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Relíquias sobre rodas
Por: ALBERTO MAWAKDIYE
Prerrogativa até pouco tempo atrás de endinheirados e de pessoas excêntricas com espaço na garagem e gosto para reformar veículos carcomidos pelo tempo, colecionar carros antigos está se tornando, no Brasil, um hobby tão disseminado que é bem possível que alguém da sua rua já tenha entrado nessa onda ou está prestes a fazê-lo. São tantos os brasileiros que vêm aderindo ao chamado “antigomobilismo” – como é conhecida oficialmente a prática de colecionar modelos que há tempos deixaram de ser montados – que a própria Federação Brasileira de Veículos Antigos (FBVA), entidade fundada há 27 anos e sediada na cidade mineira de Juiz de Fora, já desistiu de contar o número de clubes que existem no Brasil e onde se aglutinam os aficionados pelo negócio. E a julgar pelos números exibidos pela FBVA, os interessados se multiplicam a cada dia.
“São 120 o número de clubes e museus, de todas as regiões do país, filiados à federação”, conta Henrique Nehrer Thielmann, presidente da FBVA. “Todavia, como não há a obrigatoriedade de se ligar a uma associação, não dá para saber com exatidão quantos clubes de fato operam em território brasileiro. Se incluirmos os que funcionam sem registro ou como simples reunião de amigos ou confrarias, devem somar várias centenas. Da mesma maneira não é possível declinar o número de colecionadores, que certamente se contam aos milhares, especialmente se colocarmos na mesma lista aqueles que não pertencem a nenhuma entidade”.
Thielmann não se arrisca a dar explicações sobre os motivos de os colecionadores de carros antigos estarem crescendo como um bolo carregado de fermento. Ele entende que se trata apenas de um fenômeno natural, decorrente não só da lendária paixão do brasileiro pelo automóvel, mas, também, do amadurecimento da indústria automotiva brasileira, que foi implantada no país somente no final da década de 1950. “Como o carro só é considerado antigo a partir da idade mínima de 30 anos, o momento do mercado explodir é agora”, diz Thielmann. “Hoje, a quantidade de marcas antigas é muito maior do que na década de 1980, por exemplo, estimulando, portanto, o surgimento de novos colecionadores”.
Naturalmente, com o incremento desse mercado, o perfil dos atuais colecionadores também se tornou mais diversificado e democrático. Eles já não se resumem aos poderosos, que podem manter na garagem clássicos como o Ford Bigode ou Hispano-Suiza, ou, ainda, cobiçadas relíquias tipo Alfa Romeo, Cadillac, Corvette e Mustang dos anos 1950 e 1960 (necessariamente importados). Hoje fazem parte desse grupo também muitos colecionadores de velhos Fuscas, Mavericks e Opalas, carros que ainda são vistos rodando nas periferias das grandes cidades, pilotados não exatamente por colecionadores – mas, na maior parte das vezes, por quem não tem dinheiro para comprar um carro novo.
“Na verdade, colecionar autos com muitos anos nas costas é algo que cabe no bolso de qualquer um”, diz Ricardo Calim Luna, diretor do Clube do Carro Antigo do Brasil, sediado em São Paulo, e um dos maiores do país. “Basta a pessoa conhecer os seus limites. É um hobby em que se pode gastar apenas o valor da compra de um veículo ou uma verdadeira fortuna, se o colecionador possuir muitos carros ou modelos raros que exigem um desembolso ‘gordo’ com os trabalhos de restauração e cuidados extras com a manutenção”.
O curioso é que muitos estão virando colecionadores quase que por acaso. Um exemplo é o do jovem engenheiro paulistano Pedro Serafim Gomes Neto, dono de um Fusca 1200 fabricado em 1965 que ele deixou igualzinho ao famoso “Herbie”, do filme Se Meu Fusca Falasse. Neto conta que o carro era de um vizinho alemão que viajava muito para a Europa, ficava parado quase o tempo todo. “Um dia resolvi comprá-lo. Estava tão bem preservado que não precisei restaurar praticamente nada. Apenas o fantasiei de Herbie para agradar a sobrinhada”, relata. Tempos depois, o engenheiro comprou um Escort XR3 conversível, ano 1991, veículo que somente daqui a sete anos será considerado de fato, “antigo” de acordo com as regras vigentes. Investimento? Não, necessariamente: “eu comprei porque acho o Escort muito bonito”, esclarece Neto.
