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Silenciosa. É assim que ela avança.

Foto: Reprodução
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Por: MILU LEITE

As doenças que conspiram em silêncio são um grande desafio para a medicina. Existem, são bastante conhecidas, mas, por diversos fatores e porque são pouco diagnosticadas, tem a sua propagação facilitada. Descoberta 25 anos atrás, a hepatite C poderia encabeçar a lista dessas moléstias, já que a sua popularidade não contribui em nada para combatê-la. E a razão principal para o quadro tão alarmante em que nos encontramos é uma só: a maioria das pessoas que já ouviu falar em hepatite C não sabe que pode estar contaminada. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), há 150 milhões de infectados de modo crônico e cerca de 500 mil morrem anualmente em decorrência da doença. Entre os infectados, 90% não sabem disso. No Brasil, as estatísticas não são mais animadoras. Estima-se que 1,5% dos brasileiros esteja infectado com HCV, sigla em inglês para o vírus causador da hepatite C.

Atualmente, ele preocupa muito os médicos, talvez até mais do que o vírus da aids, uma vez que não recebe a mesma atenção, ou seja, não são feitas constantemente amplas campanhas de esclarecimento na mídia e a disponibilização dos medicamentos pela rede pública não goza dos benefícios oferecidos aos portadores de HIV (sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana). Segundo relatório publicado pela The Economist Intelligence Unit (EIU, uma unidade de negócios independente dentro do grupo britânico The Economist e que fornece, entre outras informações, aquelas relativas ao índice de qualidade de vida das cidades mais visíveis), a doença “é uma das principais causas de cirrose e câncer de fígado primário, e o HCV é o maior responsável por transplantes desta glândula no mundo”.

Transmitida pelo sangue, a hepatite C vive agora o consequente apogeu de uma contaminação ocorrida principalmente nas décadas de 1970 e 1980, época em que era ainda desconhecida, mas nem por isso menos contagiosa. Milhares de pessoas que se descobrem infectadas foram acometidas pela doença em transfusões feitas naqueles anos, período em que não se testava o sangue para o vírus. A consequência é que quem recebeu sangue antes de 1993 tem 20% de chance de ter contraído hepatite C. Para piorar o panorama, as vacinações que eram feitas com pistolas de agulha também ajudaram a aumentar o índice de contaminação.

Um estudo publicado em 2011 por alunos de pós-graduação em Ciências da Saúde da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), informa que o Egito apresenta o maior índice de prevalência de hepatite C, com 17% a 26% da população infectada pelo HCV, número que retrata a gravidade da situação mundo afora.

Hoje em dia, as formas de contágio se restringem ao uso de seringas e outros objetos perfurantes ou cortantes não higienizados em autoclave (aparelho que utiliza o calor úmido para a esterilização) – incluídos aí os alicates de unha, os aparelhos de barbear e as ferramentas de odontologia, de tatuagem e de piercing – e ao contato sexual com traços de sangue. Mas é bom lembrar que a hepatite C não é considerada pela OMS, nem pela Sociedade Brasileira de Hepatologia (SBH), e muito menos pelo Ministério da Saúde, como doença sexualmente transmissível, pois a transmissão sexual é muito rara. É importante chamar a atenção também para o aumento da incidência entre as pessoas que têm tatuagem. Segundo artigo publicado na revista internacional “Hepatology”, a prevalência do vírus chega a ser quatro vezes maior entre aqueles que declaram ter algum tipo de tatuagem no corpo. Chegou-se a essa conclusão depois de perguntas endereçadas a 2 mil pessoas em clínicas e hospitais da região de Nova York, entre os anos 2004 e 2006.

Baixa taxa de cura

O grande problema, porém, é que os contaminados não buscam tratamento justamente por não suspeitar que convivem com o vírus, e quanto mais tempo levam para se tratar menor é a possibilidade de cura. Para ter uma ideia do périplo que se tem à frente basta citar que em 2012, de aproximadamente 2 milhões de infectados apenas cerca de 13 mil receberam tratamento pelo Sistema Único de Saúde (SUS), e, na última década, segundo dados publicados em 2012 pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais da Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, “foram contabilizados mais de 80 mil novos casos de hepatite C no país”. Outro agravante é a baixa taxa de cura. De acordo com as estatísticas, somente 20% dos casos tratados não se tornam crônicos, índice que poderia ser maior caso não houvesse demora na procura por tratamento. O doente frequentemente chega aos consultórios com o problema em estado bastante avançado, e em que os sinais clínicos são mais evidentes. A maior prevalência da doença se dá na região norte do país, seguida pelas regiões centro-oeste e sudeste, sul e nordeste. De 70% a 80% das infecções tornam-se crônicas, e, em média, 20% podem evoluir para cirrose e de 1% a 5% para câncer do fígado.

