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Em busca de um selo inteligente

ALBERTO MAWAKDIYE

O setor de construção imobiliária parece ter descoberto uma maneira de separar o joio do trigo no que tange à classificação dos edifícios que poderiam ser realmente considerados sustentáveis – ou ecologicamente corretos. A exemplo do que ocorre na indústria de transformação, que há décadas concede certificados para produtos fabricados de acordo com normas técnicas ou ambientais, os empreendimentos prediais comprometidos de fato com a sustentabilidade começam a receber selos que atestam não ter sido a iniciativa anunciada apenas uma grosseira operação de marketing.

A coisa chegou a tal ponto que edifícios dotados apenas de luzes que acendem sozinhas e de sistemas de elevadores eletronicamente controlados, ou mesmo que apresentem uma nesga de jardim no pátio dos fundos, são apresentados nos folhetos promocionais como “inteligentes” ou “verdes”. E isso não acontece apenas no Brasil, mas praticamente em todos os quadrantes, a despeito de, em geral, não serem uma coisa nem outra. Muito pelo contrário, há incontáveis prédios ditos “inteligentes”, por exemplo, que são vorazes consumidores de energia, e edifícios alardeados como “verdes” com arquitetura tão disfuncional que mais parecem pequenos projetos de geração de efeito estufa.

O objetivo da certificação, portanto, é dissipar essa confusão, que acabou se instalando no mercado devido à intenção de muitas construtoras e incorporadoras de atender meio que freneticamente à demanda da sociedade por prédios cada vez mais automatizados e seguidores das boas práticas ecológicas. “De certo ponto de vista, hoje praticamente qualquer nova edificação pode ser considerada inteligente ou verde, pois sempre traz embarcado algum sistema de controle eletrônico ou alusões ecológicas embutidas na arquitetura”, afirma Paulo Sanchez, diretor da Sinco Engenharia e vice-presidente de Tecnologia e Qualidade do Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (SindusCon-SP). “Os conceitos se vulgarizaram e a sociedade perdeu o controle sobre eles”, diz.

Segundo Sanchez, tanto a noção de edificação inteligente, que surgiu nos Estados Unidos no final dos anos 1970 e se espalhou rapidamente pelo planeta na década seguinte (o primeiro prédio desse tipo no Brasil, do Citibank, foi construído ainda no começo dos anos 1980, na Avenida Paulista, em São Paulo), quanto a de edifício verde, no sentido meramente paisagístico e não de eficiência ambiental, vêm sendo suplantadas, nesta última década, pela de edificação sustentável, muito mais firme e abrangente.

“Trata-se de uma edificação em que o uso da tecnologia é ancorado na gestão racional dos recursos prediais, nos cuidados com a economia de água e energia, assim como na boa arquitetura interna e no conforto ambiental dos usuários”, explica o vice-presidente do SindusCon-SP. “Os projetos também privilegiam a utilização de materiais ecologicamente corretos e recicláveis e evitam o máximo possível o desperdício e as interferências na vizinhança durante a fase de construção”, completa.

Também como acontece na indústria de transformação, são agências independentes que concedem os selos de certificação para os edifícios considerados realmente sustentáveis. Dado o tamanho e a importância da cadeia da construção civil brasileira – ela responde por algo em torno de 15% do Produto Interno Bruto (PIB) do país, hoje a sétima maior economia do mundo –, essas agências, poucas ainda, são em geral organizações de abrangência internacional. A mais famosa e atuante delas é, sem dúvida, o Conselho de Construção Sustentável do Brasil (GBC-Brasil), de origem americana, cujo selo – a Certificação Leed (da sigla de Liderança em Energia e Design Ambiental, em inglês) – é também o mais cobiçado de todos. Outra certificação referencial é a Breeam, concedida pelo Building Research Establishment (BRE), entidade inglesa dedicada à pesquisa de questões relacionadas a edificações há mais de um século, e que, pode-se dizer, está praticamente debutando no Brasil.

Quarto colocado

Há também selos de entidades brasileiras, como o Processo Aqua (Alta Qualidade Ambiental), da prestigiada Fundação Vanzolini, ligada à Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP) e referência internacional em qualidade e inovação na construção civil, o Rótulo Ecológico, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e o Procel Edifica, do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Os dois últimos, porém, são mais específicos, voltados para materiais de construção e consumo energético, respectivamente.

