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Ficção Urbana
Criador de personagens que povoam o imaginário de gerações, Marcos Rey continua a conquistar leitores de todas as idades
Mesmo dezesseis anos após a morte de Marcos Rey, ocorrida em 1999, o interesse por seus romances, contos, crônicas, narrativas para o público infanto-juvenil, roteiros para TV, minisséries, novelas e filmes não para de crescer. Basta olhar alguns números para ter a confirmação da proeza. De 2011 a 2014, o total de livros vendidos alcança os 128.867 exemplares, segundo dados da Global, editora responsável pela publicação das obras do autor.
Nascido em 1925, Marcos Rey – pseudônimo escolhido por Edmundo Donato para assinar suas histórias – lançou o primeiro conto ainda muito jovem, com apenas 16 anos de idade, no extinto jornal Folha da Manhã. Já a estreia editorial data de 1953, com a novela Um Gato no Triângulo. Rey trilhou um caminho comum hoje em dia; porém, mais complexo no período no qual começou a carreira.
Após trabalhar por anos escrevendo novelas para as principais emissoras do país (Excelsior, Tupi, Globo, Record) e mais de 30 roteiros para cinema – fato devidamente registrado em O Roteirista Profissional (Ática Editora, 1997, edição esgotada) –, migrou sua imaginação e habilidade em contar histórias para o público jovem, manobra profissional que permitiu a dedicação exclusiva à literatura. “É importante frisar que viver de literatura no Brasil não é algo fácil, motivo de Marcos Rey ter se dedicado à publicidade, a roteiros de cinema, televisão, entre outras atividades.
O fato é que, a partir da década de 80, quando lança os livros infanto-juvenis, eles se tornam grandes sucessos de venda, passam a integrar as bibliotecas de escolas e salas de aula. Nessa época não tínhamos tanta oferta de livros para essa audiência como é hoje. Creio que ele foi absorvido por uma grande onda do mercado editorial. Com isso, atingiu níveis de venda que lhe garantiram viver apenas dos seus livros”, opina o jornalista João Correia Filho.
ASSUNTO DELICADO
Quando criança, Marcos Rey vivenciou momentos difíceis que o marcaram sensivelmente. Contraiu hanseníase com 10 anos e, aos 14, foi levado para um período de internação compulsória e solitária em sanatórios. O assunto delicado serviu de introdução para Maldição e Glória – A Vida e o Mundo do Escritor Marcos Rey (Companhia das Letras, 2004), biografia escrita pelo jornalista Carlos Maranhão, que
desvendou o episódio turbulento. Por mais que Palma Bevilacqua, viúva do escritor, o incentivasse, ele se negava a escrever sobre o caso. “A doença, as internações e as fugas foram o assunto determinante do meu livro. Hanseníase é um tema maldito, sobre o qual quase ninguém fala. E a política de recolhimento compulsório dos doentes, praticada sobretudo no estado de São Paulo durante décadas, era um fato histórico quase relegado ao esquecimento. Eu mesmo, antes de iniciar minhas pesquisas e entrevistas, não sabia nada sobre isso.
As próprias vítimas silenciaram, a começar por Marcos, que jamais abordou o assunto com amigos e nunca escreveu uma única linha a respeito de sua tenebrosa experiência. Fora do círculo familiar mais íntimo – a mulher, os pais e os irmãos – ninguém tinha conhecimento da história”, resume Maranhão, que nunca cogitou excluir tal passagem. “Decidi mergulhar nela [doença] à saída de seu velório. Palma me fez a revelação quando nos despedimos e se dispôs a dar um depoimento. Seriam várias sessões de entrevistas, na verdade. O livro começou assim.”
I LOVE SÃO PAULO
Praticamente um personagem com formas e vontade própria, a cidade de São Paulo representa um vínculo afetivo e literário indissociável do escritor. Bares, ruas, cantinas, viadutos e edifícios mostram-se imponentes, seja nos títulos ou no corpo dos textos.
Um bom exemplo vem de sua vigorosa veia de cronista, gênero do qual foi expoente, de acordo com a organizadora da obra Melhores Crônicas, Anna Maria Martins, que conviveu com Marcos Rey e é parte da Academia Paulista de Letras – na qual o autor entrou em 1986.
“Ele usa a cidade como pano de fundo, mostra nas crônicas o cenário urbano. Sua criatividade encontra nas pessoas que povoam a metrópole e, em fatos cotidianos, o material estruturante da crônica”, analisa. Segundo a especialista, nos textos figurava a ironia fina “destituída de amargura ou maldade” do autor. Anna reforça ainda que a criatividade de Marcos Rey também se apoiava no cenário urbano. “Personagens cruzam praças, becos, ruas da pauliceia. A memória cruza a ficção, traz a presença de amigos em noites que se alongam em bebida e conversa”, exemplifica.
A relação do escritor com a cidade era tão forte que Palma Bevilacqua soltou suas cinzas, de helicóptero, por São Paulo. “Deixando um pouco do escritor em cada bairro em que viveu e em que viveram seus personagens”, observa Correia Filho. “Acho isso bastante representativo da relação dele com a capital.” Marcos Rey morreu aos 74 anos, devido a complicações de um câncer generalizado.
