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O Brasil entre os primeiros

MIGUEL NÍTOLO

A criação do real, quase duas décadas atrás, e a estabilidade econômica que se seguiu legaram ao país avanços jamais vistos no campo econômico. O Brasil, definitivamente, mudou, mas certas coisas continuam como no tempo do cruzeiro e do cruzado, atravancando o crescimento e desanimando quem está disposto a investir. Por exemplo: o processo para abrir uma empresa pode demandar aqui mais de cem dias, contra apenas 30 no exterior, na média, já que em alguns lugares esse prazo é ainda menor. Levantamento sobre ambiente de negócios divulgado recentemente pelo Banco Mundial mostra o Brasil na 130ª posição entre 185 economias pesquisadas, uma análise que avalia as facilidades para colocar uma empresa a funcionar, considerando, em especial, as questões tributárias e regulatórias, no que diz respeito a abertura, instalação e operação.

“É uma pena que um país como o Brasil, que vive um momento tão oportuno, com um mercado consumidor crescente, não tenha evoluído no ritmo necessário do ponto de vista legal”, disse em depoimento à revista “Veja” a economista Rita Ramalho, uma das coordenadoras da pesquisa. “Só com uma grande vontade política de coordenar as diferentes instâncias de governo – federal, estadual e municipal – será possível fazer as transformações necessárias para que o país deixe de apresentar um ambiente tão hostil a quem quer fazer negócios”, ela arrematou.

Parece um contrassenso, mas, a despeito do atraso apontado pelo levantamento do Banco Mundial, o empreendedorismo caminha a passos largos em território nacional, espelhando o desejo das pessoas comuns de ser donas do próprio nariz. Cada vez mais brasileiros se encontram, hoje, à frente de negócio próprio ou investindo na criação de um, condição que confere ao país, entre 54 nações analisadas, a oitava maior proporção de empreendedores em relação ao tamanho da população adulta. A 12ª edição da Global Entrepreneurship Monitor (GEM), publicada meses atrás, revelou que o Brasil tem 27 milhões de empreendedores, o equivalente a 27% da população com idade entre 18 e 64 anos, resultado quase 30% superior ao de 2010 e que dá ao país a terceira posição no ranking que classifica as nações pelo número de empreendimentos. A China, a nação mais populosa do planeta, aparece na liderança, com 369,9 milhões de empreendedores, seguida pelos Estados Unidos, com 39,7 milhões.

Segundo o mesmo levantamento, do total de empreendedores em atividade no Brasil, 7,7 milhões têm entre 25 e 34 anos. Outro aspecto é que 4 milhões deles operavam negócios com até 3 meses de vida ou vinham trabalhando com vistas a se estabelecer, 11 milhões respondiam por empreendimentos com 3 meses a 3,5 anos de vida e 12 milhões estavam no mercado há mais de 3,5 anos. O estudo também detectou que a maior parte deles pretende contratar nos próximos cinco anos. Uma das mais abrangentes pesquisas sobre empreendedorismo no mundo, a GEM é realizada no Brasil, desde 2000, pelo Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP). “Saímos do empreendedorismo de fundo de quintal para negócios mais preparados profissionalmente”, diz Marcelo Hiroshi Nakagawa, coordenador do Centro de Empreendedorismo do Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper), instituição dedicada à educação e à geração de conhecimento nas áreas de negócios e economia.

Plano B

É certo que, quando falamos em empreendedorismo, fazemos especial menção ao universo da micro e da pequena empresa, o grosso dos negócios em atividade no país. Afirmam mesmo que esse segmento responde pela maior parte dos empreendimentos formais em operação, contribuindo com dois em cada três postos de trabalho gerados pelo setor privado. O fato é que o empreendedorismo ganha corpo na mesma proporção do avanço da formalidade no país, já que uma coisa está intrinsecamente ligada à outra. Pessoas que trabalham por conta própria e se legalizam, por exemplo, estão na linha de frente do fenômeno que está mudando a feição dos segmentos comercial, industrial e de serviços.

A expansão econômica e o aumento do crédito, entre outras razões apontadas pelos especialistas, fizeram com que milhares de brasileiros abandonassem a segurança da carteira assinada pelo negócio próprio. Tanto é assim que o crescimento do número de empresas abertas está, em parte, sendo puxado pelos microempresários individuais (MEIs). As estatísticas mostram que o Brasil tem, atualmente, 2,5 milhões de MEIs, número que poderá chegar a 4 milhões em 2014 e alcançar 8 milhões em 2022.