O mais surpreendente é que as entidades certificadoras mal estão dando conta do recado, tamanho o interesse da indústria imobiliária brasileira em obter um atestado de sustentabilidade e a incrível quantidade de projetos que estão sendo apresentados para o escrutínio das agências. O primeiro selo concedido no Brasil – uma Certificação Leed – foi recebido pela agência do Banco Real em Granja Viana, em Cotia, na região metropolitana de São Paulo, em 2007, portanto, há apenas cinco anos. Até agosto de 2012, o GBC-Brasil já havia certificado 65 empreendimentos e se encontravam em análise outros 524 projetos imobiliários espalhados por todo o país. Para ter ideia da magnitude desses números, eles fazem do Brasil o quarto colocado no ranking mundial da instituição, atrás apenas dos Estados Unidos, China e Emirados Árabes Unidos, e à frente da Alemanha, Canadá e Coreia do Sul. O selo Leed está presente em mais de 130 países e em todos os continentes.

“Isso demonstra que o mercado imobiliário brasileiro está maduro e preparado para ingressar no universo da sustentabilidade construtiva, já que obter uma Certificação Leed não é uma coisa simples e requer o atendimento de uma série enorme de exigências”, afirma Marcos Casado, gerente técnico do GBC-Brasil. Segundo ele, os critérios dessa certificação englobam desde a eficiência energética e o uso racional da água, dos materiais e recursos até a qualidade ambiental interna, a sustentabilidade dos espaços, as inovações e tecnologias e a relação com o entorno. Em termos práticos, trata-se de um minucioso sistema de pontuação (40 a 110 pontos), que divide o selo em quatro diferentes níveis: Básico, Silver, Gold e Platinum. O GBC também leva em conta, em suas análises, o tipo e a finalidade de cada edificação. O selo é concedido sempre depois de a obra ter entrado em operação.

Apesar de todos esses desafios, empreendimentos dos mais diferentes tipos já foram certificados ou estão sendo apreciados pela entidade. Há na lista, com endereços em todo o Brasil, desde edifícios corporativos, como os da Google, Siemens, Barclay, Morgan Stanley, Vale e Petrobras, até os de instituições bancárias, como os do Bradesco, Itaú e Banco do Brasil. Constam, ainda, empreendimentos de varejo como os do Pão de Açúcar e da Leroy Merlin, prédios hospitalares e residenciais, hotéis, centros culturais – um bom exemplo é dado pelas unidades de Sorocaba e de Birigui (ambas em São Paulo) do Serviço Social do Comércio (Sesc) –, auditórios e até estádios de futebol (já foram solicitadas certificações para nove das 12 arenas previstas para sediar os jogos da Copa do Mundo de 2014).

Mesmo que em menor escala, tem sido significativa a adesão ao Processo Aqua, que, sob alguns aspectos, é até mais rigoroso, embora a maioria dos critérios se assemelhem aos do selo Leed, tais como as exigências relativas à economia de água e energia e à sustentabilidade ambiental. Lançado em 2008 e baseado no processo de certificação francês Démarche HQE, usado em vários países, o certificado da Fundação Vanzolini foi desenvolvido e adaptado à cultura, ao clima, às normas técnicas e à regulamentação brasileiros. Porém, diferentemente do certificado do GBC-Brasil, abarca também a fase de planejamento da obra.

“Para ser certificado, o empreendimento tem de ser pensado desde suas fases iniciais”, explica Manuel Carlos Reis Martins, coordenador executivo do Processo Aqua e de sistemas de gestão ambiental da Fundação Vanzolini. Ele diz que, assim, o empreendimento já nasce sustentável. “Desse modo, o controle do projeto fica mais efetivo, pois a gestão permanece integrada do início do planejamento até sua entrega e entrada em operação.”

Assim como na Certificação Leed, o Processo Aqua é mensurado por meio de objetivos de desempenho – totalizando 14, nesse caso – que devem ser atingidos em níveis bom, superior ou excelente, distribuídos em quatro grandes temas: ecoconstrução, ecogestão, conforto e saúde. O contexto local e a estratégia ambiental de longo prazo do empreendedor também são levados em conta. Apesar dos difíceis referenciais técnicos, algumas dezenas de projetos comerciais, residenciais, de centros de comércio e galpões industriais já obtiveram o sinal verde do selo Aqua, entre eles o edifício corporativo Cidade Jardim Corporate Center e o residencial Park One, em São Paulo, o Parque Eco Tecnológico Damha e o Horizon Residence Premium, no interior paulista, e, no Rio de Janeiro, o Américas Shopping e o Polo Verde da Ilha do Bom Jesus, no Parque Tecnológico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de obras dos mais diversos tipos em Brasília, no sul e no nordeste do país.

Obviamente, seria um erro atribuir o interesse dos empreendedores na obtenção do selo de sustentabilidade somente a egoísticas finalidades mercadológicas e institucionais – embora naturalmente elas desempenhem um papel importante aqui. O custo da construção de um empreendimento comercial referendado pela Certificação Leed, por exemplo, será em torno de 1% a 7% maior que o de uma edificação convencional. E, ainda assim, esse acréscimo dependerá do nível de certificação, pois em alguns casos pode ser mais elevado.

