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As crianças nascidas na última década começam, desde cedo, a acessar e manipular com desenvoltura os recursos tecnológicos. Desafiadora para pais e profissionais da educação, a questão divide opiniões: quais são os possíveis benefícios e prejuízos dessa exposição precoce aos meios digitais? Analisam o assunto a pedagoga Maria Fernanda Reis Balugani e a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Leni Vieira Dornelles.


Maturidade e responsabilidade
por Maria Fernanda Reis Balugani


Ciberinfância é um conceito relativamente novo que abrange uma geração de crianças inseridas em um ambiente no qual são expostas a diversas tecnologias que lhes possibilitam relacionar-se com o mundo por meio de múltiplas linguagens. Neste artigo, gostaria de compartilhar com os leitores um pouco das minhas percepções e reflexões como mãe de crianças de sete e nove anos e professora de Educação Infantil e Fundamental I há 23 anos.
Este assunto tem exigido, daqueles que atuam direta ou indiretamente com crianças, constantes reflexões e mudanças de atitudes. Acredito que alguns fatores são responsáveis por mobilizar ainda mais os adultos, tais como a velocidade com que as mudanças ocorrem, a alteração de comportamento que geram, o sentimento de impotência pelo desconhecimento tecnológico suficiente para participar de algumas brincadeiras.
Embora os desafios que se apresentam sejam novos e pouco conhecidos por nós, creio que a forma de lidar com eles deva pautar-se pelos mesmos princípios com que pais bem-sucedidos na educação de seus filhos tiveram: maturidade e responsabilidade.
É possível encontrar algumas crianças com habilidades técnicas superiores às de seus pais, porém continuam sendo atributos dos adultos: controlar o tempo durante o qual as crianças usam os aparelhos eletrônicos; avaliar o conteúdo dos vídeos, jogos, imagens e textos com que as crianças estão entrando em contato; estabelecer regras quanto aos locais em que podem utilizá-los; conversar, usando uma linguagem adequada para a faixa etária, sobre temas que envolvem o mundo digital, como os malefícios causados pelo excesso de exposição ou possíveis riscos que o acesso à internet oferece; promover situações em que haja a presença da tecnologia, mas deixando claro que o foco está nas relações humanas (uma opção seria um grupo de amigos escolher um filme disponível na internet para um “cinema com pipoca” ou até reunir-se para produzir um curta-metragem).
Para auferir sucesso na tarefa de educar, é necessário lembrarmos que as crianças também aprendem por imitação e, por isso, precisam encontrar em seus responsáveis bons modelos. Ações pequenas, como um pai deixar de ler as mensagens que recebe durante as refeições em família, podem configurar exemplos pelos quais elas percebem a necessidade de controle sobre o uso dos aparelhos e que relacionar-se com os familiares é sua prioridade naquele momento.
Interagir com as crianças, ainda que na condição de aprendizes, para tentar compreender esse universo, é outra ação que contribui para a relação com elas, pois, do ponto de vista da aprendizagem, falar de um determinado conceito e ensiná-lo fazem com que elas desenvolvam habilidades comunicativas, ajudam a pensar seu próprio processo de aprendizagem e elevam sua autoestima.
Em 2013, estava realizando um projeto de jogos de tabuleiro com alunos de quatro a seis anos e encontrei dificuldade de alcançar um dos objetivos propostos por meio dos recursos tradicionais, como nomear os números acima de dez. Foi então que surgiu a ideia de os próprios alunos elaborarem jogos para serem acessados em iPhones, iPads e computadores.
Para essa proposta, os alunos utilizaram iPads para capturar as imagens e um aplicativo gratuito para fazer os jogos. Os resultados obtidos superaram as expectativas e o fato de terem protagonizado esse processo fez com que tivessem que pensar sobre o objeto de estudo sob outros pontos de vista, o que ensejou muitas aprendizagens.
Além disso, o grupo ficou entusiasmado quando viu seu jogo ser utilizado por outras crianças da escola e acessado até em outros países. Eles ainda tiveram uma experiência interessante ao ver o interesse que isso despertou na mídia. Quando repórteres, cinegrafistas e fotógrafos vieram conferir o jogo, os alunos perceberam que de fato tinham feito algo interessante, o que elevou ainda mais a autoestima do grupo.
Eles já tinham experimentado outra situação de construção utilizando a tecnologia, pois haviam elaborado um curta-metragem no qual bonecos de massinha se movimentavam para recontar a história João e o Pé de Feijão. Participar desses projetos fez com que a semente de ser produtor de conteúdo, e não simplesmente consumidor do que está disponível, fosse plantada.

