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Brasil estende a mão às nações pobres
por Juliana Borges
Uma das iniciativas de maior sucesso no Haiti pós-terremoto é a expansão do Lèt Agogo (que significa “muito leite”, em crioulo), um programa de segurança alimentar que incentiva a produção de leite entre os pequenos produtores e distribui esse alimento nas escolas. Na Venezuela, está em andamento o programa de habitação Misión Vivienda, que oferece financiamento de moradias a juros baixos para pessoas de baixa renda. E, em Moçambique, o projeto Pró-Savana tem como meta aumentar a produtividade agrícola numa área de 700 mil hectares para combater a fome que assola o país.
A relação dessas iniciativas com os programas sociais brasileiros vai além da mera semelhança. O Lèt Agogo, que, ao criar uma forma de renda para os produtores, estimula-os indiretamente a manter os filhos na escola, conta com o apoio do governo do Brasil. Já os dois últimos foram inspirados, respectivamente, no Minha Casa, Minha Vida e no Pró-Cerrado (que, na década de 1970, levou desenvolvimento agrícola para a região central do país) e tiveram consultoria de técnicos brasileiros. Acostumado a ser receptor de recursos de ajuda internacional, nos últimos anos o Brasil começou a exportar alguns de seus programas sociais para outras nações em desenvolvimento – tornando-se, assim, um importante provedor mundial de ajuda aos países pobres.
Apelidado informalmente de “doador emergente”, entre 2005 e 2009 o Brasil destinou R$ 2,9 bilhões a projetos de cooperação internacional, segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgado no fim do ano passado. Apesar de passar longe dos recursos oferecidos pelos europeus e pelos Estados Unidos e de ainda estar abaixo do patamar doado por outros emergentes, como China, Índia e Turquia, esse valor praticamente dobrou naquele período de cinco anos, passando de R$ 384 milhões, em 2005, para mais de R$ 724 milhões, em 2009. A assistência humanitária e a cooperação técnica registraram aumentos absolutos ainda mais expressivos: hoje, os recursos com essa finalidade são seis vezes mais elevados que em 2005.
Segundo especialistas, o que vem colocando o país no centro do tabuleiro da cooperação internacional não é apenas o aumento do montante de recursos destinados à Ajuda Oficial para o Desenvolvimento (AOD), mas a maneira como esse auxílio funciona. “Feita de um país em desenvolvimento para outro, a cooperação opera de maneira mais horizontal e participativa, introduzindo os parceiros nas conversas desde a fase de negociação, mantendo prioridade para a cooperação técnica”, afirma Marcos Antonio Cintra, diretor de Estudos e Relações Econômicas e Políticas Internacionais do Ipea. “Pelo menos na teoria, é uma forma de agir diferente daquela dos países do norte, que costumam levar programas fechados, sem consultar ou perguntar se é daquilo que quem vai ser ajudado necessita”. É o que o Brasil chama de “diplomacia solidária”, colocando à disposição dos países em desenvolvimento nossa experiência e nosso conhecimento, com o fim precípuo de contribuir para o progresso econômico e social de outros povos.
Em 2008, a Agência Brasileira de Cooperação (ABC), entidade vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e responsável por centralizar e planejar a cooperação brasileira, executou 236 projetos e atividades pontuais de colaboração técnica, beneficiando 58 países. Uma das principais molas propulsoras da cooperação brasileira é a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Criada com o objetivo de desenvolver e fortalecer o setor agropecuário nacional por meio da pesquisa, hoje ela atua também fora do país. “Nossas equipes estão participando de 69 projetos de cooperação, em parceria com a ABC, atendendo 16 países da África, 13 da América Central e Caribe, oito da América Latina e quatro do Oriente Médio”, conta Antônio Carlos do Prado, coordenador de Cooperação Técnica da Secretaria de Relações Internacionais da Embrapa.
