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Irreverência ao som da viola caipira
HERBERT CARVALHO
O Brasil do início do século passado tinha 24 milhões de habitantes e uma economia agroexportadora centrada no ciclo do café, que dava mostras de esgotamento, ao produzir mais do que o mercado mundial em crise podia absorver. Enquanto cidades como São Paulo e Rio de Janeiro abrigavam a elite letrada e ganhavam ares de metrópoles europeias, importando hábitos, além de produtos industriais, oito em cada dez brasileiros eram analfabetos e moravam na roça, configurando o personagem que Monteiro Lobato batizou de Jeca Tatu.
“Ignorante e indolente, nada o põe de pé. Social, como individualmente, em todos os atos da vida, antes de agir, acocora-se. Sua casa de sapé e lama faz sorrir os bichos que moram em toca”, fustigou o escritor e fazendeiro paulista, estimulando um preconceito contra o matuto que iria cindir o mundo rural em dois grupos, ainda hoje antagônicos. De um lado, tradicionalistas como Rolando Boldrin e Inezita Barroso, herdeiros do pioneiro Cornélio Pires, resistem na defesa da música e da cultura de raiz, assediadas pelas hordas ditas sertanejas, que, ao buscar se diferenciar dos malsinados caipiras, renderam-se aos rodeios e ao country made in USA.
Quando o “caboclo” – palavra de origem tupi que significa “procedente do mato” –, mestiço de branco com índia, passou a ser também o “caipira” – o “que corta o mato” –, sua primeira forma de expressão artística se deu por meio da viola, instrumento esculpido em toco de pau, trazido pelos jesuítas portugueses e que, no Brasil, adquiriu características próprias relativas a cada região, variando quanto ao formato, número de cordas e tipos de afinação.
O caipira e sua viola, já retratados no século 19 pela pintura de Almeida Júnior, passam a ser intelectualmente legitimados a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, que propunha valorizar tudo o que fosse nacional, verdadeiro, nativo e original. Nos estados do sudeste, do sul e do centro-oeste, integrantes do que historiadores chamam de Paulistânia – a grande região resultante das expedições bandeirantes dos séculos 17 e 18 –, os bugres catequizados estavam na origem das manifestações culturais que o modernista Mário de Andrade pesquisou e catalogou como o cururu, o cateretê e a catira. Da mescla desses ritmos dançantes com o modo de falar arcaico – e não “errado”, de acordo com o crítico Antonio Candido – de populações avessas a mudanças rápidas em seus costumes nasceria a moda caipira, gênero para o qual o próprio autor de Macunaíma contribuiu, como compositor de Viola Quebrada.
Ao trazer para a cidade um retrato da vida no campo, ao mesmo tempo em que expunha o choque cultural das populações rurais expulsas e obrigadas a tentar a vida nos centros urbanos, a moda de viola cantada por duplas tomou conta, a partir de 1929, do rádio e da indústria fonográfica. Precedida pelos nordestinos Jararaca e Ratinho e sucedida pelos irmãos Tonico e Tinoco, de São Manuel, no interior de São Paulo, a principal dupla a fixar no público o estereótipo da camisa xadrez e calças remendadas, chapéu de palha desfiada e botinas de cano curto, com violas atadas aos ombros – o avesso do figurino tecnopop do “breganejo” atual –, foi a de Alvarenga e Ranchinho, músicos nascidos há cem anos. Ao reconstituir a trajetória dos cantores caipiras mais engraçados de todos os tempos, também conhecidos como os “Milionários do Riso”, Problemas Brasileiros contribui para o resgate da autêntica cultura popular, que sobrevive apesar de esquecida pela maior parte dos veículos de comunicação.
Dois Pires, um Capitão
A cidade de Tietê, situada no curso do rio homônimo e distante 121 km da capital do estado de São Paulo, está na origem do processo de afirmação da cultura caipira. Ali nasceram, na mesma família, com um intervalo de 23 anos, seus dois maiores divulgadores: Cornélio Pires (1884-1958) e o sobrinho Ariowaldo Pires (1907-1979), mais conhecido pelo pseudônimo de Capitão Furtado.
