dia, tirar proveito desse conhecimento em prol da biotecnologia.” Com o incêndio, esse trabalho ficou comprometido.
Mesmo as instituições que têm seus próprios módulos de pesquisa separados da estrutura principal da EACF foram prejudicadas pelo acidente. É o caso do Inpe, que vem estudando a região há 30 anos. São trabalhos que visam entender a relação Sol-Terra e as conexões entre a Antártica e demais partes do planeta. Atualmente, o instituto mantém três projetos no continente gelado – referentes a impactos do clima espacial na região e no Brasil, atmosfera antártica e monitoramento meteorológico –, desenvolvendo para tanto estudos sobre dinâmica atmosférica, camada de ozônio, meteorologia, gases de efeito estufa, radiação ultravioleta, transporte de poluição, oceanografia e a interação oceano-atmosfera.
Para realizá-los, o Inpe instalou na Antártica quatro módulos, à distância de 100 a 1.000 metros da EACF. O mais próximo deles é o Meteoro, usado para pesquisas meteorológicas. A seu lado fica o Ozônio, com instrumentos para medição da camada desse gás que envolve a Terra. Um pouco mais distante, a 300 metros da estação, fica o módulo Ionosfera e, a 1 quilômetro, o Alta Atmosfera, ambos usados para estudar as camadas superiores do ar terrestre. Na hora do incêndio, algumas dessas instalações serviram de refúgio para os cientistas.
Equipamentos preservados
Segundo o chefe do programa antártico do Inpe, Ronald Buss de Souza, os prejuízos para o instituto são contornáveis. “Apesar de terem parado de funcionar por causa da falta de energia elétrica, que vinha da estação e foi cortada pelo incêndio, tanto os módulos como os instrumentos foram preservados”, explica. “O problema maior foi a interrupção das séries históricas de dados, que vinham sendo coletados havia 30 anos.”
Para evitar maiores danos aos módulos e a seus equipamentos no próximo inverno, uma equipe do Inpe retornou àquele continente para tentar recuperá-los ou fechá-los. “Se os deixássemos lá até a próxima Operação Antártica, em outubro, eles iriam se deteriorar”, diz Souza. “Por isso, a maior parte dos instrumentos foi lacrada e alguns trazidos de volta.” Além disso, foi restabelecida parcialmente a coleta de dados no módulo Meteoro. A ideia era instalar um instrumento que transmitisse os dados diretamente para um satélite, mas isso não foi possível, porque o tempo disponível para a equipe trabalhar lá foi muito curto, e, assim, eles deverão ser armazenados no próprio módulo para análise posterior.
O trabalho do Inpe, bem como todas as pesquisas brasileiras realizadas no continente gelado, faz parte do Proantar, criado pelo decreto nº 86.830, de 12 de janeiro de 1982, e gerido pela Comissão Interministerial para os Recursos do Mar (Cirm). O programa está dividido, por assim dizer, em duas partes, a logística e a científica. A primeira é de responsabilidade da Marinha, que se encarrega da operação dos navios polares Ary Rongel e Almirante Maximiano, da manutenção das instalações brasileiras na Antártica e do transporte de pesquisadores para lá. A segunda está a cargo do MCTI, por meio do CNPq, que seleciona, financia e acompanha as atividades científicas do programa.
O primeiro contato de brasileiros com aquele continente é mais antigo. Ele ocorreu em 1882, quando a corveta Parnahyba levou como passageiro o astrônomo belga Louis Ferdinand Cruls (1848-1908), conhecido como Luís Cruls no Brasil, onde trabalhou a maior parte de sua vida. Na ocasião, ele foi designado pelo imperador dom Pedro II especificamente para a missão de observar a passagem do planeta Vênus sobre o disco solar, tarefa realizada em 6 de dezembro daquele ano.
Fins pacíficos
A história das pesquisas científicas naquela parte do mundo teve início oficial apenas em 1959, quando 12 países assinaram o Tratado da Antártica, que entrou em vigor dois anos mais tarde e posteriormente contaria com a adesão de outros membros. O documento, que o Brasil subscreveu em 1975, estabelece que o continente deve ser usado apenas para fins pacíficos e para o desenvolvimento de estudos científicos. Uma das exigências para que um país seja membro consultivo do tratado, isto é, para que tenha direito a voto, é a realização continuada de atividades científicas naquela região. Por isso, o Brasil vem atuando ali desde o verão austral de 1982/1983, quando foi realizada a Operantar I.
Para garantir seus direitos e dar suporte aos estudos naquela parte do mundo, o país construiu a EACF, inaugurada em 6 de fevereiro de 1984, com oito módulos. Quando ocorreu o incêndio ela tinha mais de 60, a maior parte deles contíguos. Foi por isso que o fogo a destruiu quase totalmente. Em 2,6 mil metros quadrados de área construída, ela abrigava instalações relativamente confortáveis, que incluíam camarotes, banheiros e alojamentos que podiam acomodar até 60 pessoas, além de sala de estar e jantar, copa e cozinha, biblioteca, sala de computadores, enfermaria e um pequeno centro cirúrgico, sala de ginástica, oficinas de veículos, despensa e lavanderia. Para o trabalho científico, a EACF dispunha de 13 laboratórios destinados a pesquisas biológicas, atmosféricas e químicas.
