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O que os sonhos dizem?
Por: REGINA HELENA RAMOS
Só aparecem na porta de Ascânio Jatobá – ou batem nas paredes virtuais de seu site – gente que deseja se conhecer melhor. Falando de sonhos? Isso mesmo. Ascânio Jatobá de Almeida Soares é terapeuta e filósofo pela Universidade de São Paulo (USP) que acredita na máxima de Carl Gustav Jung, psiquiatra suíço, fundador da psicologia analítica: “só aquilo que somos tem o poder de nos curar”. Quem o procura, se ainda não acredita, pelo menos desconfia que Jung está certo.
Por esse motivo um grupo de pessoas se reúne semanalmente num sobradinho do velho bairro do Bexiga para aprender com o terapeuta junguiano, a contar seus sonhos, discuti-los e chegar a resposta de questões como: Por que sonhei com um anjo? Por que sonhei com um cavalo? O que meu inconsciente está querendo dizer quando me faz sonhar com minha antiga casa? “Os sonhos são mensagens do inconsciente”, diz Jatobá, repetindo Jung e Sigmund Freud.
Sim, tudo começou com Freud, ao publicar, em 1900, A Interpretação dos Sonhos. “Freud foi o pioneiro moderno no estudo dos sonhos”, afirma o filósofo e terapeuta. “Sua concepção do inconsciente contribuiu para tornar objeto de estudo da ciência a ideia da existência de outro mundo, até então discutido apenas pelas religiões, que apresentavam seus deuses aos fiéis. O inconsciente freudiano é composto do material reprimido em nossas vidas, é o quarto de despejo”, explica Jatobá. Ele esclarece que para Freud nossos sonhos são desejos de realizar o que foi reprimido na vida acordada. “Sonhamos para não acordar. A visão de Freud é a de um pesquisador materialista, ateu, que concebe o sonho como uma válvula de escape de problemas que ocorreram na infância do sonhador”. Em outras palavras, ele diz, os sonhos apontam para o passado e a pergunta que devemos fazer é “por que tive esse sonho?”
Onde entra Jung nessa história? Jung teve a influência de um pai e de nove tios, pastores protestantes, tendo concebido um inconsciente – seguindo a tradição judaico-cristã – de que os sonhos seriam enviados por Deus. Nesse sentido o Ego é apenas o receptor de mensagens do sonho, que tem origem naquilo que Jung chamou de Si Mesmo, termo equivalente a Deus nas religiões. Para Jung o sonho tem como objetivo preparar o sonhador para a vida e então a pergunta que devemos fazer é: “para que tive esse sonho?”
Muitas pessoas acham que não sonham. Na verdade, apenas não se lembram dos sonhos. Ascânio Jatobá ressalta que o ser humano sonha em média noventa minutos a cada oito horas de sono e ocorrem quatro sonhos a cada noite. Mesmo os indivíduos treinados para lembrar, às vezes, ficam muito tempo sem se recordar de seus sonhos, mas eles acontecem.
Inconsciente coletivo
A natureza, o inconsciente ou Deus, seja qual for o nome que dermos ao além da consciência, comunica-se com os seres humanos conscientes por meio de símbolos. Os sonhos são um exemplo de símbolos de cuja composição não participamos, e deles só tomamos consciência quando justamente sonhamos. A criação desses símbolos é uma função do inconsciente, que também participa de nossa formação, enquanto feto, no útero de nossa mãe. Uma inteligência extra-humana controla cada detalhe do nosso crescimento e isso vale tanto para o corpo quanto para a alma, aquilo que anima o corpo. Os sonhos são as informações diárias que a natureza (ou o nome que dermos) nos envia para lidarmos com os problemas do cotidiano. Eles são individuais, do nosso ponto de vista, mas podem também ser coletivos, quando tratam de situações que milhões ou bilhões de pessoas viveram antes de nós. É o que chamamos de “inconsciente coletivo”.
Em outras palavras, os sonhos nos ajudam a desvendar os mistérios da vida. Pesquisas recentes mostram que eles são indispensáveis para o funcionamento da consciência, mesmo que não consigamos lembrar deles. Os que são passíveis de lembrança abrem uma porta que ampliam nossa consciência.
