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Roteiro Brasileiro
ROTEIRO NO CINEMA BRASILEIRO
De modo simplificado, roteiro é a apresentação da história de um filme, com o qual é possível planejar, antever despesas e abrir portas para que ele seja realizado. Após um longo período de desvalorização, pouco a pouco a função do roteirista começa a se tornar mais reconhecida no Brasil. Qual é a importância de produtores, diretores, exibidores, distribuidores e público em geral apoiarem a criação e o desenvolvimento de roteiros? Analisam o tema os roteiristas Di Moretti e Ugo Giorgetti.
SEM MODELOS A SEREM SEGUIDOS
por UGO GIORGETTI
Roteiro é, antes de tudo, uma peça de sedução. Tem que seduzir o produtor que vai bancar o filme, o diretor que vai dirigi-lo e, principalmente, os atores pretendidos. Tem que fazer com que todos, técnicos e elenco, vislumbrem nele oportunidades para exercer seus diversos talentos da melhor maneira possível.
Roteiro, portanto, por essa concepção, não é cinema, é literatura, como dizia Pasolini. É algo para ser lido, não visto, por isso quanto melhor literatura ele for, melhor roteiro será. Depois de agradar a todos será impiedosamente modificado por sugestões, ideias, palpites e conselhos que chegarão de todos os lados, antes e durante a filmagem. Se ele tiver substância, no entanto, mesmo depois de todas essas mudanças, depois de literatura que era ter sido transformado em cinema, será possível ainda reconhecê-lo, e apreciar sua eventual beleza quando o filme chega à tela. Modificado ou não ele estará sempre presente em cada take filmado, em cada sequência que for superada.
O roteiro, como o nome indica, é, sobretudo, o guia, o companheiro de viagem a indicar a rota. Ou uma possível rota. Essa era, por alto e muito superficialmente, a concepção de roteiro principalmente na Europa, de onde vinham os grandes filmes da época em que comecei a me familiarizar com o assunto.
Havia uma contribuição muito grande de literatos na elaboração dos roteiros, até porque havia uma infinidade de filmes baseados em livros, com os autores vivos e presentes, colaborando na adaptação de suas próprias obras. Alberto Moravia, Ennio Flaiano, Vasco Pratolini, Leonardo Sciascia eram nomes que apareciam nos créditos de roteiro ao lado de Bertolucci, Fellini, Francesco Rosi, Valerio Zurlini. O ganhador do mais recente Nobel de literatura, o escritor francês Patrick Modiano, escreveu o roteiro de Lacombe Lucien, belíssimo e polêmico filme de Louis Malle. Assim era a atividade de roteirista em cinematografias poderosas que giravam o mundo.
No Brasil era um pouco diferente, a começar pelas precaríssimas condições de produção. Nunca havia dinheiro. Nunca havia possibilidades de contratar equipes numerosas, robustas, então a solução era sempre baixar custos. Um dos custos que sofriam cortes era o roteirista. Primeiro porque, em qualquer situação, o roteirista representa a primeira despesa do produtor. Ele é pago antes, quando o filme às vezes não passa de uma possibilidade, uma hipótese, que pode ou não se materializar. Há riscos de despesas nessa etapa que só um cinema com um pouco mais de conforto pode pagar.
Outro obstáculo decorre um pouco do primeiro: evitava-se muitas vezes o roteirista porque o próprio diretor, geralmente alguém letrado e com habilidade em escrever, se sentia capaz de executar essa função. E economizava.
Finalmente havia uma tendência, fruto de informações erradas e ingênuas, que tratavam o roteiro mais como obstáculo ao verdadeiro talento criador do que como uma ferramenta indispensável para o filme. O roteiro deveria ser abandonado para dar lugar a improvisações e inspirações de momento. Circulavam notícias sobre as proezas de Godard ou Fellini, nessa direção.
Tenho certeza que os grandes cineastas brasileiros desconfiavam profundamente desses procedimentos e duvido que os grandes filmes brasileiros tenham sido feitos com roteiros semiescritos e abandonados num canto do cenário. Como duvido que qualquer grande cineasta europeu tenha jamais filmado com improvisações absurdas. O problema é que uma cinematografia não é feita só pelos grandes cineastas. Ao contrário. O pequeno e médio cineasta é talvez a parte mais importante, não artística, mas do negócio do cinema. E esse pequeno cineasta, esse sim, perecia convicto da inutilidade de um roteiro acabado. Em um plano mais amplo, do cinema europeu, essa pouca visibilidade do roteiro era fruto, também, da verdadeira obsessão, do verdadeiro culto de que foram alvo diretores europeus da época. A impressão é que o diretor fazia o filme sozinho, deus absoluto num set povoado de adoradores prostrados a seus pés.