Maria Fernanda Reis Balugani é graduada em Letras (Português) e Pedagogia. Atua como professora de Educação Infantil há 23 anos e, atualmente, é coordenadora do Infantil 5 e 1º ano do Colégio Visconde de Porto Seguro.


Para auferir sucesso na tarefa de educar, é necessário lembrarmos
que as crianças também aprendem por imitação e, por isso,
precisam encontrar em seus responsáveis bons modelos

 


Crianças, adultos e
enredamentos tecnológicos
por Leni Vieira Dornelles

 

Ao tratar sobre ciberinfantes, observo que o mundo é gerado por comandos à medida que navegamos por ele. Esse é o caminho trilhado quase que cotidianamente pelas crianças ciber que conosco convivem, seja em nossas casas ou em salas de aula. Crianças que circulam de um espaço real para um espaço virtual, para isso, só precisam dar um “enter”: um clique de entrada que nos faz pensar que a infância atual vive na era do laptop e do Wi-Fi, espaços virtuais que tornam as crianças nômades que perambulam atrás e por meio de conexões.
Quando se fala em crianças e tecnologias, logo questionamos: onde brincam as crianças hoje? Posso rapidamente responder: em seus quartos/lan house globalizados e cheios de penetrações do mundo via internet. Esses espaços reconfiguram a infância contemporânea: é nele que se dá o enter para que se abram as portas do mundo – antes secreto do adulto que inventava uma infância puramente ingênua e protegida.
Contudo, é necessário problematizarmos as maneiras de enclausuramento das crianças, que muitas vezes não mais usam suas casas ou ruas para brincar, mas passam as tardes em shoppings ou trancadas em seus quartos informatizados. Crianças que vivem imersas em pedagogias culturais que as amarram a uma variedade de espaços sociais, incluindo, mas não se limitando a ele, ao espaço escolar ou de suas casas.
Quando tratamos dessa geração de crianças em nossas escolas, atento que Veen e Vrakking (2009) chamam esta geração de estudantes de “homo zappiens”, ou seja, crianças que demandam novas abordagens e métodos de ensino para que se consiga manter a atenção e a motivação na escola.  Os autores comentam que, repentinamente, as crianças que chegavam à escola passaram a demonstrar um comportamento bastante diferente, mais direto, ativo, impaciente e, de certa forma, indisciplinado. Parecia que algo diferente havia acontecido durante as férias. O que acontece é que as crianças, com auxílio dos recursos tecnológicos, entraram em contato com um mundo sem fronteiras e com respostas instantâneas. Ao utilizar as ferramentas de comunicação da web, elas processam uma quantidade enorme de informações, por meio de uma grande variedade de tecnologias.
Contudo, concordo com Buckingham (2008) quando ressalta que “os meios digitais, como a internet, têm enorme potencial para o ensino, mas será difícil realizar esse potencial se persistirmos em considerá-los apenas como tecnologias, e não como formas de cultura e comunicação”. Wolton (2014) salienta que durante muito tempo informação e comunicação foram sinônimos e que
“o progresso tecnológico garantiu o triunfo da informação, ou seja, a supremacia da mensagem”, o que nos leva a pensar: de que vale o acesso instantâneo ao mundo se não conseguirmos com ele nos comunicarmos com nossos pares? Se não refletirmos sobre o lugar do outro em nossas relações?
Essas novas configurações relacionais nos mostram que compete ao professor, aos adultos com os quais os ciberinfantes convivem, sair do sistema fechado e seguro do trabalho, de suas vidas previamente planejadas, no qual as ações são previsíveis, e assumir a constituição de um sistema aberto e complexo, que se constrói a partir da real necessidade e atividade das crianças hoje. Os ciberinfantes demandam abertura a essa possibilidade de novas construções por parte dos professores e adultos. Para isso, é preciso possibilitar que seu trabalho em aula e em casa seja propulsor de fazeres criativos, levando à construção não só de conhecimento, mas também de sujeitos capazes de se humanizar.