A história da humanidade está cheia de crenças populares a respeito dos sonhos. Sonhar com morte quer dizer vida. Sonhar com dentes é sinal de morte próxima. Como os terapeutas junguianos encaram esse aspecto? Sonhar com morte ou que os dentes estão caindo nem sempre se reporta a uma vivência real do fato, mas indica uma situação vivida pelo sonhador que se assemelha à morte como é a perda dos dentes. Cabe ao sonhador o trabalho de identificar, em sua vida, o que equivale ao símbolo de morte. Este símbolo ou arquétipo é muito amplo, mas tem a ver com modificação profunda de valores. Modificação de status. Pode ser sim, dependendo da análise do sonhador, modificação da vida para a morte. Para um dentista sonhar com dentes tem um significado completamente diferente daquele de uma pessoa que não tem esse objeto relacionado a sua vivência real. Agora veja: a arcada dentária costuma durar além da morte. Os valores que adquirimos de amor pelos pais também duram muito. Portanto há uma certa lógica em associar a perda de dentes com a morte, pois quase sempre vivenciar orfandade é mudança significativa na vida.
Curso de sonhos
E os sonhos premonitórios, existem? “É complicado explicar isso. O Ego (que chamamos Eu) é o centro da consciência, o período de vida em que estamos acordados e situados no tempo e no espaço. O inconsciente, por definição, é o oposto da consciência e, portanto, está fora do tempo e do espaço. O sonho vem dessa região, onde o tempo não existe. É aí que reside a dificuldade de entendimento, pois tudo está sujeito ao tempo. Um exemplo que pode ajudar: quem viaja de helicóptero de São Paulo ao Rio de Janeiro pode ver um acidente no Km 30, de certa rodovia, enquanto pessoas em um automóvel no Km 20, da mesma estrada terão que percorrer mais dez quilômetros para observar o ocorrido. O piloto da aeronave pode, por rádio, avisar o motorista sobre o evento adiante. O sonho premonitório é semelhante a esse exemplo. A natureza – ou o inconsciente – como uma mãe, dá a boa ou má notícia ao sonhador. O sonho é uma preparação para a vida”.
Por isso e por outras é que existem cursos de sonhos e o número de interessados é crescente. “Acredito que se ocupar com os próprios sonhos é o melhor caminho para o autoconhecimento”, diz o terapeuta Jatobá. “Por isso, depois de vir analisando meus próprios sonhos e os de pacientes, há vinte anos, reúno pessoas que se interessem pelos sonhos como ferramenta de diálogo com o mistério da vida. A cada semestre divulgo no site do curso o início de uma turma. E as pessoas aparecem”.
Os alunos pertencem às mais diversas áreas e profissões, tais como, artistas plásticos, arquitetos, médicos, músicos, professores e psicanalistas com idade média entre 40 e 50 anos. Mas há pessoas mais velhas. Em sua maioria apresentam comportamento introvertido. O extrovertido – pelo menos o extrovertido clássico – tem dificuldades para entender e para se comunicar com os conteúdos do mundo interior. A primeira motivação dos interessados é a vontade pelo autoconhecimento. Quase sempre já leram Jung ou alguma coisa sobre ele. “Geralmente, são pessoas curiosas. Alguns alunos fazem o curso básico, de conhecimento junguiano e, invariavelmente, acabam frequentando as reuniões por um longo tempo”. Jatobá relata que no início do curso ele vai logo avisando que não quer mudar crenças. Para falar de Jung e da finalidade dos sonhos – fazer com que o homem busque em si mesmo as respostas para seus principais problemas – não é preciso mudar crenças. Aliás, Galileu Galilei já dizia que “a verdade é a filha do tempo”. Relembro isso para não acreditarem que Jung pode ter a última palavra. “Tudo se modifica neste mundo”.
Os alunos dos cursos de Ascânio Jatobá têm, antes de iniciar a interpretação dos seus sonhos, uma parte teórica em que aprendem sobre Jung, seus princípios, suas técnicas. Só depois dessa introdução passam a anotar e a discutir seus sonhos. Também ajudam na interpretação dos sonhos dos outros participantes. As aulas semanais, com duração de duas horas, tornam-se uma espécie de terapia de grupo. Quem tem mais pressa de autoconhecimento vai direto para o consultório do terapeuta. Afinal, é caso de perguntar, a vida fica mais fácil com a terapia dos sonhos? “Não diria mais fácil, fica tudo mais claro”, responde uma das alunas. “Se nos conhecemos melhor compreendemos melhor tudo o que nos acontece”.