Acontece que a sustentabilidade também dá lucro, já que o aumento do custo da construção será facilmente coberto pelo retorno representado pela redução de gastos operacionais. Num típico prédio Leed, além da melhoria da qualidade interna (com maior luminosidade e menor uso do ar condicionado, entre outras vantagens) e do consumo inferior de energia (em torno de 30%), há também a diminuição de até 50% no dispêndio de água e de até 80% na produção de resíduos. Isso sem falar na queda média de 9% no custo de operação do empreendimento durante toda a sua vida útil e na valorização de 10% a 20% em seu preço de revenda. As vantagens não se evidenciam apenas em prédios de escritórios ou residenciais – nos quais a diminuição dos custos condominiais sempre esteve diretamente ligada à eficiência dos sistemas prediais –, mas em edifícios de todos os tipos.

No centro de distribuição da fabricante de tratores Case IH, do grupo CNH, em Sorocaba (SP), que recebeu a Certificação Leed em meados do ano passado, por exemplo, o consumo geral de água ficou 30% menor em média, e o de energia, quase 40%, graças à implantação de sistemas de iluminação e refrigeração mais econômicos. “Vamos poupar cerca de R$ 410 mil por ano”, afirma José Roberto Manis, diretor de Operações de Peças da CNH América Latina.

Já o Parque Eco Tecnológico Damha, de São Carlos (SP), que recebeu a certificação Processo Aqua, tornou-se o primeiro e único empreendimento no país desse tipo, privado e de terceira geração, concebido segundo os mais rígidos critérios de sustentabilidade. “Vamos estender esses parâmetros a todas as edificações empresariais que sejam montadas no empreendimento”, explica José Paranhos, diretor superintendente da Damha Urbanizadora.

O parque ecotecnológico será instalado junto de um conjunto residencial e de um parque ecoesportivo, de modo a formar um bairro sustentável, inclusive com matas cuja proteção já foi estabelecida. “O lugar vai reunir espaços de lazer, de conscientização ambiental, esportes e moradia, que se integrarão a um complexo empresarial e a um centro comercial”, resume Paranhos.

Todavia, não basta querer para ter acesso a um selo de sustentabilidade. O próprio GBC-Brasil admite que metade dos projetos submetidos a sua apreciação não atende aos requisitos necessários, levando à renúncia da certificação. As dificuldades são de toda ordem, podendo ser enumeradas, principalmente, as relacionadas à implantação de novas tecnologias e equipamentos para a redução do consumo de energia elétrica, um item que as certificadoras monitoram com extremo rigor. Na Certificação Leed, por exemplo, é exigida uma redução mínima de 10% no consumo previsto de energia elétrica.

“As precondições também são complexas”, explica Renata Moraes, diretora do Núcleo de Comunicação e Sustentabilidade da Racional Engenharia, uma das empresas mais envolvidas com a construção de prédios sustentáveis no Brasil. “O projeto precisa contemplar diretrizes ambientais desde a prospecção do terreno – privilegiando, por exemplo, a facilidade de acesso ao transporte público – e adotar medidas de redução de impactos ambientais durante o período de construção, como o controle de erosão e sedimentos, o encaminhamento correto dos resíduos de construção a aterros etc.”

Ainda segundo Renata, mesmo os produtos utilizados na estrutura e no acabamento do empreendimento são monitorados e somam pontos caso tenham alto conteúdo de material reciclado ou sejam originados de regiões próximas à construção (o encurtamento do trajeto a ser realizado no transporte, normalmente feito por caminhões, contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa). “É preciso mais que um bom projeto para levar adiante uma obra certificada”, destaca a executiva da Racional Engenharia. “É essencial, também, ter boa logística, experiência com os fornecedores e conhecimento dos tipos de materiais empregados e do entorno da obra”, ressalta.

Modernização da indústria de componentes

O Brasil teria sido impedido de avançar no restrito território da construção sustentável se não tivesse realizado um enorme esforço, na década de 1990, para desenvolver uma indústria de materiais, sistemas e componentes com qualidade suficiente para dar conta das crescentes exigências tecnológicas do setor. O país, hoje, produz praticamente tudo o que é necessário para uma obra de caráter mais sofisticado, desde a fundação ao acabamento, com as mais diferentes formas e padronagens. Os produtos e sistemas são quase sempre certificados por normas técnicas, em geral redigidas pelos comitês setoriais da ABNT.