É importante salientar que os professores deste início do século 21 são imigrantes digitais e estão se apropriando dos recursos digitais. Muitos adultos utilizam os recursos da rede ainda de forma limitada, mas buscando reaprender sobre as tecnologias. Assim, os cenários de socialização vividos pelos nativos digitais se tornam muito diferentes do que foi vivido por esses adultos. Nesse contexto, o maior desafio é problematizar as relações entre a infância e o mundo atual globalizado, cujos ciberinfantes têm acesso desde que nascem.
O mal-estar causado por esse novo tipo de vida das crianças faz com que alguns estudiosos anunciem a crise da infância. Baudrillard (1997), por exemplo, trata de uma infância que, por ser geneticamente fabricada e ter o privilégio da instantaneidade das novas tecnologias virtuais nos computadores, na música, na eletrônica, na rapidez do tempo, é uma infância “anormal”. Diz mais: por fazerem parte de uma aceleração geral globalizada, essa infância pós-moderna “é condenada à obsolescência acelerada”, ou seja, toda sua vida se dará de forma abrupta, tudo logo se tornará descartável, velho. Certamente esse discurso produz e fabrica uma nova infância, mas qual será o efeito disso na vida dessas crianças?
Critica-se que as crianças hoje não leem mais, mas pode-se observar que “para crianças e jovens deste século, com acesso ao computador e à internet, ler na tela do monitor, navegar em um novelo textual na rede, interagir na escritura de narrativas começam a ser formas tão comuns quanto o tradicional virar a página de um livro” (JACOBY, 2003). Estas são novas formas de pensar, apreender e produzir sentido. O livro pode ter sido, muitas vezes, substituído pelo tablet, mas é interessante que se pense que essa leitura ainda acontece.
Essas novas tecnologias culturais infantis exigem que se invista em pesquisas sobre os ciberinfantes, sobre as tecnologias, sobre o efeito delas em suas vidas e sobre as estratégias criadas para produzir o sujeito infantil na contemporaneidade. É preciso que se possa pensar e problematizar as relações entre a infância, o adulto e o mundo atual. Muitas crianças têm acesso a um vasto material tecnológico desde que nascem, ou muitas vezes até antes de nascer, e isso é novo. Devemos, então, pensar de que forma as crianças lidam com esses equipamentos eletrônicos. Observo que, para desespero dos que pensam que assim a infância está sendo perdida e para a felicidade dos empreendedores de entretenimento, a coisa não para por aí: estamos adentrando a era do wearable, onde as tecnologias invadem nosso corpo. Pulseiras eletrônicas, chips tatuados na pele e múltiplos dispositivos passam a fazer parte de todos nós. Mesmo fazendo uso do comando enter, uma parte de nós parece estar sempre no comando delete.
Com esse clicar constante, negando essas mudanças no cotidiano das nossas crianças, os ciberinfantes passam a ser os infantis que nos escapam. Acredito que assim se pense, pois ainda não conseguimos controlá-las, por não termos poderes o suficiente para governá-las. As crianças de hoje dominam seus smartphones sem mais precisar da ajuda dos adultos, e isso para muitos pais e professores realmente parece ser surpreendente e assustador demais. São essas as crianças que não estão acostumadas a pedir licença para agir, saber ou pensar. Elas agem, sabem e pensam sem a permissão do adulto.
O grande desafio de todos os que com essas crianças convivem é, portanto, continuar desvendando a grande charada que envolve todos os modos de produção do sujeito infantil hoje. Como tecer uma rede que amplie as redes sociais e que enrede, de tal forma, adultos, crianças e tecnologias? Entendo que, quanto mais essas teias se expandirem, maiores serão as possibilidades de reinvenção das infâncias e suas transformações nas sociedades hipercontemporâneas. Mas isso é outro comando a ser dado!

Leni Vieira Dornelles é doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e professora na mesma instituição. Atua nos temas educação infantil, formação de professor, modelos pedagógicos de educação a distância, ciberinfância e educação.


Essas novas configurações relacionais nos mostram que compete aos adultos com os quais os ciberinfantes convivem sair do sistema fechado e seguro e assumir a constituição de um sistema aberto e complexo