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Esquina do Brasil

Por: Silvia Kochen

Embu, na Grande São Paulo, é famosa por suas atividades culturais. Estância turística, a Cidade das Artes, como ficou conhecida desde os anos 1970, passa no momento, todavia, por questionamentos sobre sua real vocação. o Rodoanel Mário covas (autoestrada que está sendo construída em torno da Região Metropolitana de são Paulo) pode vir a transformar o local em um hub (entroncamento) logístico de ligação do sul do país com o porto de santos. idealizado com o propósito de aliviar o trânsito na capital do estado e já com alguns trechos entregues, o rodoanel terá 170 quilômetros de extensão depois de concluído e interligará os grandes corredores de acesso a são Paulo, como as rodovias Régis Bittencourt, Raposo Tavares, castelo Branco, anhanguera, Bandeirantes, Fernão Dias, Dutra, ayrton senna, anchieta e imigrantes. Porém, indiferentes a essas importantes obras viárias, há aqueles que defendem a ideia de que o município – coberto por mata atlântica nativa e com a maior parte de seu território em áreas de mananciais – seja convertido num grande santuário ecológico.

Não são poucos os embuenses, contudo, que depositam todas as suas fichas nas atividades artísticas e no fomento ao turismo cultural – atividades que há décadas fazem a fama do município – como molas propulsoras do desenvolvimento local. aliás, foi justamente por conta disso que a cidade adotou oficialmente o nome embu das artes. Para evitar qualquer dúvida, foi realizado um plebiscito em 2011 em que os cidadãos, orgulhosos de seu patrimônio cultural, confirmaram essa mudança. antes, a cidade tinha o nome de embu e era frequentemente confundida com Embu-Guaçu, um município próximo.

A 23 quilômetros de são Paulo, embu teve início como um núcleo de catequese de jesuítas, fundado em 18 de junho de 1554 como aldeia de M’Bohy – também conhecida, na época, como Bohi –, segundo o relato do historiador Márcio amêndola de oliveira. ele explica que bohi significa “cobra” no idioma dos guaranis, que viviam no local. oliveira apressa-se a dizer que o lugar não era infestado de cobras, e que os índios simplesmente se referiam ao curioso traçado de um rio caudaloso local, que serpenteava pela mata como se fosse o réptil. em 1624, Fernão Dias (tio do famoso bandeirante de mesmo nome), dono das terras hoje ocupadas pelo município, fez sua doação à companhia de Jesus sob a condição de que fosse erguida uma capela dedicada a nossa senhora do Rosário (hoje a padroeira da cidade). criada em 1534, a companhia de Jesus tinha por objetivo primordial combater o movimento protestante.

A aldeia de M’Bohy ficou abandonada até 1880, quando passou a distrito de Itapecerica da Serra, município vizinho e a 33 quilômetros da capital. em 1938, ganhou o nome de embu. nessa época, já tinha seu primeiro artista, cássio Da Rocha Matos, um pintor inovador que ficou conhecido como Cássio M’Boy. seu talento e o projeto de criar uma arte genuinamente brasileira e popular lhe renderam a amizade de intelectuais modernistas como Anita Malfatti, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, entre outros, que frequentavam sua casa. Cássio M’Boy também revelou artistas entre gente humilde, como o escultor Tadakiyo Sakai, um verdureiro que desenhava e acabou se tornando um grande escultor em terracota (hoje, o Memorial Sakai, em embu, zela pelo acervo de suas obras e oferece cursos dessa arte), além de ter sido professor de Tomie Ohtake.

Em 1958, com a criação da associação cívica de embu, os moradores passaram a defender a emancipação do local. “os embuenses elegiam apenas um vereador em itapecerica, que nada fazia em favor do lugar”, explica amêndola. “Foi então que decidiram lutar por sua autonomia política”, conta o historiador. Um plebiscito garantiu a emancipação e embu nasceu oficialmente como município em 18 de fevereiro de 1959. e as coisas começaram a acontecer. cássio M’Boy investiu na criação de um núcleo de arte popular que motivou vários artistas a se estabelecerem no lugar, um movimento que começou nos anos 1960. Destacam-se entre os ilustres novos moradores o poeta solano Trindade (que também tinha uma companhia de teatro e dança) e o marceneiro Claudionor Assis Dias, o Mestre Assis, que se notabilizou pela qualidade artística de suas esculturas de madeira.

Sonho realizado

Raquel Trindade, filha de Solano, conta que seu pai foi conhecer embu a convite de Mestre Assis e acabou ficando na cida- de. “Faziam-se rodas de dança na Praça da lagoa, o que atraía muitos turistas nos fins de semana”, diz. Ela lembra que naquela época todos os artistas da cidade chegavam ao final do domingo com os bolsos cheios e que essa bonança acabou por atrair outros artistas. “como todos pintavam, faziam à mão convites para os eventos de embu, que eram dis- tribuídos nos consulados e nos hotéis.” solano Trindade mantinha um grupo de danças folclóricas e Raquel participava como bailarina, mas um acidente a obrigou a parar de dançar. então, em 1964, um acontecimento inesperado mudou sua vida. ela se inscreveu num concurso patrocinado pela revista “claudia”, da editora abril, chamado “claudia Realiza seu sonho”, e contou que tinha o desejo de pintar. o sonho de Raquel foi escolhido para ser publicado e ela recebeu como prêmio várias caixas de material importado para pintura (coisa caríssima naqueles anos), além de uma exposição individual, em que vendeu muito bem, graças à divulgação feita pelos promotores do concurso. O mais importante, porém, foi que ela ganhou um incentivador que acabaria atuando como seu protetor: o físico Mário Schenberg, um dos críticos da exposição.