Peça original
Na realidade, não é apenas a idade que vai dizer se um carro é antigo. Há outros elementos tão ou mais importantes, como a originalidade e a preservação: um veículo antigo deve ter, no mínimo, 80% de seus componentes originais, caso o proprietário queira dispor do Certificado de Originalidade. Fornecido por alguma entidade certificadora, o documento dá direito a requerer junto ao Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) a alteração das placas do auto, em que os caracteres são cinza e o fundo preto. No caso das placas dos veículos tradicionais, os caracteres são pretos e o fundo cinza. Seja como for, o fato é que os colecionadores ainda não se conscientizaram da importância da certificação. A FBVA, por exemplo, emitiu até hoje apenas 11.500 certificados em suas quase 3 décadas de atividade.
“O problema é que, dependendo do modelo, achar uma peça original é uma operação extremamente difícil”, diz o empresário Marcelo Paolillo, um especialíssimo colecionador de Alfa Romeo: ele faz parte da Confraria 2300, que reúne os exclusivos donos de veículos da marca modelo 2300 – veículo que foi montado no Brasil na década de 1970 e se constituiu na primeira versão de luxo da montadora desenvolvida para um mercado fora da Itália. Paolillo tem dois Alfa Rio – como o carro ficou conhecido fora do Brasil –, um modelo 1974 e outro de 1979.
De acordo com o colecionador, é comum neste meio o uso de “carros doadores” – isto é, modelos que suprem as peças que faltam nos veículos antigos em processo de restauração. Ele dá como exemplo o cilindro de freio da Kombi, que pode ser usado sem problemas no Alfa Rio, embora isso possa descaracterizá-lo. Como as oficinas especializadas em carros antigos ainda são raras no país – e, obviamente, não cobrem todas as marcas – o “boca a boca” é a melhor maneira de encontrar no mercado as peças originais procuradas. Outra boa alternativa é sair à procura dos componentes – ou obter notícias sobre a sua disponibilidade – nos eventos que reúnem veículos idosos no Brasil. “É um espaço privilegiado para a troca de informações e de peças, ou para a venda e a compra de carros”, explica Paolillo, que participa de todos os acontecimentos do gênero, inclusive do mais importante deles, o Encontro Paulista de Automóveis Antigos. Realizado desde 1996 e, que neste ano teve como sede a cidade de Campos do Jordão, a 173 quilômetros de São Paulo, é reverenciado como o maior encontro do gênero no Brasil, reunindo em cada edição mais de 700 carros antigos e um público superior a 400 mil pessoas vindas de todos os cantos do país.
Um dos últimos eventos de que Paolillo participou, e que vai ficar na história da Confraria 2300, foi a viagem de mais de 2.300 quilômetros pelos estados do Sudeste em comemoração aos 40 anos de lançamento do modelo. Nove “alfistas”, como se referem os colecionadores de carros da marca Alfa Romeo, encerraram a grande maratona num dos pátios do Shopping Eldorado, centro de compras de luxo na zona oeste da cidade de São Paulo, local onde, em abril deste ano, o Clube do Carro Antigo do Brasil promoveu um de seus tradicionais encontros reunindo 80 preciosidades do antigomobilismo.
Cadeia produtiva
Foi uma festa de encher os olhos. Havia ali desde uma pequena coleção de imponentes Camaros e Mustangs da década de 1960 até Buick, Packard e Citroën dos anos 1940, modelos na versão rabo de peixe, esportivos nacionais como Karmann-Ghia e Puma, além de vários utilitários de tempos passados. Neste quesito, aliás, nenhum carro chamou mais atenção do que o enorme e magnífico Chevrolet Amazona, um dos primeiros utilitários fabricados no Brasil (entre 1959 e 1963) e que se notabilizou pela variedade de versões e por atender principalmente as propriedades rurais e o transporte escolar.
“Comprei uma dessas peruas de um morador da zona norte da capital, que ainda a utilizava para ir ao sítio”, conta o empresário Jairo Herrera, afirmando que o utilitário que ele adquiriu foi usado originalmente para transportar estudantes no começo da década de 1960. Ao contrário da maioria dos colecionadores – que costuma deixar seus veículos antigos rigorosamente guardados – Herrera gosta de utilizá-la no dia a dia. Acabava de fazer uma viagem de 1.200 quilômetros pelo interior de São Paulo quando cedeu este depoimento a Problemas Brasileiros. “É um veículo bastante rústico, que aguenta qualquer tranco, sendo, ao mesmo tempo, incrivelmente confortável e espaçoso”. Ainda, segundo Herrera, seu utilitário Amazona está com a lataria original, mas boa parte das peças já foi trocada por equivalentes. “Peças originais, não há mais”, lamenta.