Folclorista e etnógrafo dedicado ao estudo do dialeto caipira (derivado do nheengatu, a língua geral indígena proibida pela coroa portuguesa após a expulsão dos jesuítas, no século 18), o escritor e jornalista Cornélio Pires colocou pela primeira vez no palco uma dupla de violeiros, em 1910, no Colégio Mackenzie. Nesse mesmo ano lançou Musa Caipira, marco inicial de uma série de 26 livros dedicados aos usos e costumes tradicionais das gentes do interior, que divulgou também por meio de mais de 5 mil palestras educativo- -humorísticas feitas a partir de 1914.
Em 1929, Cornélio levantou um empréstimo e pagou à gravadora americana Columbia a prensagem de 25 mil cópias de cinco discos em 78 rpm com anedotas, desafios, declamações, canas-verdes, cateretês e a primeira moda de viola gravada, cantada pela dupla Caçula e Mariano. Síntese de sua trajetória é a resposta dada por um matuto no sítio da família, em Tietê, ao ser questionado sobre onde estava o dono da casa: “Saiu. Foi arremedá nóis pra morde ganhá dinheiro”.
Seguidor da trilha aberta por Cornélio, o sobrinho Ariowaldo dedicou a maior parte de seus 72 anos de vida a divulgar o “caipirismo” através de discos, filmes e, principalmente, do rádio, que, entre as décadas de 1930 e 1960 (quando a TV se popularizou) foi o grande veículo de comunicação de massa no Brasil. Em razão de seu trabalho pioneiro na criação de programas como Arraial da Curva Torta, na Rádio Difusora, as principais estações da época, como a Tupi e a Nacional – nas quais também trabalhou –, passaram a dedicar ao gênero os primeiros horários matinais.
Para evitar comparações com o tio e também por causa de um prejuízo sofrido ao trocar de emissora no início da carreira de radialista, adotaria o nome que o celebrizou como “a maior patente da música caipira”. Mais tarde, inconformado com a dificuldade em receber direitos autorais das centenas de músicas gravadas com letras de sua autoria, retificaria: “Não sou Furtado, sou Furtadíssimo”. Foi nos corredores da Rádio São Paulo, em 1934, durante ensaio de seu programa “Cascatinha do Genaro”, que dois meninotes, então cantores de tango e de paródias, chamaram sua atenção. Pediu-lhes que fizessem uma cana-verde na base do “uai, uai, acabemo de chegá” e decidiu: ali estava a dupla que procurava para Fazendo Fita, primeiro filme sonoro produzido em São Paulo. Os três, em breve, seriam parceiros e desembarcariam no Rio de Janeiro como “A Trinca do Bom Humor”.
Crítica musical
Murilo Alvarenga (1912-1978), nascido em Itaúna (MG), e Diésis dos Anjos Gaia (1913-1991), natural de Jacareí (SP), resolveram cantar juntos pela primeira vez em 1928, numa seresta em Santos (SP). Alvarenga ali estava acompanhando o Circo Pinheiro, onde fazia malabarismos, trapézio e palhaçadas, tocava e cantava. Gostava de tango e tinha especial pendor para inventar paródias. Diésis, filho de um mestre de bandas, também queria ser artista e tentava sobreviver cantando músicas românticas na Rádio Clube local. Soltava a voz em No Rancho Fundo e de tanto cantar a canção de Ary Barroso e Lamartine Babo ficou conhecido como Rancho. Ao se juntar a Alvarenga virou Ranchinho, por ser de menor estatura.
Aquela que seria o arquétipo da dupla caipira humorística começou ainda em Santos, sob a lona do circo, cantando um repertório sério de valsas, tangos e modinhas. Mas a plateia os achava engraçados assim mesmo e desatava a rir. Vendo que “fazer rir é mais interessante artisticamente que fazer chorar” – nas palavras de Ranchinho –, a dupla resolveu contar piadas entre as músicas. Com essa fórmula, que incluía paródias e marchinhas de carnaval, foram acolhidos no Teatro Recreio, na capital paulista, onde o diretor e maestro Breno Rossi decidiu levá-los para o rádio.
Após participarem do filme produzido pelo Capitão Furtado, estreando o figurino que daí em diante seria a marca das duplas caipiras, Alvarenga e Ranchinho gravaram, em 1936, o primeiro grande sucesso em disco, que os tornaria conhecidos nacionalmente. Itália e Abissínia – composição assinada pela trinca – satirizava a invasão da atual Etiópia por Mussolini, transportando a luta “lá pro fundo do quintar”, onde “a Bastiana co seo Bepe já chegaro a se unhar”.