Desde 2006, a Embrapa mantém um escritório em Acra, capital de Gana, onde centraliza sua atuação no continente africano. Um dos projetos tocados ali é o Cotton Four, criado em 2008 para dar apoio ao desenvolvimento da indústria de algodão de Benin, Burkina Fasso, Chade e Mali, que enfrentam perdas devido à política de subsídios praticada no mercado internacional desse produto. No Senegal, a empresa está destinando R$ 2,4 milhões para transferir tecnologia de cultivo de arroz e feijão para o Instituto Senegalês de Pesquisa Agrícola. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) é outro importante agente de geração e difusão de conhecimentos, no caso aplicados à área industrial, e também está se tornando provedor de assistência técnica no plano internacional. A entidade mantém, atualmente, 48 parcerias com 25 países, principalmente da América Latina e da África, que já deram origem, até o momento, a 29 projetos.
Histórico
A cooperação internacional para o desenvolvimento existe desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O Plano Marshall, destinado a reconstruir a Europa devastada pelo conflito, é considerado o primeiro projeto do gênero no mundo. Na década seguinte, com a independência das colônias africanas e as enormes dificuldades que muitas delas passaram a enfrentar para se estabelecer como nações livres, teve início um período de intensa transferência de dinheiro e tecnologia bancada pelos países desenvolvidos por intermédio de algumas instituições de atuação planetária – como o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) –, consolidando, assim, a AOD.
Foi a partir de meados da década de 1950 que o Brasil tomou conhecimento, de fato, desse tipo de cooperação, quando nasceu a chamada cooperação sul-sul. Países subdesenvolvidos, insatisfeitos por não ter voz ativa nas grandes decisões econômicas e políticas mundiais, começaram a se articular com vistas a aumentar a cooperação entre si e a pressionar por reformas nas regras do jogo. “Foi justamente a cooperação sul-sul que deu origem, em 1964, ao bloco dos países não alinhados, o G77, dentro da Assembleia Geral da ONU”, explica Henrique Altemani, professor de relações internacionais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Segundo ele, depois de um período de marasmo nas décadas de 1980 e 1990, com o liberalismo econômico ditando as regras de mercado, a cooperação sul-sul voltou a ganhar força no século 21. Novos países que emergiram como potências econômicas regionais passaram a reivindicar uma voz mais ativa na política internacional, despontando entre eles o Brasil.
O início da década passada marca um novo posicionamento do país na política internacional – e, consequentemente, no aspecto da cooperação. Com o crescimento da economia e a melhor distribuição de renda, Brasília decide abrir novas fronteiras de relacionamento político. “A diplomacia brasileira deixou de mirar os países europeus e os Estados Unidos e estrategicamente buscou espaços ainda não ocupados, privilegiando as relações sul-sul”, comenta Altemani.
Ao mesmo tempo, a agenda internacional brasileira passou a focar temas como as desigualdades sociais, a fome e a necessidade de construir um mundo mais justo. O governo ampliou então sua atuação na cooperação internacional, tanto em setores tradicionais da política externa brasileira – como a agricultura, a saúde, a educação, a ciência e a tecnologia – quanto em novos – como o desenvolvimento sustentável, a cultura e o turismo.
No governo de Lula, por exemplo, a principal atuação da diplomacia teve a África como beneficiada. Em oito anos de governo, ele visitou 29 dos 54 países do continente em 13 visitas oficiais. Segundo um levantamento do Itamaraty, o Brasil, hoje, tem embaixadas em 37 nações africanas, das quais 19 foram inauguradas no governo passado. Entre os países não africanos, o Brasil só possui menos embaixadas no continente do que os Estados Unidos, China, França e Rússia.
Curiosamente, mesmo fora do governo, o ex-presidente dá mostras de que quer continuar ampliando a cooperação com os africanos. “Essa é uma de nossas missões”, explica Celso Marcondes, coordenador executivo para a África do Instituto Lula. “Queremos funcionar como um elo entre os diversos setores da sociedade brasileira e os governos africanos para ajudar o continente a resolver seus problemas estruturais.” No início de maio, o instituto apoiou um seminário sobre desenvolvimento africano organizado pelo BNDES no Rio de Janeiro. Em seu primeiro discurso público depois da recuperação do câncer na garganta, Lula afirmou que “a África quer conquistar a autossuficiência alimentar, quer promover sua autossuficiência energética, quer construir uma logística de integração que promova um salto na cooperação continental. O Brasil pode dar importantes contribuições em todas essas áreas consideradas cruciais”.
