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Canonizado pelo povo

Por: JOSE´ PAULO BORGES

"Sabemos da trage´dia da seca que assola nosso progresso, da seca que dizima vidas e impede plantas de brotarem, resseca o cha~o e mata nosso gado. Voce^s sa~o vencedores por virem ate´ Juazeiro em um momento ta~o difi´cil e delicado para todos.” Era meio-dia de 2 de novembro de 2012. Encerrava-se em Juazeiro do norte, munici´pio de 250 mil habitantes no extremo sul do estado do ceara´, a 550 quilo^metros de Fortaleza, a maior manifestac¸a~o de fe´ sertaneja conhecida – a Romaria de Finados, tambe´m chamada de Romaria da esperanc¸a. na multida~o de romeiros que lotava a Basi´lica Menor de nossa senhora das Dores, em meio a uma onda de chape´us de palha erguidos bem alto num gesto de adeus ao padre ci´cero, o alagoano ci´cero Rodrigues era um desses vencedores retratados na orato´ria do bispo Dom Fernando Panico, durante a pregac¸a~o de despedida aos peregrinos.

Na~o e´ para menos. Para chegar a Juazeiro, Ci´cero e por volta de 80 romeiros que vieram com ele da cidade de caninde´ de sa~o Francisco, no estado de Sergipe, sacolejaram durante oito horas em cima de um caminha~o pau de arara e um o^nibus mambembe. Dormiram em redes, beliches e colchonetes, e ate´ no cha~o. E prepararam as refeic¸o~es – arroz, feija~o, cafe´, ac¸u´car e carne de boi e de galinha que trouxeram de casa – na cozinha de uma hospedaria para la´ de preca´ria conhecida por ali como “rancho”, local onde chegam a se amontoar, durante as romarias, ate´ 200 peregrinos, adultos e crianc¸as.

Na cidade, entre inconta´veis missas e peregrinac¸o~es aos lugares considerados sagrados pelos romeiros – como o tu´mulo do padre ci´cero, ao pe´ do altar da capela de nossa senhora do Perpe´tuo socorro –, enfrentaram um tra^nsito e um calor infernais, sem falar dos tapumes de obras que dificultavam a chegada a`s igrejas, da ause^ncia de banheiros pu´blicos, da falta de postos de informac¸o~es aos romeiros perdidos na multida~o e do risco constante de furtos. Mas na~o se queixaram. Todo esse sacrifi´cio vale a pena porque, como os peregrinos na~o se cansam de dizer, “e´ tudo pelo meu padrinho Padim cic¸o” – a maneira carinhosa como os nordestinos se referem ao padre que eles consideram santo.

A promessa que Ci´cero Rodrigues foi pagar na~o tinha nada a ver com as mazelas da seca apontadas pelo bispo. Ele peregrinou a Juazeiro para depositar na cama pequena, estreita e simples onde o “padre sertanejo” dormia a camisa vermelha e branca de seu time, o comercial, bicampea~o invicto do torneio de amadores do bairro de Olaria, em Caninde´ de Sa~o Francisco. A cama esta´ exposta no museu do “Padim”, no centro de Juazeiro do Norte, local que guarda uma infinidade de objetos pessoais, pinturas e fotos do religioso. “Prometi ao padre ci´cero que faria esse gesto caso o comercial chegasse em primeiro lugar”, disse o devoto. na~o foi fa´cil conquistar o ti´tulo, ainda mais que a finali´ssima foi disputada contra o “temi´vel” Juventude. “Mas vencemos, 2 a 1”, orgulhava-se ci´cero – que por si- nal e´ presidente do comercial –, depois da cerimo^nia religiosa na basi´lica e ja´ com um pe´ na escada do pau de arara, pronto para ir embora. “ano que vem eu volto”, anunciou, enquanto o caminha~o dava a partida.

“Ano que vem eu volto.” essa convicc¸a~o, sem sombra de du´vida, embala os corac¸o~es e as mentes dos mais de 2 milho~es de peregrinos que participam do ciclo de romarias que acontece em Juazeiro do norte todos os anos. Desses eventos de fe´ sertaneja se destacam: a Romaria das candeias, um espeta´culo de religiosidade iluminado pelo brilho de milhares de velas (2 de fevereiro); a semana do Padre ci´cero (18 a 24 de marc¸o), festa em comemorac¸a~o ao nascimento do “Padim”, onde na~o faltam o bolo e o “parabe´ns a voce^” cantado a` meia-noite; a Romaria da Ma~e das Dores (15 de setembro), a mais antiga de Juazeiro, em homenagem a sua padroeira, uma tradic¸a~o que se fortalece a cada ano e que foi estimulada pelo pro´prio padre Ci´cero, e, por fim, a Romaria da Esperanc¸a (de 29 de outubro a 2 de novembro).

