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Herança colonial

por Regina Helena de Paiva Ramos

Mário de Andrade, o escritor da Semana de Arte Moderna, passou, em 1937, por São Roque, a 60 quilômetros de São Paulo, na região de Sorocaba, e descobriu uma casa e uma capela bandeiristas. Em ruínas. Mário era assistente técnico do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan, hoje Iphan) e não demorou a perceber a importância daquelas construções seiscentistas. Negociou a compra da propriedade e iniciou estudos para sua restauração. Queria transformar o Sítio de Santo Antônio num refúgio para artistas. Morreu antes disso e sua família doou a casa ao Sphan, como era sua vontade.

Essa é a história da descoberta de um dos mais importantes monumentos da arquitetura colonial paulista. A saga, porém, começa bem antes: a casa foi erguida em 1650 por Fernão Paes de Barros, de família ilustre da época. Seu pai, Pedro Vaz de Barros, foi governador da capitania de São Vicente, e um de seus irmãos, também chamado Pedro Vaz de Barros, de cognome Vaz Guaçu, fundou São Roque, tendo ali chegado, em 1657, com a família e cerca de 1,2 mil índios.

Fernão não era bandeirante, mas, segundo os historiadores, uma espécie de financiador das bandeiras. Rico, dono de terras, de gado, de escravos e de índios, abastecia as bandeiras que se embrenhavam pelo sertão e, na volta, recebia pedras preciosas como pagamento. Fabricava em sua propriedade uma série de produtos, inclusive água de rosas, e chegou a exportar trigo para Portugal.

O Sítio de Santo Antônio não carrega apenas os traços arquitetônicos característicos da época das bandeiras. Traz consigo, também, um passado trágico fundamentado no preconceito religioso. A história: num dado momento de sua vida, Fernão foi ao nordeste combater os holandeses e, de lá, voltou com uma escrava de quem teve uma filha, Inácia. Posteriormente, casou-se com uma jovem do Rio de Janeiro de nome Maria de Mendonça. Nunca chegaram a coabitar, pois ele descobriu que a parceira era cristã-nova – quer dizer, judia.

O arquiteto Victor Hugo Mori, do Iphan, lembra os livros de genealogia que informam sobre a história do casal: “...de quem não deixou filho algum porque com ela não teve vida marital pela razão de descobrir sobeja prova contra a pureza de sangue desta senhora”. E acrescenta que poderia ter havido outra razão para que o casamento não se consumasse, considerando o que relata Jorge Caldeira, no mais importante livro sobre a época bandeirista, O Banqueiro do Sertão. No século 17, em São Paulo, prevalecia, acima da lei e dos costumes portugueses, a tradição familiar tupi, na qual a transmissão de herança ou poder se fazia pelo sangue da mulher. Um homem, ao casar, abandonava os elos econômicos da família paterna e se integrava à do sogro, do qual passava a ser subordinado e herdeiro.

Diante disso, é permitido supor que o casamento não foi adiante para evitar essa subordinação. Ao permanecer em Araçariguama, a 54 quilômetros da capital (hoje o sítio pertence ao município de São Roque) como um potentado independente, Fernão Paes aumentou sua fortuna, seu poder e seus negócios, inclusive com o rei de Portugal, “a quem fazia donativos ‘para as urgências da coroa’ e fornecia víveres e índios para expedições do reino”.

Depósito de batata

De qualquer forma, seja por medo da Inquisição, seja por causa da tradição familiar tupi, Maria de Mendonça viveu com o marido no casarão de taipa de pilão, ele coabitando com a escrava, ela repudiada. Conta a tradição que a mulher não desejada tinha tudo o que queria – menos o marido – e era tratada com grande respeito. Por insistência dela, Fernão Paes construiu, em 1681, uma capela, a poucos passos do casarão. Apesar de judia, Maria de Mendonça havia abraçado a fé católica.

Foi Lúcio Costa, o arquiteto construtor de Brasília, quem fez, na década de 1940, os primeiros estudos para a restauração do conjunto. Depois dele o Sítio de Santo Antônio recebeu os cuidados do arquiteto Luís Saia, que substituiu Mário de Andrade na direção da seção paulista do Iphan e era autoridade em restauração de monumentos históricos culturalmente importantes. Enquanto foi vivo, Luís Saia se dedicou com paixão àquele lugar, tendo ali realizado uma restauração na década de 1960. Além disso, providenciou a recuperação paisagística nas encostas que cercam as edificações.