Solução brasileira
Além da África, outro foco da cooperação brasileira é a América Latina. E uma catástrofe natural fez com que o Haiti, um país já devastado por conflitos, se tornasse o principal alvo da ajuda do Brasil – e também um laboratório tanto para o governo quanto para o terceiro setor, empenhado em contribuir com sua experiência. O terremoto do início de 2010 causou 22 mil mortos e deixou 1,3 milhão de desabrigados – um número muito elevado de “sem teto, sem nada”, ante uma população de pouco mais de 9 milhões de pessoas. O valor total da destruição foi estimado em US$ 7,9 bilhões, o equivalente a 120% do PIB haitiano em 2009. Depois do terremoto, a Minustah, a força de paz da Organização das Nações Unidas liderada pelo Brasil, reorientou suas atividades para apoiar os esforços humanitários e o resgate das vítimas.
Naquela oportunidade, o Brasil destinou ao país caribenho mais de 800 toneladas de alimentos e medicamentos, providenciou um destaque orçamentário de mais de US$ 200 milhões para assistência humanitária de emergência e ofereceu cooperação imediata por meio de iniciativas como impressão gratuita de cédulas da moeda haitiana. Não foi apenas isso. Mais de 30 projetos de cooperação técnica em saúde, agricultura e justiça, entre outras áreas, foram levados ao Haiti. “A partir de 2004, fizemos experiências com cooperação triangular”, conta Igor Kipman, ex-embaixador do Brasil naquele país. Ele ressalta que já tivemos um projeto Canadá-Brasil-Haiti na área de saúde, e Espanha-Brasil-Haiti na área de reflorestamento. “Isso tudo é um aprendizado que fica. É amplamente benéfico para o Haiti e extremamente interessante para nós”, observa.
Além de funcionar de forma mais horizontal, uma outra diferença importante da cooperação brasileira reside no fato de que, ao contrário do que fazem os países desenvolvidos, o Brasil não destina recursos diretamente aos governos de outros países, privilegiando os acordos de cooperação técnica. As doações, quando feitas, são direcionadas aos organismos multilaterais, como o Programa Alimentar Mundial e o Banco Mundial. “Nosso objetivo é replicar em outros países as tecnologias sociais que tiveram sucesso aqui a partir do compartilhamento de experiências bem-sucedidas e da oferta de insumos”, diz Marco Farani, diretor da ABC.
Tome-se Moçambique por exemplo. A ex-colônia portuguesa, entre as dez piores nações no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e com PIB equivalente ao do estado do Piauí, tem forte presença de ONGs e organismos internacionais que atuam em seu território. O sistema de cooperação funciona da seguinte forma: os 17 principais doadores internacionais, junto com o Banco Mundial e o FMI, organizaram-se num grupo chamado G19, que centraliza as conversas com o governo e determina a utilização das doações. Em 2011, o G19 definiu o destino de US$ 700 milhões – ou 50% do orçamento anual daquele país. Já a cooperação do Brasil em Moçambique segue outro figurino. O governo brasileiro não repassa um centavo sequer a seu parceiro africano e tampouco impõe condições ou determina áreas prioritárias. “Isso é feito por meio de um entendimento entre os Estados, a partir de uma solicitação de Moçambique”, esclarece Antonio de Souza e Silva, embaixador do Brasil naquele país africano. “Os moçambicanos nos enxergam como um irmão mais velho que venceu as dificuldades do colonialismo e deu certo na vida. Por aqui existe, inclusive, o ditado de que para cada problema africano há uma solução brasileira”, relata Souza.
Paradoxo
A principal ação da presença brasileira em Moçambique é a transferência de tecnologia da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) para a construção de um laboratório destinado à produção de medicação genérica para o tratamento da Aids e de outras doenças. Trata-se do maior projeto do Brasil no contexto da cooperação, uma empreitada orçada em US$ 23 milhões. Prevê-se que essa instalação entre em operação no ano que vem, cabendo a Moçambique a decisão de escolher onde e como adquirir os insumos de cada um dos medicamentos.