Mais recentemente, em 2009, a ABNT lançou o Rótulo Ecológico, destinado não apenas à construção civil, mas a todos os segmentos do mercado. O objetivo da rotulagem é garantir que o processo de produção gere menos impacto ambiental. “Temos 120 itens diferentes com nosso selo, de cabos de rede elétrica a produtos para limpeza de mãos, de mobiliário de escritório a peças de sinalização viária”, diz Guy Ladvocat, gerente técnico de certificação de sistemas da entidade.

Outro exemplo de insumo de construção civil certificado com o rótulo da ABNT são os aços longos da siderúrgica ArcelorMittal. O produto chega ao canteiro já cortado, dobrado e pré-armado, permitindo a eliminação de várias etapas da obra.

A exigência das entidades certificadoras de que os materiais utilizados nas edificações venham de áreas próximas ao empreendimento (até um raio de 800 quilômetros) pode aumentar ainda mais esse salto qualitativo do país, redistribuindo para várias regiões a produção de componentes de maior qualidade (concentrada basicamente no sudeste). A Construtora Laguna, do Paraná, que está erguendo em Curitiba o sofisticado conjunto de edifícios Iguaçu 2820, vem utilizando, preferencialmente, materiais fabricados na região. “Esta é uma obra de grande porte, e estamos agindo assim porque, além de se tratar de um incrível estímulo para a economia local, queremos obter a Certificação Leed”, justifica a engenheira Cássia Assumpção, coordenadora de planejamento de obras da empresa.

O conjunto Iguaçu 2820 fica no bairro do Batel, importante polo de comércio, serviços e gastronomia e uma das áreas mais valorizadas da capital paranaense. Contará com equipamentos prediais de altíssima tecnologia (como iluminação automatizada com gradação de luz), salas com infraestrutura para automação de persianas e janelas, e acessos equipados com fechaduras biométricas. Cássia esclarece que ele apresentará um alto padrão de acabamento e conforto, com o uso de mármore no piso, forro de gesso, louças e metais sofisticados e eficientes, e portas de entrada acústicas, entre outras comodidades.

Ferramentas urbanísticas

O que se poderia chamar de “cultura da sustentabilidade” na indústria da construção civil surgiu, objetivamente, com a necessidade de contornar os crescentes custos de energia, a escassez de água potável e o esgotamento dos locais destinados à deposição de resíduos. No Brasil, por exemplo, as edificações consomem 42% de toda a energia gerada no país e 21% da água tratada e geram 65% dos resíduos dos aterros – uma espiral de deseconomia que sem dúvida precisava ser combatida.

As certificações de sustentabilidade, por sua própria natureza, são concedidas basicamente a empreendimentos individuais, o que lhes dá certa conotação de gota no oceano, mas a tendência é que avancem também na direção do urbanismo.

De fato, as agências certificadoras preveem a concessão de selos a bairros e regiões ou a grandes conjuntos edificados, e no Brasil já existe pelo menos um bom exemplo de “projeto bairro” sendo analisado por uma certificadora – no caso, o GBC-Brasil, responsável pela Certificação Leed. Trata-se do Parque da Cidade, que a Odebrecht Realizações Imobiliárias (OR) lançou este ano, em São Paulo.

Ocupando um terreno de aproximadamente 80 mil metros quadrados, na zona sul da capital paulista, o parque – um complexo de edifícios corporativos, de escritórios e residenciais e que ganhará um hotel e um shopping center – está totalmente integrado a um espaço verde de 22 mil metros quadrados e transformará uma área degradada em referência de sustentabilidade e planejamento urbano.

O eixo principal, que servirá de ligação entre os edifícios, também será provido de áreas verdes, sendo dotado ainda de infraestrutura de serviços e lazer, com restaurantes, teatro, playgrounds e ciclovias. “O empreendimento está em sintonia com os planos municipais de revitalização da região, estabelecidos pela Operação Urbana Águas Espraiadas da prefeitura”, explica Paulo Melo, diretor regional da OR.

A ferramenta das certificações já começa, inclusive, a despertar o interesse do poder público. O Instituto de Pesquisa, Administração e Planejamento (Ipplan), de São José dos Campos, no interior de São Paulo, criou em julho do ano passado o Selo de Arquitetura Notável, que visa destacar projetos arquitetônicos ousados, sustentáveis e que valorizem a estética urbana.

Serão certificados projetos residenciais, comerciais e industriais que sigam padrões definidos e se destaquem pela arquitetura diferenciada, conforme critérios de originalidade, beleza, acessibilidade, sustentabilidade ambiental e contemporaneidade. “Os prédios deixarão de ser vilões para se tornar os ‘mocinhos’ da cidade”, explica o arquiteto e urbanista Rubengil Gonçalves, do Ipplan.