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Poesia
por Ana Luísa Amaral
SONS, E ALGUMA VIDA
Nunca viveu a sintaxe
de coisa outra
que não fosse um caos
ameaçado
E a ordem
esteve sempre em recessão
desde o primeiro
acaso
Nunca as coisas
de dentro
entraram dentro
em tom propositado
E o sentido
foi sempre sentimento
mesmo quando
ensaiado
Nunca em suma
se obteve
a soma
concluída
Porque a soma
imperfeita
foi o metro
de que se fez a vida
DAS ALCALINAS
SOLUÇÕES OU BRILHOS
Não fora a rouquidão
no rugido dos carros a passar,
e o asfalto cruel,
e o desconcerto de haver mesa e cadeiras
ainda desviadas da função devida,
podia aqui ser inventada musa,
alimentá-la ao sol
que agora, e apesar de tudo,
sempre brilha
Além disso, e ainda,
intermitente:
canto de pássaro:
a paisagem doente de cidade,
o coração pendente
de uma alcalina solução
que se decante
em vida:
PEQUENA ODE, EM ANOTAÇÃO
QUASE BIOGRÁFICA
Bom dia, cão e gata,
por essa saudação e de manhã,
o corpo de veludo, a língua suave,
em simultânea tradução:
bom dia
Bom dia, sol, que entraste aqui,
me ofereces este espelho
onde me vejo agora, e tão de frente,
tornaste um pouco clara a folha de papel
e nela: em faixa transparente,
o tempo
Bom dia, coisas todas que brilham na varanda,
folha de japoneira, o nome cintilante,
o som daquele pássaro,
como se o mundo, de repente,
se fizesse mais mundo, e de maneira tal
que nunca mais se visse
escurecente o dia
Bom dia, gente pequenina
que não consigo olhar desta cadeira,
mas que está: formigas e aranhas,
minúsculos insectos
que hão-de morrer, mas aqui nascerão,
todos os dias
Bom dia, minha filha, igual a girassol,
quantas mais vezes te direi bom dia,
olhando o corredor,
tu, já não de baloiço, mas de amor
e pura filigrana,
eu, quase entardecendo
Bom dia, meu sofá,
onde me sento à noite, e devagar,
as flores que ora não são, ora às vezes
povoam esta mesa, a porta em vidro,
iluminada, em mais pura esquadria,
livros e quadros, curtas
fotografias em breve
desalinho
Bom dia, a ti também,
pelo perfume em fio que me trouxeste,
como se encera um chão rugoso de madeira,
os veios de uma planta desejosa de folhas,
ou mesmo as falhas na paz que me ofereceste,
e que desejo tua
Mesmo no tom cruel
que é acordar todos os dias
para um mundo sem sol em tantas mãos,
mesmo nesse desmando e tão violento curso
que é o mundo,
ainda assim, esta pequena anotação
de abrir os olhos e dizer bom dia,
e respirar de fresco o ar de tudo
em tudo –
PEQUENA FÁBULA
DA MORTALIDADE
E lava os dentes como bom mortal,
que a riqueza não paga esse cansaço.
E os olhos eriçados de ambição
confunde-os ele a azul iluminado.
Toma um pequeno almoço que será
um pouco menos torto que os demais,
café, meia toranja, quiçá um sumo
leve de laranja e curtos cereais.
Verá a névoa a desprender-se, suave,
da erva, como pálido vapor?
E ficará em espanto nessa névoa,
como o outro, em esplendor?
Provavelmente, não, mas não se sabe,
sabe-se só que nesse dia sai
e volta aos seus assuntos imortais,
astutos e preclaros e enxutos.
E um dia qualquer, como qualquer
mortal em frente aos dentes e ao espelho,
há-de passar a estado de erva quente,
ou fria, consoante for estação.
Outro virá, noutro espelho em função
menos ou mais acesa. Só a erva,
feliz por ser só erva, ficará,
não se sabendo ela também mortal.
Como de resto tudo o que se encontra
abaixo de uma linha estranha e torta,
que em nós: ausente de definição.
Mas a suspeita existe, se a escutarmos
de um reduto de som. E esse: comum
ao pequeno fulgor que a sustentou.
Dele sobram as folhas enceradas.
Do resto, só o verde. Enquanto existe –
EQUAÇÕES ∞ SONETOS
(versão 2)
As oito da manhã de um soneto que fiz
há alguns anos falam de um sonho de
toques lacunares no tocante aos amores.
Por isso são as oito da manhã desse soneto
(raso) escritas em cardinal. Se fosse
esta manhã, sem sono e sem memória
do sonho que passou, não seria assim escrito
o 8 da manhã, mas ∞ (de infinito).
A lembrar corpo. Se fosse a esta hora,
havia de escrever as 8 horas: lisas como
novíssimo lençol sobre colchão tangível,
e de vida: que esse infinito trazido no sinal,
vestido de soneto, falaria de amor em
perfeita económica equação: despida:
A poeta portuguesa Ana Luísa Amaral é autora, entre outros livros, de Vozes (Iluminuras, 2013) e A Gênese do Amor (Gryphus, 2007), vencedor do prêmio literário Casino da Póvoa.