Ciente da gravidade da situação, a OMS apresentou no Congresso Internacional do Fígado, em Londres, realizado em abril deste ano, as diretrizes para o diagnóstico, cuidados e tratamento da hepatite C, indicando medidas que deveriam ser tomadas para enfrentar a doença. “Entre as recomendações gerais, a mais importante é a realização de campanhas amplas de diagnóstico. Aqui no Brasil mais de 90% dos milhões de brasileiros com hepatites B e C estão evoluindo lenta e silenciosamente na destruição do fígado sem saber”, afirma Carlos Varaldo, presidente do Grupo Otimismo de Apoio ao Portador de Hepatite, organização não governamental que desde a sua fundação, em 1999, contribui no combate à doença, priorizando a difusão de informações e a cobrança de resultados junto aos gestores de saúde.

“A informação é um excelente medicamento. A nossa página na internet (www.hepato.com) é considerada referência, reconhecida por governos, médicos e sociedades médicas”, diz. Além disso, “já abrimos 34 procedimentos no Ministério Público, e vencemos 31”, destaca Varaldo. Além do Grupo Otimismo, a ONG C Tem que Saber C Tem que Curar – Apoio aos Portadores de Hepatite C também marca presença na luta contra a doença e promoveu uma grande campanha no dia 19 de maio deste ano, data Mundial de Combate às Hepatites, em parceria com o Tribunal de Justiça de São Paulo, a fim de difundir as ações e os debates acerca da doença.

A necessidade de requerimentos junto ao Ministério Público nos moldes propostos pelo Grupo Otimismo se explica. E por razões nada compreensíveis. É que apesar de grave e de enfrentar toda uma conjuntura favorável para sua propagação, a hepatite C nem sempre é vista como prioridade. O acesso à medicação pode ser feito via SUS, porém muitas vezes é preciso entrar com um processo para liberar a entrega do remédio mais eficaz, o Interferon Peguilado, por causa de seu alto custo.

Para facilitar a vida dos doentes que necessitam da droga, o site da ONG traz modelos de ações judiciais para requerer o composto químico junto à rede pública e aos planos de saúde. “Abrimos há pouco tempo um procedimento investigatório em Brasília para determinar qual setor e pessoa física dentro do Ministério da Saúde é responsável por discriminar os infectados com hepatites na entrega dos medicamentos. Para doentes com aids a entrega é imediata, já para os infectados com hepatites a entrega é burocrática, podendo levar entre 3 e 12 meses conforme o estado. Consideramos isso discriminação e queremos que o Ministério Público Federal determine quem é o culpado para que seja processado criminalmente”, diz Varaldo.

Casos vão aumentar

É, de fato, necessário que o governo reavalie as regras de fornecimento das medicações, tendo em conta o que já foi esclarecido por dezenas de especialistas e, por isto, não custa repetir: quanto mais tarde o tratamento for iniciado, menores as chances de cura e maior a possibilidade da doença se tornar crônica, onerando ainda mais o sistema previdenciário e, obviamente, com prejuízos irreparáveis à saúde do doente.

Recentemente, um grupo de pesquisadores estrangeiros reuniu informações de cerca de 150 artigos científicos sobre a hepatite C, e a partir de dados fornecidos pelo sistema de saúde dos países Brasil, Argentina, Porto Rico e México, foram capazes de fazer uma projeção sobre o aumento da doença nos próximos anos. De acordo com ela, o número total de casos vai aumentar, mas a proporção se manterá estável no Brasil: 1,5% até 2021.

Já que o fator mais importante é descobrir o quanto antes se o organismo está infectado, é fundamental estar atento aos sintomas: cansaço, falta de energia, falta de apetite, diminuição de rendimento no trabalho (sinais precoces); alterações cutâneas na região abdominal e nos membros inferiores (icterícia, aranhas vasculares, eritema palmar e acumulação de fluidos), hemorragia digestiva, confusão mental, alterações de peso, diminuição de densidade óssea e prurido (sinais tardios). O passo seguinte é se submeter aos exames específicos para averiguação do grau de comprometimento do fígado: teste EIA (para detectar anticorpos de hepatite C); testes RNA (para determinar a carga viral); e teste de genótipo da hepatite C. Existem seis genótipos, e a maioria dos brasileiros está infectada com o genótipo 1, que é o mais difícil de tratar.

“O teste do anticorpo detecta a presença de proteínas produzidas pelo sistema imunitário para lutar contra o vírus. Contudo, a produção destes anticorpos chega a demorar de 120 a 180 dias, a partir da contaminação do organismo, e por isso o teste pode não mostrar uma reação positiva nos primeiros meses após a infecção”, alerta Perla Oliveira Schulz, hepatologista do Hospital Santa Isabel de São Paulo. Assim, se há suspeita de infecção aguda por HCV e o primeiro teste sorológico resulta não reagente, recomenda-se repetição do exame no intervalo de 12 semanas.