Colina do Horto

Segundo ca´lculos da Secretaria de Turismo e Romarias de Juazeiro do norte, cerca 500 mil romeiros de todos os pontos do nordeste, principalmente de Alagoas, Pernambuco, Parai´ba e Sergipe, participaram da Romaria da esperanc¸a de 2012. O nome do evento se justifica: “‘esperanc¸a’ porque, mesmo realizada na e´poca de Finados, na~o se destina a evocar os mortos. E´ uma manifestac¸a~o da fe´ romeira, do povo simples do serta~o que acorre a Juazeiro, invocando a protec¸a~o de padre ci´cero, fazendo pedidos e agradecimentos”, explica o padre Joaquim Cla´udio de Freitas, da paro´quia de Nossa Senhora das Dores.

Justamente um sentimento de esperanc¸a e de agradecimento foi o que levou, na ve´spera do Dia de Finados, a romeira Rita Teixeira de lira, da cidade de crateu´s, no Ceara´, a subir a pe´ ate´ o cume da colina do horto sob um calor de 36 graus. Distante 8 quilo^metros do centro de Juazeiro, com 500 metros de altitude (cerca de 120 metros acima da cidade), aquele e´ um local ao mesmo tempo histo´rico e sagrado para os peregrinos: era la´ que o padre ci´cero descansava de suas andanc¸as e pregac¸o~es pelo serta~o do cariri, e e´ la´ que se ergue sua imagem de 27 metros de altura, modelada em concreto, o principal destino daquela gente. A esperanc¸a de Rita, segundo ela pro´pria, e´ a de que fac¸a “bom tempo” no serta~o. “Minha avo´, Rosa, sempre dizia que bom tempo e´ quando chove, e e´ de chuva que a gente esta´ precisando”, explicou. Ja´ o agradecimento, esse dura mais de 20 anos. E´ pela cura do diabetes que estava deixando o filho dela, Eliva^nio Teixeira, entrevado. Rita tem certeza de que essa grac¸a foi obtida por intercessa~o do padre ci´cero. “Todos os anos venho a Juazeiro agradecer ao Padim”, contou Rita no meio da multida~o que na~o parava de chegar ao horto – a pe´, de moto-ta´xi, van ou o^nibus fretado – para pagar promessas, suplicar por outra ajuda do “santo” ou, simplesmente, rezar aos pe´s de sua imagem.

Enquanto Rita, eliva^nio e o grupo de romeiros que veio com eles de crateu´s assistiam a mais uma missa no alto da colina do horto, la´ embaixo, na igreja Matriz de Nossa Senhora das Dores – outro centro de peregrinac¸o~es –, o padre isai´as nascimento na~o se cansava de atender os fie´is. “Nesta e´poca, a pro- cura por confisso~es e´ tanta que faltam padres. Comecei a ouvir os fie´is a`s 6 da manha~ e so´ deverei parar a`s 6 da tarde”, relatou ele. “os romeiros na~o apenas se confessam, mas tambe´m pedem a Deus que mande chuva e que a vida deles melhore”, disse o religioso, que veio da paro´quia de Propria´ (se) para reforc¸ar a equipe de pa´rocos locais na longa e cansativa maratona de missas, confisso~es e be^nc¸a~os. “embora seja venerado pelo sertanejo, o padre ci´cero na~o e´, como muitos imaginam, um deus para essa gente simples”, explica nascimento. E completa afirmando que “para eles, acima de tudo, o padre ci´cero e´ uma refere^ncia de fe´. Mais do que ningue´m, ele compreendia o sertanejo, falava sua linguagem e era entendido por este povo. Por isso, sua memo´ria esta´ viva ate´ hoje”.

De seu posto na recepc¸a~o no Plaza hotel, no centro de Juazeiro do norte, sua terra natal, Paulino costa ha´ anos observa as idas e vindas dos romeiros. segundo ele, o perfil dessa gente tem mudado de uns tempos para ca´. “Ate´ o comec¸o dos anos 1990, era fa´cil distinguir um romeiro dos demais moradores da cidade. As mulheres usavam chape´u de palha, lenc¸o amarrado no pescoc¸o, um roupa~o azul e um corda~o na cintura, e os homens vestiam roupa~o preto. eles se assustavam com a movimentac¸a~o da cidade e eram motivo de chacota. vinham em paus de arara com o objetivo de pagar promessas e na~o se importavam com o conforto”, observa. hoje em dia, diz costa, os peregrinos chegam em o^nibus fretados e querem ventilador, ar-condicionado e aparelho de teve^ nos quartos dos hote´is. ele comenta que tambe´m tem havido mudanc¸as na forma de penite^ncia. “era comum ver romeiros atravessando as igrejas ajoelhados. hoje, eles preferem acender velas e mandar rezar missas. a penite^ncia esta´ em extinc¸a~o”, assinala.

Alguns decidem ficar

No u´ltimo dia da romaria, na ruazinha estreita em frente ao Plaza hotel e por todos os cantos da cidade onde os romei- ros circulam, os prego~es dos vendedores ambulantes enchem o ar. “Tre^s calcinhas por apenas R$ 5”, “Uvas do vale do sa~o Francisco, terra abenc¸oada”, “compre seis copos de alumi´nio e leve a bandeja de grac¸a”, “O´leo de Massagem Padre ci´cero, previne celulite e estrias”. Nessa e´poca, Juazeiro do norte se transforma num bazar a ce´u aberto, o parai´so dos camelo^s. a estudante universita´ria Francisca Maria Gonc¸alves e seu carrinho de som, onde expo~e DvDs e cDs de tema religioso, e´ uma no meio daquela imensa multida~o de vendedores ambulantes. Francisca esta´ concluindo a faculdade de letras na Universidade Regional do cariri (Urca) e e´ a segunda romaria de que participa com o propo´sito de ganhar algum dinheiro. “Tambe´m sou professora”, conta.