Apesar de o Brasil estar participando cada vez mais ativamente da ajuda internacional em nome do desenvolvimento, ainda vivemos um paradoxo: também somos receptores de elevadas quantias com o mesmo propósito. “Em termos financeiros, o total recebido ainda é maior que o doado”, destaca Cintra, do Ipea. Em 2010, o país recebeu US$ 664 milhões – praticamente o dobro que em 2009. No ranking dos beneficiários de AOD, estamos em quarto lugar nas Américas, só atrás do Haiti, da Colômbia e da Bolívia, e na frente de países como Nicarágua, Honduras, México, Guatemala e El Salvador.
Entretanto, alguns doadores já modificaram o modo de cooperar com o Brasil. Enquanto países como a Noruega e a Alemanha mudaram a agenda, priorizando projetos na área ambiental em vez da social, alguns outros passaram a apostar na cooperação triangular: o Brasil recebe o dinheiro, mas ele é aplicado em projetos de cooperação técnica com terceiros países. Em Moçambique, por exemplo, o Pró-Savana, citado no início desta reportagem, tem um aporte de mais de US$ 7 milhões da Japan International Cooperation Agency (Jica), a agência de cooperação japonesa, e de US$ 3,6 milhões (em trabalho técnico) do governo brasileiro.
Esse aparente paradoxo – ser, ao mesmo tempo, doador e beneficiário – reflete o atual momento que o país vive: apesar dos muitos avanços econômicos e sociais, o Brasil continua a ser, em muitos aspectos, uma nação pobre, com problemas críticos em setores básicos como saúde, moradia, educação e saneamento básico. Ainda há 16 milhões de brasileiros que vivem na pobreza extrema, perfazendo 8% da população. Diante de uma realidade interna que se mantém difícil, uma questão que se coloca é se realmente devemos doar dinheiro público a outros países enquanto tantos brasileiros passam dificuldades. “É uma questão de estratégia política, que precisa ser mais bem discutida entre todos os setores da sociedade”, afirma a pesquisadora Bianca Suyama, da Articulação Sul, um centro de estudos que congrega acadêmicos que se dedicam ao tema e tem como missão promover e apoiar iniciativas de cooperação.
Na opinião de Cintra, do Ipea, a cooperação brasileira precisa trabalhar de modo mais integrado. “Hoje, as ações são feitas isoladamente e muitos projetos não passam pela ABC, que deveria centralizar todas as iniciativas”, afirma. Segundo Bianca, chegou o momento de o Brasil olhar para o que já foi feito, analisar e pensar, de forma mais efetiva, a política de cooperação para os próximos anos. “A ajuda internacional é um assunto novo em nossa agenda. O Brasil sempre foi muito insular e esse movimento de caminhar para fora ainda é uma novidade”, conclui.
Quando a ajuda atrapalha
Em pouco mais de três décadas, o mundo já doou mais de US$ 1 trilhão para a África. Nesse período, o PIB do continente regrediu 0,2% e a renda per capita na África Subsaariana encolheu: é menor hoje que na década de 1970. Além disso, entre 1981 e 2002, o número de africanos que vivem abaixo da linha de pobreza quase dobrou.
Como pode um continente, mesmo com tanta ajuda, viver em situação tão desfavorável? Na opinião de muitos entendidos, o que está barrando o desenvolvimento africano é justamente a ajuda internacional. Ao transferir vultosas quantias diretamente para a conta dos governos, os países doadores incentivam a corrupção, a concentração de riquezas e, principalmente, acabam minando o empreendedorismo, a mola mestra do desenvolvimento econômico e social.
Essa corrente de pensamento ganha cada vez mais adeptos, destacando-se entre eles a zambiana Dambisa Moyo, Ph.D. em economia pela Universidade de Oxford e já eleita pela revista “Times” uma das cem personalidades mais influentes do mundo. No livro Dead Aid (“Ajuda Morta”, numa tradução livre para o português), ela faz duras críticas ao assistencialismo, que, em sua opinião, tornou-se uma “commodity cultural”.
Dambisa defende quatro fontes alternativas de financiamento para as economias africanas, que, segundo afirma, não causariam os efeitos colaterais das doações: estimular o mercado de ações, encorajar os investimentos chineses em larga escala em infraestrutura, continuar pressionando os países do norte por um acesso justo a seus produtos agrícolas e fortalecer o microcrédito.