Algumas réplicas preciosas também foram levadas à exposição do Shopping Eldorado. O empresário Rui Pacheco Bastos exibiu na oportunidade uma cópia em fibra de vidro de um Alfa Romeo de 8 cilindros, de 1931, carro que marcou época em competições – por sinal o apelido do bólido era justamente “Alfa Romeo Monza”. A reprodução é uma das poucas centenas produzidas em São Paulo entre os anos 1970 e 1983 pela fábrica L’Automobile, e embora sejam absolutamente idênticas ao modelo original, usavam um singelo motor Volkswagen 1600.
“É claro que em termos de potência a réplica não chega perto do Alfa Romeo Monza original, que atingia com facilidade 200 Km/h e tinha um motor com um ronco delicioso”, explica Bastos. “Mas, o desenho, é uma maravilha de tão fiel”. O evento do Clube do Carro Antigo do Brasil também abriu espaços para as excentricidades, como um triciclo da japonesa Mazda fabricado em 1934, e que foi inteiramente restaurado pelo comerciante Amarildo Viola. “Rodei muito até encontrar as peças”, contou. “Faltavam vários elementos do motor, originalmente um Mitsubishi. Acabei fazendo a troca por um motor da Variant, da década de 1970”. Segundo ele, o carro anda bem, mas não se deixa dirigir facilmente por quem não está acostumado. “Os princípios mecânicos e de direção são totalmente diferentes”, explicou.
Praticamente, todos os envolvidos com o setor de carros antigos no Brasil são unânimes em afirmar que a atividade não chega a constituir ainda um mercado – como, por exemplo, nos Estados Unidos, a pátria do automóvel, e onde o negócio com os carros de idade avançada movimenta milhões de dólares por ano. Mas está caminhando, passo a passo, para um dia se tornar algo parecido com isso. E essa esperança se deve não apenas ao aumento quantitativo do número de colecionadores – e a grande seriedade da maioria deles –, que projeta dias gloriosos para o setor, mas, também ao fortalecimento de uma pequena “cadeia produtiva” em torno desse curioso hobby, representado por oficinas, lojas (em ambos os casos, raramente de forma exclusiva) e até intermediários, misto de vendedores e consultores que compram um carro antigo aqui para vender ali, em geral para os colecionadores de bolso mais fundo.
Estrutura invejável
Uma das mais conhecidas oficinas especializadas em restauração é a Clássicos Caslini, de Ribeirão Pires, na região do ABCD paulista. Fundada em 2008 por Marcelo Caslini, um dos diretores do Galaxie Clube do Brasil, a empresa nasceu como um espaço para que ele pudesse cuidar de sua bem fornida coleção pessoal de carros, mas depois, como sempre acontece, os serviços foram ampliados de modo a poder dar atendimento ao antigomobilista. A estrutura da casa é de dar inveja: em uma espaçosa área de 6 mil metros quadrados, as instalações incluem um galpão, um centro de restaurações, uma cabine de preparação e outra de pintura, uma sala de ferramentas, além de um showroom. A oficina é gerida por Paulo Mondoni, colecionador de autos antigos desde 2002 e figura carimbada do setor. Ele administra o trabalho de uma equipe altamente especializada que executa tarefas tidas como de excelência. “Respeito à história, competência e paciência: essas são as virtudes essenciais de quem pretende trabalhar com restauração”, resume Mondoni, cujo pessoal restaura, no momento, entre outras relíquias, um Ford ano 1929, um raríssimo Chrysler montado em 1956 e um Cadillac versão 1959.
Uma mão de obra voltada para o atendimento do setor começa também a ser formada. O Clube do Carro Antigo do Brasil está já há algum tempo promovendo um curso de restauração e preservação de automóveis antigos – o “Projeto Escola de Offício” – que dá direito inclusive a bolsas de estudo para jovens de baixa renda. “Um veículo antigo é muito mais do que um objeto de contemplação, é um canal que nos leva pelo túnel do tempo e faz com que revivamos acontecimentos familiares”, diz Ricardo Luna, diretor do clube e idealizador do curso. “Trabalhar com carro antigo, é mais do que saber sobre peças, partes e ferrugem. É lidar com os sentimentos, com a história de todos”.
Cláudio Petrycoski, um industrial do ramo de fogões estabelecido em Pato Branco, no Paraná, sabe do que Luna está falando. Como um dos maiores colecionadores de carros antigos do Brasil, ele é dono de mais de 200 veículos, muitos deles autênticas raridades, como o Ford T de 1917 e uma réplica de um Ford de 1896, que foi desenhado e desenvolvido pelo próprio Henry Ford.