Hoje, Raquel Trindade é conhecida não apenas por sua arte em estilo naïf (palavra que significa “ingênuo” em francês e é usada para designar um gênero de pintura com cores exuberantes e traços simples). ela é também escritora, folclorista e uma incentivadora das artes. Escreveu um livro sobre a história de embu das artes e atuou como consultora em uma coleção que apresenta os orixás da cultura negra para leigos.

Apesar da riqueza de sua produção artística, solano Trindade era um homem pobre, e foi sustentado financeiramente por vários mecenas, segundo revela sua filha. Ele também conseguiu ter uma casa já no final da vida graças ao apoio de diversos amigos – entre eles Milton nascimento, elis Regina e Roberto carlos –, que bancaram um espetáculo musical com a finalidade de arrecadar dinheiro e lhe dar um teto. Recentemente, Raquel Trindade conseguiu verba pública para construir um espaço em homenagem ao pai. o Teatro Popular solano Trindade, próximo ao centro da cidade, tem na entrada uma estátua do poeta e serve de palco para grupos de danças folclóricas e outras atividades culturais.

O movimento artístico de embu ganhou impulso com o 1o salão de artes Plásticas, realizado em 1964. (a princípio, o evento era anual, mas foi interrompido e retomado recentemente, desta vez a cada dois anos. agora mesmo, por exemplo, está acontecendo o 28o salão, que terá suas obras expostas até o final de janeiro.) a reunião de vários artistas e artesãos num mesmo local deu origem à hoje famosa Feira do embu, cujo marco inicial data de 1969 e que se apresenta, até agora, como a principal atração turística da cidade. Realizada aos sábados e domingos, ela é conhecida internacionalmente e atrai a cada semana em torno de 25 mil turistas. Montada de início defronte à igreja matriz, ela acabou ocupando todas as ruas do centro histórico, hoje conhecido como Passeio das artes. Paralelamente ao crescimento do número de barracas dedicadas à comercialização de todo tipo de artesanato, foram surgindo pontos comerciais especializados nesse tipo de mercadoria – galerias de arte, antiquários e lojas de móveis rústicos.

À medida que os anos passavam e embu das artes ganhava projeção, outros artistas e artesãos se mudaram para lá. os mais destacados deles são Álvaro Franklin, ana Moysés, Ângela klinke, Mônica alvarenga, WaldeMar e Wanderley Ciuffi. Curiosamente, muitos dos profissionais que se exercitam ali naïf e suas obras ganharam o mundo.

O escultor Zé Figueiredo é outro que ficou fascinado por Embu das Artes, isso ainda em 1968. Ele estudava física, mas abandonou o curso quando descobriu que não podia ter um acelerador de partículas para brincar no quintal de casa. Depois, fez matemática e foi professor até descobrir que “ser artista é o único meio de obter a liberdade total”. engajou-se ativamente no movimento artístico local e começou a escrever sua história. Premiado no 8o salão de artes Plásticas de embu, Zé Figueiredo expôs na Bienal de são Paulo, em 1972, e começou a trabalhar com decoradores, paisagistas e arquitetos. O escultor enfrentou vários contratempos no plano artístico e hoje, apesar do sucesso que experimentou no passado, é dono de uma empresa de vasos e objetos para jardins.

Desemprego

Já a artesã Maria Lindáurea Sá Freitas mudou-se para o embu mais recentemente. Desde muito jovem ela já se dedicava ao artesanato, tendo começado a fazer peças com retalhos de pano para ajudar no sustento de casa quando, ainda adolescente, ficou grávida. Nos anos 1980, ao perder o emprego, seu marido passou a viver de artesanato, expondo na Praça da República, em São Paulo, um dos mais tradicionais pontos da capital e que é palco da Feira de arte e artesanato. Hoje esse evento abriga 600 barracas que comercializam, principalmente, peças do nordeste, do norte e de alguns países vizinhos. lindáurea sempre ouvia dizer que seu trabalho tinha a “cara de embu”, até que, em 2000, acabou se mudando para lá. apesar de ter parado de estudar na sétima série, a artesã tem uma vocação filosófica e reflete muito sobre seu trabalho e a responsabilida- de com o meio ambiente. com pedaços de tecidos que seriam jogados fora, ela faz bolsas, colares e outras peças de artesanato. “são Paulo descarta 380 mil toneladas de resíduos de tecido por ano e eu, de minha parte, procuro fazer um trabalho voltado para a reciclagem, a sustentabilidade.” lindáurea conta que era insegura quando chegou a embu, mas mudou muito. “aqui, ganhei qualidade de vida e meu trabalho passou a ser valorizado”, acrescenta.