Refletindo a realidade de bairros paulistanos como o Bexiga, onde negros descendentes de escravos africanos conviviam com imigrantes italianos, a moda de viola temperada pelo sotaque caipira terminava, após várias estrofes belicosas, com um apelo pacifista: “Na minha fraca opinião,/ o meior que a gente faiz/ é acabá co’a brigaiada/ e vortá a vivê in paiz...// dá orde pra sordadesca/ que vorte tudo pra traiz,/ cada quar vai pra sua casa/ e num se briga nunca mais”.
No mesmo ano a dupla lançou o cateretê Liga das Nações – em referência à associação de países que precedeu a atual Organização das Nações Unidas (ONU) entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial – para elencar de maneira jocosa os atributos de diferentes nacionalidades. Os dos brasileiros eram “besteira”, “muamba”, “rasteira” e “samba”; dos turcos, “negociante”, “concorrência”, “prestação” e “falência”; dos portugueses, “condutor”, “batata”, “bacalhau” e “mulata”, e assim por diante, continuando com a caricatura de alemães, japoneses, italianos e espanhóis.
Tanto nas sátiras quanto nas anedotas, o que se via era um humor ingênuo, mas que agradou ao público pelo ineditismo de se fazer crítica social, política e de comportamento em forma de criativo espetáculo musical. Em 1937, após chegarem ao Rio de Janeiro, então capital federal, e se apresentarem em rádios e teatros ao lado do Capitão Furtado, que os revelara, logo teriam à disposição para seus improvisos o ambicionado palco das grandes atrações nacionais e internacionais daquele tempo.
Estado Novo
No Cassino da Urca, onde se apresentaram até a proibição dos jogos no país, em 1946, a temática das críticas se voltaria do cenário internacional para o nacional, ridicularizando os poderosos do Estado Novo, inclusive o ditador Getúlio Vargas, a quem chamavam de “baixinho”. E cantavam: “Aviso aos puxa-sacos. Tampem os ouvidos porque vamos mexer com os maiorais”, advertiam logo no início das apresentações. Como os comunistas e os integralistas – versão tupiniquim do nazifascismo então ascendente na Europa – amargavam cadeia e perseguições por fracassadas tentativas armadas de chegar ao poder, Alvarenga e Ranchinho provocavam, ao som da viola: “Na sua casa tem comunista?/ Tem integralista?/ Não vou lá./ Peço licença pra mandá/ Filinto Müller em meu lugar”, ironizavam, evocando a figura sinistra do truculento chefe de polícia.
Gozações com o líder do integralismo – “Plínio Salgado,/ quando abre a voz,/ faz mal ao fígado/ de todos nós” – ou dirigidas ao interventor Benedito Valadares – “outra mamata não pego jamais,/ oh, Minas Gerais” – chegaram gravadas até o público, mas muitas, inventadas no calor da hora, se perderam por falta de registro. A ousadia, como não poderia deixar de ser, trouxe problemas. Os dois eram convocados com frequência a prestar esclarecimentos ao Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), cujo chefe, Lourival Fontes, adotara uma tática para pressioná-los: deixava-os sentados em salas de espera de delegacias durante várias noites e os mandava liberar na manhã seguinte, sem explicações. Certa vez, ao entrarem por uma janela do banheiro em razão de obras no Cassino da Urca, bateram de frente com Benjamim Vargas, irmão de Getúlio, que, sentado no vaso sanitário, disparou: “Vocês são mesmo uma dupla de merda”.
Essa situação mudaria no dia 19 de abril de 1939, quando Alzira Vargas os convidou para uma recepção no Palácio do Catete, sede do governo, em comemoração ao aniversário do pai. Ao ouvir os versos que criticavam a burocracia estatal em História de um Soldado – sobre um militar que perde a parada, escreve ao cabo justificando-se e o papel vai rolando e se multiplicando pela hierarquia até chegar a Getúlio, “que é homem muito ativo/ pegou a papelada e mandou para o arquivo” –, Vargas explodiu em uma gargalhada que representaria, daí por diante, liberdade de expressão para a dupla.
Até 1965, quando se separaram, Alvarenga e Ranchinho deixaram gravadas 343 músicas em 78 rpm e meia dúzia de LPs com sucessos estrondosos, como o hilário Romance de uma Caveira, cuja reverberação fantasmagórica incorporou-se às brincadeiras das crianças do interior.