Petrycoski também é proprietário de um Corvette Pace Car, 1978, de 165 cavalos, que fez parte de uma série especial de apenas 2.600 unidades produzidas e que ganharam as ruas em comemoração à 62ª edição das 500 Milhas de Indianápolis, a Indy 500, em 1962, uma das mais tradicionais provas automobilísticas internacionais. Outra atração é um Messerschmitt, de 1956 – montado com peças de um avião ME-110, bimotor empregado pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial –, e uma motocicleta soviética que participou da Guerra do Afeganistão.
“Colecionar carros antigos entra no sangue da gente”, diz Petrycoski, que iniciou a sua coleção, incrivelmente, há pouco menos de dois anos. Na verdade, esse não é o único hobby do empresário, que tem em seu poder mais de 100 mil canetas representando empresas, órgãos e entidades do Brasil e de mais de uma dezena de países, entre eles Alemanha, Estados Unidos, Israel e Portugal.
Museus em apuros
Por ora, Petrycoski guarda seus carros em barracões, pois sua ideia é inaugurar um museu em Pato Branco onde eles ficariam em exposição. A preocupação com a preservação de sua coleção de autos é tamanha que ele se viu na contingência de montar uma oficina restauradora só para cuidar dessas relíquias. Raramente passeia com eles porque, segundo diz, o risco de um abalroamento, por exemplo, é muito grande. Mas gosta de exibi-los ao público. No ano passado, Petrycoski organizou uma grande feira na cidade com a finalidade de apresentar seus carros aos moradores.
O empresário sabe de cor a história de cada modelo de sua coleção – um de seus preferidos é um Cadillac Imperial de 1941 – que ele não considera investimento, embora saiba que quanto mais raro, preservado e com grande apelo histórico, político e cultural, maior será a valorização do carro no aspecto financeiro. Diz que a coleção não tem critérios de estilo, montadora ou geração: o veículo só precisa ser atraente para ele.
As aquisições foram feitas com particulares e com empresas de Curitiba e São Paulo, em especial, e outros pontos do país. Hoje, já famoso entre os colecionadores, passou a ser procurado por interessados em carros antigos. “Se um colecionador me oferecer 50% a mais do que paguei eu vendo, não precisa ser o dobro”, destaca Petrycoski. “Aí, compro outros modelos ainda mais raros”.
O apreciador de carros antigos não precisa esperar a realização de algum evento para admirar as máquinas que fizeram sucesso no passado, embora a tarefa não seja das mais fáceis. Existem poucos museus no Brasil dedicados ao segmento, todos eles vivendo praticamente sem apoio oficial e muitos deles ameaçados de fechamento. Em São Paulo, no bairro da Mooca, o Museu de Carros Antigos contava com um acervo de mais de 60 modelos. E o Museu do Automóvel de São Paulo, na zona sul, fundado por Romeu Siciliano, falecido em 2008, e que mantinha em exposição desde carros antigos até motocicletas, lambretas, triciclos e caminhões – oferecendo uma boa amostragem da evolução do automóvel e de outros veículos automotores – estão temporariamente fechados.
No sul do país, o principal destaque é o Hollywood Dream Cars, na estrada que liga as estâncias turísticas gaúchas de Gramado e Canela, e que tem em seu acervo alguns carrões que figuraram em filmes hollywoodianos. Em Santa Catarina, no Km 91,5 da BR-101, na altura de Barra Velha, o Auto Museu Celeiro expõe diversos modelos antigos, alguns deles bastante raros e pouco vistos no Brasil. Na contramão tem o exemplo da outrora preciosa coleção de carros antigos do Museu de Tecnologia da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), em Canoas, no Rio Grande do Sul, que acabou retalhada e levada a leilão no final do ano passado, devido a uma enorme dívida contraída em anos passados.
Com um acervo de mais de 270 veículos clássicos construídos a partir de 1904, instalado em um belíssimo prédio de aço e vidro no campus de Canoas daquela escola, o Museu da Ulbra chegou a ser considerado por especialistas um dos dez melhores do gênero no mundo. As joias sobre rodas que um dia pertenceram ao finado museu estão hoje guardadas em garagens particulares e desfrutadas por privilegiados que puderam pagar, por exemplo, R$ 250 mil por um vistoso Rolls-Royce Limousine, ano 1956.
Já o Museu Nacional do Automóvel de Brasília, um dos mais importantes do país, está fechado por falta de acordo com o proprietário do prédio. E o Museu Roberto Lee, em Caçapava, no interior de São Paulo – conhecido pela beleza de seu acervo – padece com o estado lamentável de conservação dos autos antigos à espera de restauração.