S cidade tinha cerca de 5 mil habitantes em 1960, número que chegou a 18 mil em 1970 e 95 mil em 1980. De lá para cá a população não parou mais de aumentar e hoje está estimada em 250 mil pessoas. Não é preciso dizer que um crescimento tão explosivo gerou problemas. Como não consegue oferecer trabalho para todos e grande parcela dos embuenses tem seu emprego na capital, o município acabou se transformando em cidade-dormitório. hoje, 190 mil habitantes de embu das artes moram no lado leste da cidade (que corresponde a apenas 20% de sua área), justamente aquele que faz divisa com são Paulo, enquanto os 60 mil moradores restantes se acomodam no lado oeste, cheio de chácaras com bosques verdejantes.

Ss crises econômicas recentes trouxeram a embu altos índices de desemprego e, consequentemente, de violência. em meados dos anos 1990, o município atingiu um triste recorde, com uma taxa de mais de cem homicídios por 100 mil habitantes. ao mesmo tempo, o poder público se achava atolado em denúncias de corrupção, tanto que, em 1999, a Justiça afastou de suas funções 18 de seus 19 vereadores. Depois dessa má fase, embu abriu os braços para projetos que trouxeram desenvolvimento e qualidade de vida a seus moradores. além de investimentos em infraestrutura, a cidade ganhou pontos de cultura onde são realizadas oficinas de artes plásticas, música e dramaturgia. Apesar dos esforços, muitos problemas de antes ainda persistem.

Como 60% do território de embu das artes se encontra em regiões de mananciais e a ocupação desordenada do solo tem prejudicado o meio ambiente, defensores da natureza pedem que o poder público contenha a expansão imobiliária naquelas áreas. Por outro lado, não são poucos os que afirmam que a cidade precisa de espaço para crescer. No centro dessa polêmica está o novo plano diretor, aprovado pela câmara Municipal no primeiro semestre de 2012. O principal motivo de discórdia é o “corredor empresarial” – uma via projetada com grandes espaços laterais para abrigar empresas do segmento comercial –, que vem sendo combatido com unhas e dentes pelos ambientalistas. o problema é que a nova estrada vai cortar áreas de mata nativa. os defensores do investimento argumentam que aquela parte da cidade precisa incentivar novas atividades econômicas para garantir emprego para a população. Eles dizem que embu não tem apenas a vocação tradicional do turismo cultural, sendo uma cidade multivocacionada, que precisa trabalhar em várias direções para garantir bem-estar a todos os seus moradores.

“Aquela parte da cidade já é ocupada de forma desordenada, e o plano diretor veio para colocar ordem na bagunça”, afirma Hillmann Albrecht, Presidente da Associação Comercial, Industrial e de Serviços de Embu (Acise), entidade que reúne cerca de 500 empresas locais. A seu ver, esse instrumento de desenvolvimento urbano deverá motivar o crescimento sustentável da cidade. “há a expectativa de que as novas atividades no corredor empresarial venham a criar 5 mil novos empregos, proporcionando um adicional de R$ 50 milhões ao orçamento municipal, que hoje gira em torno de R$ 250 milhões”, diz o prefeito Francisco Brito. Ele assegura que o município está conseguindo reverter sua característica de cidade-dormitório graças à geração de novas vagas de trabalho.

Segundo dados da prefeitura local, hoje o lado leste de Embu das artes conta com cerca de 30 mil vagas de emprego, 80% delas nos setores de comércio e serviços. Já no lado oeste – no qual foi projetado o corredor empresarial – são 24 mil os postos de trabalho. “É preciso incentivar novas atividades, para que o município possa levar adiante seus projetos sociais”, observa o prefeito. “Embu das artes está dentro do G-100, um grupo de cem cidades em que o orçamento per capita é inferior a R$ 1,5 mil ao ano”, diz Brito, que foi reeleito ainda no primeiro turno. segundo ele, enquanto a prefeitura de embu das artes dispõe de R$ 1,4 mil por pessoa para investir, Barueri, outra cidade da Grande são Paulo conhecida por abrigar um importante centro empresarial, tem orçamento equivalente a R$ 15 mil per capita.

O Rodoanel Mário Covas também vem modificando a paisagem de Embu das artes, que é cortada ao meio pela Régis Bittencourt, rodovia que liga São Paulo ao sul do país e aos principais centros econômicos do Mercosul. A localização da cidade é altamente estratégica: ela está situada na primeira saída do trecho sul do rodoanel, para quem vem de santos. “Ou seja, Embu das artes virou a esquina do Brasil”, diz albrecht. nos últimos meses foram construídos nume- rosos centros logísticos nos dois sentidos da Régis Bittencourt na altura de embu das artes, e a municipalidade vê com bons olhos esses investimentos porque, é claro, geram empregos. Porém, como quase tudo no município, isso também é motivo de polêmicas. Muitos dizem que o número de vagas abertas pelos centros logísticos é pequeno e sua qualidade é discutível. E não faltam críticas ao impacto que essas instalações estariam causando ao trânsito da cidade.