VERBO NA TELA
De 1978 a 1985, um programa querido pelas crianças teve Marcos Rey no time de roteiristas. O Sítio do Picapau Amarelo intensificou a diversidade de sua criação. Escrever para os jovens não era sinônimo de literatura simplificada ou sem significado. Segundo Correia Filho, a diferença preponderante é que a literatura destinada ao público jovem costuma ser menos rebuscada, mais focada na narrativa e menos na linguagem, considerando a escrita fluida e sem academicismos do escritor. “Ler é um hábito que se exercita cotidianamente até criar vínculos com a linguagem.
Criar esse hábito lendo Ulisses, de James Joyce, ou mesmo Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, pode assustar alguns leitores iniciantes”, afirma o jornalista. “No entanto, isso também é bastante relativo. O próprio Marcos Rey quebra em parte essa regra, na medida em que livros dele, como O Último Mamífero do Martinelli (1995), voltado ao público adulto, com um texto mais denso e tema ligado à ditadura e à perseguição política, faz enorme sucesso entre os jovens, sendo incluído nesse segmento com muita facilidade.”
A transição para o cinema se deu em adaptações de Memórias de um Gigolô (1970) e O Enterro da Cafetina (1971), ambas feitas pelo cineasta Alberto Pieralisi. No teatro, é autor das peças A Próxima Vítima (1967), Os Parceiros (Faça uma Cara Inteligente e Depois Pode Voltar ao Normal), de 1977, e a inédita A Noite Mais Quente do Ano.
BEM-SUCEDIDO
Autor de sucesso que não veio fácil, de acordo com Carlos Maranhão, o escritor atuava em todas as possibilidades que a escrita lhe oferecia. “As atividades profissionais diversas, aliás, serviriam de matéria-prima para vários de seus livros. Mas passou a ganhar dinheiro, realmente, com as histórias juvenis que escreveu para a coleção Vagalume, da Editora Ática”, informa. “Eram de boa qualidade, agarravam o leitor e não tinham a preocupação de serem didáticas nem politicamente corretas. Por isso mesmo, vendiam muito bem.”
BOXE 1 - CRIADOR E CRIATURAS
MUNIDO DE GRANDE FÔLEGO PARA A CRIAÇÃO, MARCOS REY DEU VIDA A PERSONAGENS MARCANTES. A SEGUIR, ALGUNS DELES:
Leonardo Fantini, bellboy do hotel citado no livro O Mistério do Cinco Estrelas (1981). É o grande personagem de seus livros para o público infantil e jovem, sendo recorrente em sua literatura, como quem descobre os enigmas e crimes.
Mariano, de Memórias de um Gigolô (1968). Segundo Palma Bevilacqua, viúva do escritor, o título inicial do livro seria “Mariano” e não Memórias de um Gigolô, como acabou ficando por questões editoriais.
Betina, cafetina que dá título ao livro O Enterro da Cafetina (1967), o qual ganhou o Prêmio Jabuti em 1968. Esse é um clássico da nossa literatura e nos apresenta um retrato da sociedade paulistana. É hilário e atemporal.
Paribar, citado no conto O Bar dos Cento e Tanto Dias, faz referência direta ao “Paribar”, localizado nos fundos da Biblioteca Mário de Andrade, na República, e frequentado pelo escritor.
*Fonte: João Correia Filho, jornalista, um dos idealizadores e responsável pela pesquisa
de conteúdo do projeto Marcos Rey dos Heróis Paulistanos, no Sesc Consolação.
BOX 2 - LER E RELER
OBRA DO ESCRITOR É REVISTA E HOMENAGEADA NO SESC CONSOLAÇÃO
Marcos Rey e sua produção literária estiveram em destaque na unidade Consolação durante os meses de maio e junho. O projeto Marcos Rey dos Heróis Paulistanos foi elaborado com base em pesquisas do universo da palavra no diálogo, entre outras linguagens. Entre as atividades, ocorreram encontros, vivências de ilustração, roda de leitura e passeios pela região central da cidade de São Paulo que serviram de cenário para romances e crônicas do autor.
A técnica de programação da unidade, Ana Cristina de Souza, explica que outra ação importante foi a exposição temática Decifrando Enigmas, “na qual a posição de objetos buscou remeter às principais histórias e aventuras abordadas nas obras do autor, como forma de promover experimentações literárias e incentivo à leitura”.
No ano em que o escritor completaria 90 anos, “levamos em consideração a sua história de vida, passada em grande parte na região da Vila Buarque e região central da cidade. Um momento para aguçar a curiosidade pela leitura ou releitura de livros que marcaram e que continuam marcando a literatura infanto-juvenil e adulta no Brasil e em várias partes do mundo”, explica. O encontro entre o público leitor e Palma Bevilacqua, viúva do escritor e maior propagadora de sua obra, ofereceu aos presentes relatos saudosos sobre o homem por trás de uma produção tão relevante para a literatura brasileira.
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