O casarão de Fernão Paes refletia a singeleza da arquitetura na capitania de São Paulo. Trata-se de um exemplar de casa rural dos mais antigos do Brasil: simples, de linhas retas e paredes brancas, com grandes espaços internos, varanda, largos beirais, portas e janelas de canela, cumeeira de madeira de lei, altíssimo pé-direito e telhas à vista. No quarto principal eram armadas as redes de dormir – não havia camas – e existia um aposento onde ficavam guardadas as provisões para que não pegassem umidade e carunchos. O quarto de hóspedes dava para o alpendre – estranhos, na época, não pernoitavam no interior das casas.

A capela é uma das joias da arquitetura religiosa paulista. Seus projetistas – não se conhecem os nomes dos construtores – incluíram, logo após o alpendre, uma porta de treliça com inspiração árabe. A capela tem o altar-mor em talha dourada, dois altares laterais em madeira crua, ricamente trabalhados, púlpito decorado com tinta vermelha e dourada, balaustrada no coro e teto pintado. A primitiva imagem de Santo Antônio foi roubada no final dos anos 1960, junto com outros artefatos. Há alguns anos, conta o arquiteto Mori, a pia batismal e a fechadura original da capela, que também tinham sido levadas, foram devolvidas anonimamente. Em 1965 e em 1993 foram realizados serviços de restauração das pinturas do teto e no retábulo da capela. Segundo uma tese nunca provada, mas interessante, o telhado da capelinha, recurvado, em estilo de pagode chinês, teria sido construído por marceneiros de Goa em passagem pelo Brasil, vindos do Oriente e a caminho de Portugal.

Maria de Mendonça faleceu em 1700 e Fernão Paes de Barros, em 1709, deixando em testamento a casa, as “peças escravas” e o “gentio da terra” (índios capturados) para a Capela de Santo Antônio. A filha, Inácia, foi casada com um primo, Brás, filho bastardo de um irmão de seu pai. Enviuvou e casou-se com um reinol, o português João Martins Claro. Os herdeiros desmembraram a propriedade até que, em 1868, casa e capela foram compradas por Antônio Joaquim da Rosa, futuro barão de Piratininga, que utilizou aquelas terras para caça e festas com os amigos. Para sua maior comodidade, construiu um “puxadinho” entre o casarão e a capela, depois demolido pelo Iphan. Com a morte do barão, o local entrou em decadência, a ponto de um dos proprietários armazenar batatas e cebolas no casarão. Isso até a descoberta do local por Mário de Andrade.

O Sítio de Santo Antônio faz parte do circuito turístico de São Roque, mas poucos o conhecem. Em 2006, o Iphan assinou um termo de cooperação técnica com a prefeitura do município para a gestão compartilhada do bem. Hotéis da região levam hóspedes em passeio ao casarão, também visitado por crianças das escolas da redondeza. “É muito pouco para sua importância”, observa o arquiteto Mori. “Não basta um monumento ser o museu de si mesmo. Precisa ter uso, perder sua ‘aura de sacralidade’ e entrar na vida cotidiana da população e do bairro onde se insere. Esse é nosso principal desafio, nessa e em todas as casas históricas pertencentes ao Iphan.”

Além de importante culturalmente, o Sítio Santo Antônio é um local agradável. Há um gramado em torno da casa e um lago, onde, com um pouco de sorte, podem-se ver paturis e garças. O Iphan pretende comprar a propriedade do outro lado da represa, para incorporá-la à área. Para ter acesso às construções é preciso descer a pé por um bosque de árvores nativas, mas idosos e cadeirantes têm licença para cumprir esse trajeto de carro. Visitas podem ser feitas aos sábados, domingos e feriados, das 9h30 às 16h30. E, durante a semana, somente com agendamento prévio, pelo telefone (11) 4712-5664. Rosa Severino, monitora que reside no local, sabe tudo a respeito da casa, conhece a história de Maria de Mendonça e quando os visitantes chegam aparece com as chaves – cada uma com cerca de 20 centímetros – que abrem as portas e transporta a plateia aos distantes anos 1650.

O sítio com o casarão e a capela mandados construir por Fernão Paes de Barros fica na Estrada Mário de Andrade, que é asfaltada, a 8 quilômetros do centro de São Roque.