Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Um cachorro chamado Socorro

1.
A turma lá da nossa rua vivia assistindo a seriados e filmes dos Estados Unidos, com policiais e bandidos.
E, nesses filmes, ninguém tinha nomes como o da gente: João, Pedro, Miguel, Mariana, Beatriz e Joana.
Nomes que os pais tinham dado só para depois mudar, porque todo mundo era chamado por um apelido – Joãozinho, Pepê, Guel, Má, Beá e Jô.

Era difícil de entender a razão de uma pessoa ter um nome na escola, no livro de chamada, e outro nas conversas e brincadeiras no pátio. Melhor era já nascer com apelido. E de preferência tirado de um daqueles filmes.
Por isso, quando minha irmã viu o filhote de pastor alemão no colo do pai já foi dizendo que ele ia se chamar Bob.

– Nome mais besta – resmungou o pai.

Mas Bob ficou sendo Bob, não por falta de outro nome, mas para o nosso gosto. Ele não se chamava Roberto para uns e, para outros, Bob. Então a gente estava fazendo aquilo que devia ser feito com todo mundo. Batizamos com o nome definitivo, o único, o para sempre. Assim nós pensávamos.

Quando espalhamos a novidade, alguém lembrou, acho que foi a Beá, que podíamos colocar um sobrenome bem difícil nele. Outra pessoa falou que bem melhor seria um sobrenome fácil. Como Silva. Bob da Silva.
Minha irmã terminou a conversa.

– É Bob só. E ponto-final.

E, muitas vezes, quando estava brincando com ele, eu dizia:
– Venha aqui, Bob Só E Ponto-Final.

Se minha irmã estivesse por perto, ela gritava:
– Bob, o nome dele é Bob!

Mas eu ainda provocava:
– E Ponto-Final.

2.
Bob cresceu no meio das brincadeiras. No começo, a gente vestia o Bob com as roupas das bonecas de minha irmã; depois, quando ele ficou maior, com minhas camisas e shorts.

Até os óculos da mãe foram parar no focinho dele. Amarrávamos um elástico nas pernas dos óculos e enroscávamos a armação no Bob. Inventei de colocar o cachorro no jardim de casa. Jogava no chão um livro velho da escola, aberto, onde esfreguei linguiça calabresa, e o Bob afundava o focinho no livro, com se estivesse lendo. As pessoas se espantavam.

– Olha lá, mãe. Aquele cachorro de óculos, ele está lendo um livro.
– Deixa de ser besta. Cachorro não sabe ler...

Mas daí ela via Bob esfregando as narinas nas folhas, como se quisesse ir para a próxima página.
– Coitado, ele sabe ler mesmo, mas não tem mão para virar a página.

Se eu estava por perto, aparecia e abria o livro em outro ponto. Ele ficava alegre, muito alegre, imaginando que pudesse achar a calabresa que cheirava tão bem.

O pequeno público que estava agarrado ao gradil chegou, algumas vezes, a aplaudir o Bob.
– Como este cachorro aprendeu a ler? – alguém perguntava.
– É que minha mãe é professora – eu dizia.

Não era uma mentira, minha mãe tinha feito magistério, mas nunca tinha trabalhado em escola. E esta resposta fazia as pessoas acreditarem ainda mais no meu teatrinho.

– Agora vamos entrar, Bob. Está na hora da aula de inglês – e alguém sempre ria, percebendo a enganação.
Bob não se incomodava com estas brincadeiras, e acho que até aprovava.

O que ele queria era ficar com a gente no quintal, no quarto ou até mesmo no banheiro.
A mãe se irritava.
– Lugar de cachorro é do lado de fora.

Se não estávamos em casa, ela tentava deixar o nosso amigo no quintal, mas, quando voltávamos, ele já tinha se arrumado no tapete ao lado da cama de minha irmã.

Um dia, o pai disse:
– Acabou a moleza, Bob.

E o nosso cachorro, que até agora era só de companhia, foi preso na corrente para vigiar o fundo da loja do pai, construída no terreno vizinho.

O pai explicou que tinham tentado roubar o estoque, e já que Bob era um pastor alemão...

A gente chorou, mas não adiantou nada.

Era difícil ver o Bob andando de um lado pro outro. Tinha pinta de brabo, mas era um doce. Figurinha mais amável. Talvez sentisse saudades do nosso quarto. Ou das brincadeiras. Nunca mais colocamos óculos nele.
Aceitou a nova vida sem escândalo, com a mesma paciência com que lia no jardim. Só latia se alguém mexesse com sua comida, mesmo assim fingindo ser perigoso.

Na hora em que tínhamos que ir para a escola, era triste ver o jeito do Bob. Ele forçava a corrente para ir junto, e uivava como se estivesse com medo de ficar sozinho.

A gente já nem via os filmes. Era melhor fazer companhia para o nosso amigo prisioneiro, que andava de um canto para o outro, meio que pedindo socorro. Então a gente começou a chamar o nosso amigo de Socorro.

O pai dizia que era assim a vida de um cão de guarda. Arrumaria um cachorrinho pequeno para a gente brincar.

– Queremos o Socorro – minha irmã falava, sempre com os olhos cheios de lágrimas.
– É muito grande, e também muito perigoso – o pai tentava convencer a gente.

3.
Uma manhã, quando acordamos, ele estava amarrado no pilar da área da cozinha. Veio lambendo a mão da gente de tanta alegria.
A loja do pai tinha sido assaltada e os ladrões ainda prenderam o cão covarde em nossa porta.

O pai decretou:
– Bob é um bobo.

Reforçou a segurança na loja e nos devolveu o cachorro, que voltou a servir para os nossos brinquedos. Passava o tempo livre com a gente, derrubando coisas dentro de casa, para desespero de minha mãe.

Cão de guarda mais amigo do que ele nunca houve.

Ainda guardo um retrato de Socorro vestindo as minhas roupas.

Miguel Sanches Neto é poeta, ensaísta, cronista, romancista, contista e crítico literário, autor de Chove sobre Minha Infância (Record, 2000), do livro de contos Hóspede Secreto (Record, 2003