Envolvido com a expansão do empreendedorismo individual, o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) ilustra o vigor com que esse segmento se desenvolve no país relatando o exemplo bem-sucedido da agricultora catarinense Lídia Rezende Zanetti, de Xaxim, a 526 quilômetros de Florianópolis, que até há alguns anos vivia essencialmente do plantio de milho e da produção de leite nas terras da família (marido e dois filhos). A vida dos Zanetti começou a mudar a partir da visita de um consultor da entidade, que fez um diagnóstico da propriedade e mostrou a Lídia que era possível aumentar a renda mediante a produção de doces. Ela, então, frequentou o curso Negócio Certo Rural, ministrado pelo Sebrae, e que trata das boas práticas na produção de alimentos, da formação de preço e das técnicas de gestão. “Em pouco mais de dois anos, o que era um bico se tornou a principal atividade da família”, esclarece a Agência Sebrae, informando que Lídia acabou se transformando numa microempreendedora individual. Hoje o negócio dos Zanetti, instalado em prédio próprio, produz, mensalmente, além de massas e bolachas, 8 mil doces que são comercializados em toda a região.

“Esse é o novo empreendedor brasileiro, que valoriza e recomenda a formalização”, disse em recente depoimento o presidente do Sebrae, Luiz Barretto. “Mais importante ainda é o fato de que o empreendedorismo cresce mesmo com o nível elevado de emprego”, observou. Ou seja, abrir um negócio, atualmente, é uma alternativa e não, propriamente, uma questão de sobrevivência. Esse é, seguramente, o diferencial que torna o empreendedorismo de agora mais dinâmico e estável em relação ao do passado, quando parte das pessoas que partiam para o negócio próprio apenas buscava um jeito de compensar o emprego perdido. “Quando a economia vai bem e proliferam na mídia notícias de empreendedores que estão vencendo, é natural que as pessoas insatisfeitas com seu emprego acabem partindo para a carreira solo”, afirma Nakagawa. A seu ver, mesmo empregado e com carteira assinada, o trabalhador não deve abrir mão de um plano B, relativo à abertura do negócio próprio. “Esse cuidado pode ser muito útil, tanto nos momentos de crise quanto nos de pujança econômica”, observa.

Ambiente favorável

O paulista Luiz Etore Lanfredi tinha um plano, só que, em seu caso, para ser colocado em prática quando deixasse de bater ponto. Recentemente aposentado de uma grande companhia de saneamento, ele agora se movimenta para abrir uma empresa e utilizar sua larga experiência acumulada em anos de trabalho. “Será uma prestadora de serviços de saneamento especializada em novos loteamentos”, revela. Lanfredi argumenta que a aquisição de uma retroescavadeira, máquina de escavar de importância ímpar nesse tipo de negócio, é o passo mais difícil e oneroso dessa sua investida e, por isso mesmo, não será dado tão cedo. “Feito isso, porém, terei andado meio caminho”, diz.

Uma coisa é certa: a expansão do empreendedorismo tem avançado de mãos dadas com o aumento do poder aquisitivo da classe C, a nova classe média – milhões de brasileiros que, com mais dinheiro no bolso, estão imprimindo maior vigor ao mercado (a previsão é que ela movimente R$ 1,2 trilhão em 2013, quase R$ 200 bilhões a mais que em 2012). “Além do fortalecimento dessa camada da população como mercado consumidor, a melhoria das condições de renda propicia o incremento do empreendedorismo por oportunidade”, observa Millor Machado, da área de desenvolvimento de produtos e planejamento estratégico da Empreendemia (rede social para pequenas e médias empresas) e um dos editores do blog Saia do Lugar. Ele diz que o brasileiro normalmente é dotado de boas habilidades sociais, condição que tende a gerar empresários capacitados a “vender o peixe”. Ou, como destaca a diretora da Junior Achievement Brasil, Wilma Resende Araújo Santos, “nosso povo é empreendedor e, por natureza, criativo e corajoso”.

Wilma sabe do que está falando. Fundada nos Estados Unidos em 1919 e presente em 120 países, a Junior Achievement é talvez a mais antiga organização de educação prática em negócios, economia e empreendedorismo do mundo. Mantida pela iniciativa privada e ativa em praticamente todo o território brasileiro, a instituição tem por objetivo “despertar o espírito empreendedor nos jovens ainda na escola, estimulando seu desenvolvimento pessoal por meio de uma visão clara do mundo dos negócios e facilitando o acesso ao mercado de trabalho”. Até hoje, a Junior Achievement beneficiou no país perto de 3 milhões de crianças e jovens mediante o trabalho de 100 mil voluntários. “Quando a economia emite sinais de estabilidade e oferece boas perspectivas de crescimento a curto e a médio prazo, o instinto empreendedor das pessoas fica mais aguçado e as ideias inovadoras são logo colocadas em prática”, comenta Wilma. Ela assinala que o empreendedor – que entra com seu potencial, talento e trabalho – sente-se desafiado. “E se o entorno é favorável, o resultado é positivo”, salienta.