Enquanto alguns romeiros pedem a ela que coloque para tocar o cD com a mu´sica cuja letra diz: “segura meu barco, senhor, na~o deixa meu barco afundar”, Francisca aproveita para contar que vem de uma fami´lia que acredita que o padre ci´cero e´ um santo. “antigamente eu tambe´m pensava assim, agora estou em du´vida. o corac¸a~o pede para acreditar, mas a raza~o diz o contra´rio”, declara.

Cerca de 90% do come´rcio em torno da romaria e´ informal. e, como em todo nego´cio, alguns vendem como a´gua, ou- tros ficam no prejui´zo. O juazeirense Jose´ Ramos de Barros na~o tinha muito de que se queixar. ate´ Finados, u´ltimo dos cinco dias de romaria, sua banca de utensi´lios de alumi´nio tinha rendido um lucro li´quido de mais de R$ 2 mil. “Com certeza, vou faturar mais que isso”, comemorava. na verdade, nem a prefeitura de Juazeiro do norte consegue avaliar quanto em dinheiro vivo gira no carrossel da economia informal durante as romarias. “Ja´ tentamos va´rias vezes fazer esse ca´lculo, mas e´ impossi´vel”, afirma Jose´ Carlos dos santos, secreta´rio de Turismo e Romaria do munici´pio. Segundo ele, mais de 25 mil camelo^s desembolsaram entre R$ 22 e R$ 62 para cadastrar suas barracas na prefeitura. “Mas ha´ milhares de vendedores ilegais por toda a cidade”, acrescenta.

Infelizmente, as romarias tambe´m trazem um saldo negativo para o munici´pio. O secreta´rio de Turismo e Romaria cita como exemplo a grande aflue^ncia de pessoas a` cidade, “que acaba gerando sor e jornalista, de nome Jose´ Marrocos, cuidou de alardear o fato atrave´s da imprensa. O suposto milagre arrastou multido~es para a pequena vila de Juazeiro, trazendo fama e prosperidade ao local.

Ci´cero, pore´m, foi acusado por membros do Vaticano de mistificac¸a~o (manipulac¸a~o da crenc¸a popular) e heresia (desrespeito a`s normas cano^nicas); em 1894, foi punido com a suspensa~o da ordem. Por todo o restante da vida, ele tentou, em va~o, revogar a pena. Em 1898, foi a Roma e encontrou-se com o papa lea~o Xiii, que lhe concedeu indulto parcial, mas manteve a proibic¸a~o de rezar missas; apesar disso, ci´cero jamais deixou de celebra´-las em sua igreja em Juazeiro.

Depois da cassac¸a~o, sua casa, antes visitada apenas por romeiros, passou a ser alvo de peregrinac¸o~es de poli´ticos e autoridades com o propo´sito de convence^-lo a entrar na vida pu´blica. em 22 de julho de 1911, o padre foi eleito prefeito do rece´m-criado munici´pio de Juazeiro do norte, cargo que ocupou por 15 anos.

Ci´cero sabia tanto acolher os misera´veis que chegavam a` cidade tangidos pela fome e pela seca (e deles se tornaria o Padim cic¸o protetor) quanto negociar com os grandes latifundia´rios e poli´ticos conservadores do ceara´ a permane^ncia no poder. Engajou-se nas disputas poli´ticas entre os oligarcas cearenses e acabou se vendo forc¸ado a enfrentar tropas do exe´rcito, enviadas para uma intervenc¸a~o. Ci´cero usou sua popularidade para convencer os fie´is a pegar em armas, obrigando o governo federal a recuar.

Posteriormente, foi nomeado vice-governador do ceara´ e eleito deputado federal, mas, como na~o queria deixar Juazeiro, jamais exerceu nenhum desses cargos. Ate´ o fim da vida, foi uma das mais expressivas figuras poli´ticas do estado.

Apo´s sua morte, em 20 de julho de 1934, aos 90 anos de idade, sua fama e seus feitos foram divulgados pelos poetas populares, na~o raro com certo exagero. em 2005, por iniciativa de dom Fernando Panico, foi aberto um processo oficial de reabilitac¸a~o de Ci´cero perante o vaticano. com a aprovac¸a~o, sera´ pos- si´vel iniciar os procedimentos para sua beatificac¸a~o. Contudo, se o padre Ci´cero Roma~o Batista na~o foi canonizado pela igreja cato´lica, o Padim cic¸o ja´ e´ tido como santo por sua imensa legia~o de fie´is espalhados pelo Brasil, principalmente no nordeste. No dia 22 de marc¸o de 2001, ele foi eleito o cearense do se´culo, em pesquisa organizada pela Rede Globo e Tv verdes Mares.