No Brasil, o tratamento em grande parte é feito com Interferon, em associação com Ribavirina e Telaprevir ou Boceprevir, tendo chance de cura de até 70%, dependendo do genótipo, do grau de acometimento hepático e da resposta a tratamentos prévios. A maioria dos pacientes recebe injeções semanais de Interferon Alfa Peguilado e comprimidos de Ribavirina duas vezes por dia e o tratamento pode se estender pelo período de 24 a 48 semanas. Os efeitos colaterais são vários e bastante desconfortáveis, dores de cabeça, muscular e abdominal, perda de apetite, vômitos, diminuição da imunidade e infarto do miocárdio (pouco frequentes).

Há uma boa notícia, entretanto: novos medicamentos estão sendo analisados. “Alguns já estão aprovados para uso nos Estados Unidos e na Europa a partir deste ano, associados ou não ao Interferon, tais como o Sofosbuvir e o Daclatasvir”, informa Perla. De acordo com a médica, as novas drogas têm como vantagens a redução do tempo do tratamento – entre 8 e 16 semanas – e dos potenciais efeitos colaterais, além do aumento da chance de cura para cerca de 90%. “O transplante hepático deve ser indicado em caso de diagnóstico de cirrose crônica, quando houver perda importante da função do fígado, e em alguns pacientes com diagnóstico de carcinoma hepatocelular (CHC)”, salienta. Segundo a última atualização disponível no portal de transplantes do Ministério da Saúde, havia em maio deste ano 1.138 pacientes à espera de um doador da glândula no Brasil. Acredita-se que até a metade de 2015, os novos remédios estejam disponíveis no mercado. No Brasil, o processo de regulamentação pode levar até dois anos. Conhecidos como antivirais de ação direta, as drogas aprovadas para americanos e europeus alcançaram alta porcentagem de cura, com mais de 80% nos ensaios clínicos. Apesar de eficazes, os medicamentos ainda são pouco acessíveis, pois custam muito caro. Um tratamento de 12 semanas com o Sofosbuvir, por exemplo, pode custar mais de US$ 80 mil nos Estados Unidos (cerca de R$ 160 mil reais).

Vacina a caminho

Como ainda não há vacina para proteção contra o vírus da hepatite C, a melhor maneira de prevenir a doença é um bom controle dos bancos de sangue e sêmen e das clínicas de hemodiálise; campanhas que ofereçam testes de rastreamento da doença para grupos vulneráveis; tratamento adequado dos pacientes portadores da doença; educação e orientação para a população.

A inexistência de vacina, contudo, pode estar com os dias contados. O grupo do pesquisador David Klatzmann, da Pierre and Marie Curie University, na França, descobriu uma maneira de produzir uma vacina recombinante. Segundo artigo publicado na revista “Science Translational Medicine”, os pesquisadores inseriram cópias de genes do vírus da hepatite C no vírus do sarampo e obtiveram êxito em testes feitos em camundongos e macacos. O organismo das duas espécies foi capaz de produzir anticorpos contra uma variedade ampla de vírus da doença.

Enquanto a vacina não vem, o que se tem aqui no Brasil é a aprovação de novas medidas para o Boceprevir e o Telaprevir. Em outubro de 2013, o governo federal publicou uma atualização do Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Hepatite Viral C e Coinfecções – Genótipo 1 do HCV e Fibrose Avançada, que é o mais comum e responsável por aproximadamente 70% dos casos. De acordo com notícias divulgadas nos meios de comunicação, as drogas somente têm ação sobre o vírus do tipo 1 (o mais difícil de responder a tratamentos) e vêm sendo utilizadas no país desde o final de 2012, mas apenas no início deste ano é que passaram a ser fornecidas aos ambulatórios, atendendo um número maior de pacientes. Inicialmente, seguindo o protocolo, estão se tratando apenas os doentes com fibrose mais avançada. Pacientes com doença em fase inicial ainda não foram contemplados nesse tratado. A iniciativa é motivo de comemoração, já que o uso daquelas drogas faz saltar de 40% para 70% o índice de sucesso nos testes clínicos, comprovando matéria publicada pela revista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em setembro de 2011.

Outra excelente notícia chega por outras vias. Um estudo publicado na revista americana “Cell” relata que a vitamina D em sua forma sintética é capaz de fornecer uma nova terapia para fibrose hepática. Pesquisadores do Instituto Salk para Estudos Biológicos, dos Estados Unidos, contam ter descoberto que a vitamina D analógica, calcipotriol (ou calcipotrieno é um derivado sintético da vitamina D usado no tratamento da psoríase – doença inflamatória crônica da pele), inibe a resposta fibrótica testada em células do fígado de rato. De acordo com eles, ao examinarem células hepáticas “estreladas”, cuja função em lesões de fígado é preponderante, notou-se que a falta de vitamina D acarreta um estresse crônico, com consequente aumento da fibrose, levando à perda das funções da glândula e a um aumento no risco de câncer.

Ainda há necessidade de mais ensaios clínicos em pessoas para que os pesquisadores comemorem efetivamente a descoberta. De todo modo, é reconfortante saber que um tratamento simples poderá trazer benefícios a milhões de afetados em todo o mundo.