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Filosofia na prática
Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Oswaldo Giacóia Jr. dedica-se à pesquisa em filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em história da filosofia e ética, ocupando-se de temas como teoria da cultura, filosofia do direito, filosofia social e política. É autor de Pequeno Dicionário de Filosofia Contemporânea (Publifolha, 2006), Nietzsche & para além de Bem e Mal (Zahar, 2005) e Nietzsche – Para a Genealogia da Moral (Scipione, 2001).
Em encontro realizado pelo Conselho Editorial da Revista E, o convidado desta edição falou sobre a importância de se compreender a filosofia em relação a outras esferas da cultura, das ciências, das artes e, sobretudo, da política, além de comentar sobre a demanda de filósofos em setores da sociedade civil. “Isso pode parecer uma espécie de consultoria de luxo, mas não é. Embora pessoas eventualmente nos procurem com demandas nesse sentido, como se fosse possível você dar soluções padronizadas para serem consumidas com uma certa facilidade. A filosofia não tem absolutamente nada o que dizer nesse sentido. Pelo contrário, a função da filosofia é colocar em questão esse tipo de convicção apressada”, diz. A seguir, trechos da conversa.
Filosofia e outras áreas do saber
Acho que filosofia é, fundamentalmente, uma relação com a linguagem. Destacaria aqui a relação com a psicologia, psicanálise, antropologia, sociologia e também com certos setores do direito – em particular, com a filosofia do direito. E com a filosofia política. Porque penso que as questões filosóficas não podem efetivamente ser compreendidas se forem amputadas de suas relações com outras esferas da cultura.
Penso que fazer filosofia hoje é um desafio muito grande porque exige daquele que se dedica a ela não somente esse domínio bastante específico da competência filosófica, mas também essa abertura para um enfrentamento das questões que são de natureza filosófica e que são colocadas para a filosofia do espaço propriamente das outras esferas da cultura, das ciências, das artes e, sobretudo, da política.
Somos frequentemente confrontados por questões que surgem no âmbito da física, da mecânica, da matemática, da informática, das ciências médicas, em particular no entrecruzamento que se faz, por exemplo, entre a neurofisiologia e as ciências informáticas, que colocam questões filosóficas absolutamente incontornáveis.
Questões éticas, por exemplo, no caso das práticas clínicas, como itens da genética e da biologia molecular, que constituem para nós hoje um campo muito fértil. Além de questões que nos são colocadas e que sempre nos acompanharam ao longo desses milênios de história, por exemplo, no campo da religião – nessa confluência que há entre o desenvolvimento técnico-científico e os valores éticos, morais e religiosos de uma sociedade como a nossa.
Consultoria filosófica
Outro exemplo de onde surge um pulso bastante forte, bastante motivador em relação a filosofia e sociedade, é a demanda que cada vez se torna mais expressiva e mais intensa por parte de setores organizados da sociedade civil que nos buscam a fim de ajudá-los a pensar algumas questões postas em suas próprias práticas. Por exemplo, organizações como a OAB, a escola da magistratura da justiça federal, a escola da magistratura da justiça estadual, a escola do ministério público.
Acho que as questões mais importantes que surgem hoje para a filosofia política nascem do campo do direito, sobretudo o debate atual sobre direitos humanos. Questões relativas, por exemplo, a Estado, soberania, cidadania, teorias da justiça ou então ligadas à discussão de princípios, como o constitucionalismo, os impasses atuais do estado nacional.
Quando disse que somos procurados por setores organizados da sociedade civil, isso pode parecer uma espécie de consultoria de luxo, mas não é. Embora pessoas eventualmente nos procurem com demandas nesse sentido, como se fosse possível você dar soluções padronizadas para serem consumidas com uma certa facilidade. A filosofia não tem absolutamente nada o que dizer nesse sentido. Pelo contrário, a função da filosofia é colocar em questão esse tipo de convicção apressada.
Manipulação da opinião pública
Nós vivemos numa sociedade leiga, essencialmente marcada por um pluralismo de cosmovisões. Então não existe mais aquele tipo de mentalidade monolítica, que tinha uma certa garantia de verdade, chancelada ou religiosamente ou metafisicamente. Pelo contrário, nós vivemos hoje numa espécie de diáspora de convicções. Cada uma delas sustentando seu próprio direito, e esse direito efetivamente só pode ser assegurado no caso de uma sociedade multicultural como a nossa e essencialmente pluralista do ponto de vista ético, a partir da argumentação.
Desde que você não queira impor alguma coisa, nem pela força nem pela astúcia, a única via possível de legitimação de pretensões é a via argumentativa. Esse é um elemento que complica bastante nossas relações hoje. Nós não temos mais o recurso mais ou menos rápido e cômodo de invocar a vontade de Deus. Não, “eu creio” é uma afirmação que tem de exibir seus títulos de crédito. Se você não for capaz de exibir esses títulos de crédito não está suficientemente qualificado para participar do debate público.
Uma sociedade multicultural, eticamente plural como a nossa, mas uma sociedade de massa, tem necessariamente que conviver com certos riscos de manipulação em termos de formação, de formatação de opinião, que são capazes de engendrar uma espécie de aparência de liberdade, uma aparência de formação livre de convencimento, onde de fato há uma espécie de direcionamento prévio. O exemplo mais claro que posso oferecer para vocês disso é a formatação do debate cultural pela agenda da sociedade, digamos, ligada aos interesses da grande imprensa hoje.
Todas as questões fundamentais que estão sendo levadas à discussão não são questões que nascem fora do âmbito dos interesses mais importantes da indústria cultural. De tal maneira que nós não somos tanto autônomos e independentes na escolha dos temas que nós discutimos, porque aquilo já está dado antes. Já está pautado antes pela imprensa.
Essa questão, por exemplo, do Big Brother. Há uma série de perguntas a serem feitas acerca da autenticidade, da revolta ou da suscetibilidade moral popular a respeito do estupro ou não, questões que antecedem a essa. Em que medida um tipo de programação como essa é imposta à sociedade brasileira sem que haja discussão sobre os critérios que determinam esse tipo de imposição, como os critérios mercadológicos?
Por que as cotas de mershandising desse programa são tão altas e tão caras? Por que esse programa ainda está no ar? Por que as pessoas que demonstram indignação em relação ao possível estupro que houve continuam validando o mesmo tipo de relação mercantil? Isso não é discutido. O que é discutido é se houve ou não estupro.
“Todas as questões fundamentais que estão sendo levadas à discussão não (...) nascem fora do âmbito dos interesses mais importantes da indústria cultural. (...) Nós não somos tanto autônomos e independentes na escolha dos temas que nós discutimos porque aquilo já está dado antes (...) pela imprensa”
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