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Motivos e apontamentos sobre o Cidade Ocupada
O Projeto Cidade Ocupada, do Sesc Campinas, propõe vivenciar a cidade a partir de diferentes perspectivas e posições, lançando novos olhares sobre a forma como ocupamos e somos ocupados pelos espaços urbanos. Neste artigo, propomos algumas possibilidades de refletir sobre o tema
As atividades do projeto Cidade Ocupada fazem um convite a ocuparmo-nos da cidade e intensificarmos a nossa experiência urbana, a partir de provocações estéticas e ações artísticas e experimentais. Uma das questões que se desdobra é: “Para quê?”, ou, mais detalhadamente:,“No que a proposta feita pode mudar o cotidiano de quem aderir a ela?”.
As respostas a essas e outras questões da contemporaneidade urbana podem ser construídas por cada um que topar aderir à proposta. No entanto, há alguns caminhos sugeridos para uma reflexão sobre as possibilidades e caminhos para chegarmos a elas.
Mesmo que as tendências contemporâneas superficialmente nos apontem para uma vida cada vez mais independente e solitária, o cotidiano na cidade insiste em ser constituído de negociações coletivas, acordos tácitos (ou não) e imposições; em consistir basicamente nas relações entre pessoas que habitam a cidade. Nesse sentido, podemos parafrasear o tema da 27ª Bienal de São Paulo, cuja equipe de curadoria, inspirada em pensamentos do filósofo Roland Barthes e do artista Helio Oiticica, se propôs a discutir: o “como viver juntos”, através de trabalhos de arte contemporânea.
Alguns exemplos práticos dessa negociação que vivenciamos diariamente: nas calçadas do centro, negociamos em qual lado podemos andar, desviando das pessoas que vêm de outra direção ou em outras velocidades; assim também funciona se estivermos dirigindo um carro em via pública. Filas, senhas, códigos, semáforos, buzinas, sinalização, olhares, permissões e proibições em uma sucessão de relações... Compra e venda a todo momento.
O “direito à cidade”
A discussão conceitual sobre o termo “direito à cidade” tem muito a nos dizer sobre as possibilidades e sobre os diversos aspectos dessa experiência urbana, na qual estamos voluntária e involuntariamente inseridos.
Em 1969, o filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre lançou o livro Le droit à la ville, com ensaios voltados ao estudo sobre a lógica de funcionamento das cidades, à luz do contexto sócio-político e cultural do ano de 1968, reconhecido como um ano importante na história, pelas manifestações estudantis e de trabalhadores em diversos países. A partir daí, o conceito referente ao termo “direito à cidade” se difundiu mundialmente.
Dos anos 1960 para cá, o termo pode ser compreendido a partir de duas perspectivas que ora se confrontam, ora se complementam: a primeira entende “direito à cidade” como um direito coletivo ao acesso a todas as potencialidades supostamente oferecidas pela coletividade nos espaços urbanos, como moradia segura, saneamento básico, mobilidade urbana, acesso a serviços públicos, à cultura e ao lazer, fruição dos espaços e equipamentos públicos e, primordialmente, o direito de participação política nos processos de gestão e decisão sobre o futuro da cidade.
Com os atuais indícios de esgotamento de alguns aspectos do modelo de cidade construído no século XX, como os engarrafamentos e a insuficiência de recursos naturais e as transformações decorrentes das tecnologias de produção e comunicação, o entendimento de cidade e urbanidade passa a ser expandido e/ou questionado.
Entra aqui a segunda perspectiva, que segue e procura atualizar/questionar a corrente de pensamento de Lefebvre, considerando o “direito à cidade” um objetivo utópico a ser constantemente buscado individual e coletivamente no processo de transformação e governança das cidades, vinculando a superação dos problemas urbanos a uma mudança no sistema social em que as relações sociais e econômicas historicamente se baseiam. Nessa perspectiva, o “direito à cidade” não necessariamente se relaciona ao direito a uma vida melhor e mais digna na cidade, porque considera as injustiças e a desigualdade, as claras insuficiências que as negociações coletivas do modelo de cidade atual não dão conta de resolver, mas acaba por aprofundar essa discussão.
Experimentando a cidade em outros planos: o flaneur e as derivas
No final do século XIX e início do século XX, observando e relatando a experiência de vivenciar a evolução do modelo de cidade que conhecemos hoje, o poeta e pensador Charles Baudelaire lançou foco sobre a figura do flaneur. Apesar do termo ser também usado com a conotação de “vagabundo, vadio, preguiçoso”, sua etimologia remete ao ato de caminhar ou passear, permitindo que Baudelaire desenvolvesse essa figura como “uma pessoa que anda pela cidade a fim de experimentá-la/experiência-la”. Décadas mais tarde, Walter Benjamin, teórico estudioso da obra de Baudelaire, classificou o flaneur como um “arquétipo emblemático da experiência urbana e moderna”, um “artista-poeta que explora a cidade”, figura referência para compreender os fenômenos urbanos da primeira metade do século XX. A prática do flaneur, associada por Benjamin à valorização do individual perante à massificação das “multidões” da Paris do início do século XX, se associa ao que até hoje se entende pela prática da deriva.
Derivar é disponibilizar-se, inclusive psiquicamente, a ser levado pelos estímulos do meio urbano, deixando que ele guie seus caminhos, e aceitar o sujeito em condição de transitoriedade e efemeridade, diante da cidade percebida como algo único, integral, como um organismo total. O sujeito que deriva estabelece uma relação com a cidade desprovida dos códigos e regras utilitários, entrega-se à falta de rumo, como quem se perde enquanto anda em uma cidade que visita pela primeira vez, estabelece relações "corpo-tempo-espaço" alternativas. Nesse sentido, derivar também é uma maneira de deixar a cidade nos ocupar ou ocupar-se da cidade.
Do prosaico à deriva e poesia: possibilidades de ocupar-se da cidade
De 4 a 16 de novembro de 2014, o projeto Cidade Ocupada possibilita uma brecha no cotidiano único e saturado, com propostas e trabalhos de arte contemporânea, no intuito de enriquecermos nossas experiências da cidade. Nós somos a nossa cidade e ela, por sua vez, é o espaço da nossa manifestação. Ampliar o leque de possibilidade de experiências urbanas a partir da deriva entre o prosaico e o poético, entre a consciência política e o lirismo que conjunto de atividades do Cidade Ocupada propõe. Vivenciar a cidade a partir de diferentes perspectivas e posições, lançando novos olhares, percebendo muitas possibilidades de ocupar-se dela. Respirar o urbano, o que ele é e o que ele poderia ser.