Além de caricaturar no palco o capiau perdido na cidade grande, como a partir da década de 1950 Mazzaropi faria no cinema, a dupla abordou as temáticas de uma sociedade em transformação – como indicam os títulos A Mulher e o Telefone, O Divórcio Vem Aí, A Baixa do Café e, na troca da moeda, em 1943, Você já Viu o Cruzeiro? –, levantando questões ainda hoje atuais. Em Tá Tudo Subindo falaram de uma inflação que nunca deixou de atormentar os brasileiros e em Liga dos Bichos anteciparam o fenômeno do consumo pet: “Esse mundo tá virado,/ tem coisa que não se atura./ Enquanto a gente passa apertado,/ os bicho passa fartura”. Versáteis, também é deles Eh! São Paulo, hino em louvor à terra da garoa, assim como Mister Eco, uma paródia da canção americana Good Morning, Mister Echo.
A dissolução da dupla se deu pela dificuldade de compatibilizar a seriedade e organização de Alvarenga com a boêmia e o desleixo de Ranchinho, que bebia, se atrasava ou faltava aos compromissos. Isso fez com que surgissem mais dois Ranchinhos: quando Diésis sumia, Alvarenga convocava seu irmão por parte de mãe, Delamare de Abreu, para substituí-lo. Após 1965, Homero de Souza Campos cumpriu esse papel por mais 12 anos.
Descaracterização
Sem o Ranchinho original, justamente o mais pândego dos dois, a dupla já não provocava tanto interesse. Ao mesmo tempo, também era outro o ambiente reservado ao caipirismo, constrangido a render-se ao mercado ou a retornar aos rincões de onde viera.
Muitas e variadas foram as ondas de assédio estrangeiro que se revezaram para descaracterizar a música caipira tal qual fora concebida e divulgada por Cornélio Pires e pelo Capitão Furtado. À introdução dos rasqueados e das guarânias paraguaias, de que seria exemplo o repertório de Cascatinha e Inhana, seguiu-se o advento das rancheiras e dos corridos mexicanos com metais estridentes, como na célebre Estrada da Vida, de Milionário e José Rico.
O pior ainda estava por vir, com a introdução de guitarras e chapéus de caubói, características inauguradas no início da década de 1980 por Chitãozinho e Xororó e desde então reproduzidas em outras duplas, que só guardam em comum com as antecessoras o canto em dueto. “A música caipira foi a última trincheira a ser vencida pela indústria cultural imperialista, que já exportara para cá vários gêneros musicais. Agora entornava o caldo de vez”, analisa Antonio Carlos Tonca Falseti, mestre em história pela Universidade de São Paulo (USP).
Na virada do século 20 para o 21, a pequena parcela do Brasil ainda não urbanizada estava dominada pelo agronegócio. A bordo de jatinhos e pickups, os pecuaristas não queriam mais saber de Tonico e Tinoco, a “Dupla Coração do Brasil” (descoberta também pelo Capitão Furtado), que venderia mais de 50 milhões de discos com suas violinhas e se recusava a permitir que a traquitana pesada das bandas de rock fosse incorporada às suas apresentações, como relata o livro Música Caipira – da Roça ao Rodeio, de Rosa Nepomuceno.
Em 1978, no velório de Alvarenga, um inconsolável Diésis contava que, pouco antes da morte do parceiro, haviam combinado refazer a dupla. Rolando Boldrin o trouxe de volta à cena em 1981, para apresentarem juntos o programa “Som Brasil”, na TV Globo, quando ainda a música brasileira de qualidade não havia sido confinada aos guetos das emissoras públicas. Reviveram, por algum tempo, os grandes sucessos, identificados na telinha pela legenda “criação imortal de Alvarenga e Ranchinho”.
Padrinho dos netos de Ranchinho, Boldrin gravou algumas das músicas da dupla, como Violeiro Triste e Chapéu de Paia. Com chapeuzinho de palha nas mãos, Ranchinho foi enterrado, em 1991, como autêntico caipira, “aquele que se conserva ligado à terra, à cultura original”, de acordo com a definição de Inezita Barroso, professora de folclore de universidades paulistas, além de cantora e apresentadora. Tanto ela quanto Boldrin mantêm-se fiéis às raízes, com a mesma certeza que tinha Guimarães Rosa: “De repente, por si, quando a gente não espera, o sertão vem”.