Muitos dos brasileiros atendidos pela Junior Achievement pertencem à classe C, um quadro que contrasta com a realidade dos países mais avançados, onde o empreendedorismo ainda é comandado por representantes das classes A e B. Segundo o Sebrae, aqui os mais bem posicionados financeiramente são donos de 37,5% dos negócios e as classes D e E detêm apenas 7,3%, respondendo a classe C por mais da metade do total, com 55,2%. Em outras palavras, a mesma classe média que incendiou o mercado de celulares, aqueceu as vendas de equipamentos eletrônicos, computadores e produtos da linha branca, engordou os números do mercado imobiliário e fez a indústria automobilística pisar no acelerador está mudando o quadro e o perfil do empreendedorismo no Brasil.

Empresas inovadoras

Não é demais lembrar que, de 2003 a 2011, em torno de 32 milhões de pessoas ascenderam à classe C, e já repousa sobre os ombros desses brasileiros a responsabilidade pelo crescimento sustentado da nação. A nova classe média, indubitavelmente, se beneficiou da estabilidade econômica patrocinada pelo real, o que faz supor que sua participação na abertura de novos negócios se alargará daqui para a frente. No ano passado, dos 19,7 milhões de brasileiros interessados em iniciar uma empresa, 58,3%, ou seja, 11,5 milhões, integravam o grupo dos ricos recentes. “O motor que conduziu à expansão da renda dessa gente foi o emprego, mas será o empreendedorismo que vai levá-la adiante”, diz Renato Meirelles, sócio-diretor do Data Popular, empresa paulistana de estudos e pesquisas sobre o mercado e a economia da base da pirâmide social. “Só mesmo como empresárias as pessoas podem crescer sem os limites e a hierarquia do emprego tradicional.” Estimativas mostram que o número de brasileiros que pertencem à classe C, que era de 65,9 milhões em 2003 e atingiu 105,4 milhões em 2011, deverá alcançar 118 milhões em 2014.

Os novos empreendimentos, retratam as pesquisas, pertencem em grande parte ao setor de serviços, ou seja, negócios que exigem menor investimento inicial. Despontam entre eles os salões de cabeleireiro, as lanchonetes, as empresas de estética corporal, de pedreiros, de eletricistas residenciais, de fornecedores de marmitex e de especialistas em manutenção de computadores. Nunca se abriram tantos salões de beleza como agora no Brasil (são mais de 50 mil só no estado de São Paulo), investida que, segundo os entendidos, pode ser explicada pelo excesso de profissionais no mercado e pelo fato de que as pessoas das classes C, D e E estão cuidando mais da aparência. Daí, também, a expansão dos negócios relacionados a estética corporal. A fisioterapeuta Cláudia Ragazzi, no ramo desde 2010, decidiu diversificar suas atividades, passando a oferecer também tratamentos de combate à celulite, à flacidez e à gordura localizada. Formada também em educação física e em edificações, ela diz que não troca por nada sua atividade. “É gratificante poder ajudar as pessoas, especialmente mulheres, que chegam desejosas de superar imperfeições e realçar a beleza.” Cláudia conta que a maior parte dos clientes que passam pelo tratamento fisioterápico acaba se interessando pelas sessões de estética, isso quando não faz as duas coisas simultaneamente. Na realidade, a exemplo de tantos outros brasileiros, Cláudia é dona de um espírito francamente empreendedor: há dez meses ela abriu também uma imobiliária e revela agora a disposição de passar a atuar, futuramente, na prestação de serviços em áreas mais sofisticadas da fisioterapia.

Enfim, o mercado oferece oportunidades a quem quer empreender. As chances de crescimento não se limitam aos setores tradicionais, como mostra a expansão do e-commerce e das startups, dois segmentos que crescem a olhos vistos no país, atraindo empreendedores locais e de fora graças à dinâmica da economia. O primeiro utiliza plataformas eletrônicas (computadores e celulares) para executar operações de compra e venda de produtos a partir de lojas virtuais; o segundo é composto de empresas que investem em inovação e, muitas vezes, trabalham em condições de extrema incerteza. “O e-commerce cresceu muito nos últimos anos e, com o plano nacional de banda larga, ainda veremos muitas empresas sacramentarem excelentes negócios pela internet”, destaca Millor Machado, da Empreendemia. Crescendo à média de 40% ao ano, o comércio eletrônico pode ter movimentado no Brasil, no ano passado, mais de R$ 20 bilhões. Na verdade, ele vem avançando em todo o mundo, e é um dos poucos segmentos que se mantêm no azul na Europa em crise, especialmente na Espanha e em Portugal. Por sua vez, as empresas nascentes e inovadoras, como se definem as startups, “têm um pouco de moda, mas muito de modelo a ser seguido”, afirma o diretor técnico do Sebrae Nacional, Carlos Alberto dos Santos. O ponto positivo a destacar é que elas ganham terreno e se firmam como uma das boas opções de investimento do empreendedorismo brasileiro.