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Paixão pelos sons do Brasil
CECILIA PRADA
Personalidade marcante, reconhecida há muito tempo no meio intelectual e musical de São Paulo em sua tripla condição de cantora, professora e escritora, Léa Vinocur Freitag resolveu apresentar, em 2012, por conta própria, uma terceira edição, revista e ampliada, de seu livro Momentos de Música Brasileira, lançado em 1985 e reeditado em 1986 pela Editora Nobel. É obra que alcança um público numeroso e variado – de pesquisadores universitários especializados em música ou em cultura geral a apreciadores e interessados em aprender mais sobre os vários aspectos da música brasileira, desde os seus primórdios. Ou, como diz Cremilda de Araújo Medina, jornalista e professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Léa “fornece um trabalho ímpar na literatura musical de nosso país”, já que, por sua formação simultânea em música e em sociologia, “optou pela cosmovisão humanista e estendeu seu radar a um horizonte sem limites”.
De fato, à grande erudição de Léa Freitag e à seriedade de suas pesquisas somam-se os conhecimentos especializados da profissão, que também teve, de cantora, intérprete e divulgadora da música brasileira. Participante em concertos no Brasil e em vários pontos do exterior, ela é tida como artista sensível, dona de belíssima voz de soprano e capaz de acrescentar às suas apresentações palestras didáticas sobre especificidades da música brasileira de cunho nacionalista, da modinha e dos lundus do Brasil Colônia às formas mais contemporâneas. Sua paixão pelos temas que estuda parece inesgotável, e ela conta em seu currículo com mais de 300 artigos, críticas musicais e ensaios em revistas especializadas. É também membro titular da Academia Nacional de Música e recebeu várias comendas.
O livro atual contém a essência de duas teses defendidas por Léa Freitag na USP: a de doutoramento, “O Nacionalismo Musical no Brasil”, de 1972 – a primeira tese de sociologia da música elaborada no país –, e a de livre-docência, de 1977, “A Canção Brasileira Erudita e Semierudita como Expressão do Binômio Arte- -Sociedade”. É uma edição muito bem cuidada e revisada, que coincide com o lançamento do CD Modinhas Coloniais e Imperiais, com interpretações da autora.
No prefácio feito para a primeira edição da obra, o grande compositor e professor Camargo Guarnieri, dirigindo-se diretamente à autora, diz: “A partir de uma tese de doutoramento, que poderia restringir- -se aos parâmetros próprios da espécie, você, com sua fecunda curiosidade e desejo de melhor servir os leitores, aprofundou seus estudos e pesquisas sobre o importante tema da música brasileira. E o fez com a lucidez de um mestre”. E acrescenta que, baseando seus estudos nos melhores trabalhos de musicólogos, críticos, etnólogos, sociólogos, filósofos e historiadores, Léa prova que “a música brasileira existe como fato concreto, objetivo, que pode ser cientificamente comprovado pela experiência e registros de nossa história cultural”.
A primeira preocupação de Léa Freitag é a definição do nacionalismo à luz da sociologia e da história, estudado como fator preponderante na busca de uma linguagem própria para a música e para as outras manifestações artísticas da nacionalidade. Pois, como dizia Mário de Andrade – citado pela autora –, “uma arte nacional que não se faz com escolha discricionária e diletante de elementos de uma arte nacional já está feita na inconsciência do povo”.
A valorização da história da música legitimamente brasileira – demonstrada tanto pela autora como pelo maestro Camargo Guarnieri – evoca um debate bem antigo, que remonta aos primórdios de nosso modernismo, à Semana de Arte de 1922 e ao movimento antropofágico de Oswald de Andrade, com seus extremismos. Basta lembrar a indignação da pianista Guiomar Novaes, que, assustada com a ira iconoclasta dos “rapazes” promotores da Semana – da qual ela participara –, publicou um protesto nos jornais, anunciando sua ruptura com o movimento, pela intolerância demonstrada “em relação às demais escolas de música, das quais sou intérprete e admiradora”.
Completude
Fazendo convergir seu foco sobre essa questão, com pleno aproveitamento de sua formação acadêmica, Léa Freitag nos dá uma sensação geral de completude, de solidez de argumentação, de amplidão de informações que chegam a surpreender, considerando-se que a presente obra não contém senão pouco mais de 200 páginas. A despeito disso, como em um milagre, ela conseguiu condensar no volume suas duas teses e ainda apresentar biografias e críticas de vários artistas destacados, tanto no campo das canções como no da ópera e da música de câmara, bem como realçar a contribuição de eruditos professores. É o caso do maestro Furio Franceschini – figura de relevo na musicologia brasileira, principalmente por seu papel na formação de músicos – e de Ruy Coelho, que foi, para Léa, o grande professor de sociologia da arte da USP. Pela variedade temática dos artigos que a autora reuniu para completar seu livro – da ópera de Carlos Gomes a estudos de Verdi, de perfis de intérpretes a uma entrevista com Franco Zeffirelli quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro em 1979 –, podemos ter uma ideia da extensão e da qualidade do material jornalístico que elaborou nos muitos anos em que fez crítica de música para os jornais “O Estado de S. Paulo” e “Jornal da Tarde”.
O CD Modinhas Coloniais e Imperiais, que ela define como “obra de juventude, com toda a espontaneidade e a esperança dessa fase da vida”, é um trabalho de paixão, que constitui reedição, com tecnologia atualizada, de um antigo LP seu, gravado em concerto de 1966. Nele, Léa é acompanhada ao piano por Maria do Carmo de Arruda Botelho, que se tornara famosa já na década de 1930 como pianista da cantora Vera Janacopulos e seus alunos em turnês pelo Brasil e em Paris.
O gênero da modinha tem sido registrado e estudado por muitos musicólogos, donde o valor inclusive documental do CD gravado por Léa. Na parte do Brasil Colônia, estão reunidas composições, com versos de Tomás Antônio Gonzaga feitos para sua amada Marília, extraídas do livro A Modinha e o Lundu no Século 18, de Mozart de Araújo. Quanto ao relevo que teve a modinha de salão, basta lembrar o que diz dela Mário de Andrade, que via sua ampla aceitação na corte e em outros círculos sociais, desde a segunda metade do século 18, como um vagalhão que dominou a musicalidade burguesa do Brasil e de Portugal, “inundando tudo, compositores, festas e impressores, só vindo o maremoto morrer aos nossos pés republicanos com os últimos dias do Segundo Império”.
Em plena atividade como professora titular da ECA, Léa até hoje é tida como uma especialista em “exumar partituras”. É o que diz Régis Duprat, professor titular de história da música da USP: “Inquieta, ela pesquisa para tirar do esquecimento autores e obras. [...] Léa contribui para transformar o ensino da música e as atividades universitárias, iluminando, com seu exemplo, pensamentos, atos e obras, o caminho da autêntica vida universitária”.