Longe dela, a salvo do incêndio, há quatro refúgios, um na própria ilha Rei George e os outros em ilhas próximas. Cada um deles pode abrigar até seis pessoas por um período de 30 a 40 dias. Além disso, entre dezembro de 2011 e janeiro deste ano, foi instalado e inaugurado o módulo autônomo Criosfera I, um projeto conjunto do Inpe e das universidades Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). Localizado no interior do continente, a 2,5 mil quilômetros da EACF e a 670 quilômetros do polo sul geográfico, o novo módulo se destina ao envio diário, por satélite, de dados meteorológicos. O objetivo é estudar os reflexos na Antártica dos poluentes gerados na América do Sul e em outras partes do mundo.
Apesar dos prejuízos materiais e para a pesquisa brasileira, a destruição da EACF poderá ter também um lado bom. O primeiro aspecto positivo diz respeito à própria estação. A nova base deverá ser mais moderna e eficiente. “Temos agora pleno conhecimento do que precisamos fazer para que as novas instalações sejam um exemplo de eficiência e mínimo impacto ambiental”, diz Cristina Alvarez, da Ufes. “Ou seja, é a grande oportunidade de comprovar nossa maior hipótese de trabalho: a de que é possível a ocupação humana na Antártica em segurança e em harmonia com o ambiente. É a chance de inovar e de chamar a atenção da comunidade nacional e internacional para um Brasil competente e alicerçado em sólido conhecimento tecnológico.”
Troca de informações
Por enquanto, porém, não há nenhum projeto ou modelo em discussão. “Ainda é muito cedo”, diz Janice Trotte, coordenadora-geral de Mar e Antártica da Secretaria de Políticas e Programas de Pesquisa e Desenvolvimento do MCTI. “Para isso, a troca de informações com o público usuário, ou seja, os cientistas, será muito importante. Apesar de trágico, o acidente nos permitiu um novo olhar sobre o Proantar e a chance de definir criteriosamente como desejamos que seja nossa presença científica naquele continente – o que certamente faremos alinhados com a comunidade científica.”
Até agora, de concreto, há a publicação, em maio, de uma portaria conjunta dos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação, do Meio Ambiente e da Defesa, com vistas à criação de um grupo de trabalho interministerial, que irá “estabelecer os requisitos operacionais de alto nível para a nova Estação Antártica Comandante Ferraz”, premissas que servirão para a elaboração de seu projeto e que deverão atender as demandas científicas para a Antártica. Além disso, o governo já liberou R$ 40 milhões para medidas emergenciais, como a limpeza e retirada dos escombros do local do incêndio e o início da construção da nova base. Segundo o ministro da Defesa, Celso Amorim, se tudo correr bem, as obras deverão começar no verão de 2014. Serão necessários R$ 100 milhões e de 3 a 4 anos para dar a estação por construída.
Desta vez a comunidade científica quer ser ouvida sobre o modelo da nova base e a própria maneira como ela será administrada. “Sua concepção deverá levar em conta não apenas o conforto, mas, principalmente, a segurança e as necessidades das pesquisas que lá serão desenvolvidas”, diz Valentin. Quanto à gestão, muitos cientistas enxergam problemas no controle militar das atividades. Embora reconheçam que isso é importante do ponto de vista da segurança e da logística, eles dizem que o excesso de formalismo e hierarquia às vezes atrapalha o trabalho científico. Nada pode ser feito – como uma saída para coleta de dados – sem autorização do comandante militar da estação. Por isso, muitos acreditam que é preciso aproveitar o incêndio para revisar objetivos e metas e atualizar o Proantar.
O que não se discute é a necessidade de o país ter um programa de pesquisa na Antártica. Além de garantir sua presença lá e o direito de explorar eventuais riquezas existentes, os estudos trazem benefícios diretos e imediatos ao Brasil. Entre eles pode ser citada a melhoria na previsão climática, que é essencial para aumentar a produtividade agrícola e para diminuir o custo social de desastres climáticos e das ondas de frio que atingem o país, causadas por massas de ar formadas sobre o continente gelado. As descobertas relativas à camada de ozônio são outro resultado importante do trabalho científico lá desenvolvido.
Por isso, as pesquisas brasileiras na Antártica não podem parar. O governo e a comunidade científica estão empenhados em encontrar alternativas para dar sequência aos trabalhos naquele continente enquanto a nova estação não estiver pronta. Há a opção de utilizar os laboratórios de bordo com que estão equipados os dois navios da Marinha, além da possibilidade de construir abrigos e acampamentos emergenciais. A ajuda de países amigos é outra solução. “Estamos buscando o apoio de algumas nações para conseguir vagas em suas bases para os cientistas brasileiros”, informa Janice. “Também se estuda a ideia de atendimento remoto à pesquisa, por meio da transferência dos dados coletados via satélite aos laboratórios brasileiros.”