Essa concepção, um pouco provinciana, de alguma forma, porém, achou guarida na cabeça de jovens estudantes de cinema, não todos, de alguns acadêmicos, não todos, de alguns críticos, não todos, e até hoje é algo que circula por aí. Tudo isso mudou e o roteiro chega nos dias de hoje ao primeiro plano. Por quê?
Primeiro por razões econômicas. Há mais dinheiro para filmes, as produções têm mais recursos. Depois porque o cinema europeu, praticamente não existe mais e a hegemonia do cinema americano é total. Ao contrário do europeu o cinema americano baseava o filme quase que inteiramente no roteiro. Mudar o roteiro sempre foi algo muito problemático e não tenho lembrança de qualquer grande cineasta americano que fizesse isso. Obediência ao roteiro era algo natural e toda a concepção de filme à americana se fundamenta nisso.
Também por razões de custo. Um roteiro exato permite antever despesas e dificuldades. Um roteiro exato pode ser planejado com segurança. Portanto, o roteirista sempre foi, nesse cinema, figura básica, com talvez a mesma importância dos diretores. Além disso, o roteirista americano, por várias razões, punha sua fantasia no limite das exigências econômicas, e não era em geral um literato. Os literatos, aliás, se deram bem mal como roteiristas. Vide Scott Fitzgerald ou William Faulkner.
O roteirista americano era um funcionário do estúdio, sua habilidade consistia em fazer belos filmes dentro do custo. Os roteiros de Alfred Hitchcock eram tão precisos que ele mesmo dizia que sua presença na filmagem era praticamente dispensável. Tudo já estava cuidadosamente previsto. Isso tira algo da criatividade de um roteirista? Não creio. Obras primas foram feitas dessa maneira. O problema é que também esse cinema não existe mais. Existe a influência americana, enorme, como jamais se viu, mas não mais o grande cinema americano.
O que há é um cinema despedaçado, fracionado em mil formas, com TV e cinema se misturando cada vez mais. Na verdade, nós, roteiristas, estamos sós. Não há mais modelos a serem seguidos. E o perigo nessa terra de ninguém são os moedeiros falsos, os vendedores de poções mágicas com seus almanaques, suas regrinhas e seus mandamentos, todos se fazendo passar por cinema americano de qualidade. Uma maneira criativa de fazer roteiros que nos deu tantos filmes inesquecíveis está sendo reduzida a manuais de autoajuda, com promessas que fariam arrepiar os cabelos de um Billy Wilder ou Woody Allen.
Não pretendo introduzir aqui um pensamento pessimista, apenas fazer uma constatação que pode estar errada, mas é fruto de muitos anos pensando sobre essa minha profissão e do que vejo acontecer por aí. Infelizmente, não há fórmulas. Roteiro é imaginação e trabalho de rua, pesquisa. Não é aos manuais que devemos recorrer nos momentos de dúvida e de paralisia que tantas vezes nos aterrorizam, mas aos grandes filmes feitos através dos tempos. É sobre eles que nos devemos debruçar, é a eles que devemos perguntar o que fazer. E eles sempre respondem.
UGO GIORGETTI escreveu os roteiros de mais de dez filmes e telefilmes. Entre eles Jogo Duro, Festa, Sábado, Boleiros, O Príncipe, Solo, Cara ou Coroa e A cidade Imaginária.
“A IMPRESSÃO É QUE O DIRETOR FAZIA O FILME SOZINHO, DEUS ABSOLUTO NUM SET POVOADO DE ADORADORES. TUDO ISSO MUDOU E O ROTEIRO CHEGA NOS DIAS DE HOJE AO PRIMEIRO PLANO”
AFINAL, O QUE É UM ROTEIRISTA?
por DI MORETTI
Flashback: em meados da década de 60, com aproximadamente 4 anos, fui convencido a abandonar minha bola de capotão no quintal e ir conhecer uma novidade no bairro, um cinemascope. A tarde prometia ser divertida e incomum. O Cine Júpiter, na Penha, zona leste de São Paulo, estava exibindo Bambi, dos estúdios Disney. Entre um saco de pipoca e um puxa-puxa, lembro de me emocionar, torcer, rir, chorar, enfim, um caldeirão de sentimentos diferentes naquele dia. As imagens coloridas projetadas naquele pedaço de pano esticado, chamado tela, chacoalharam minhas emoções e minha vida. Desde aquele dia, coloquei na cabeça que queria fazer cinema. Ainda não sabia muito bem em que função nem como iria sobreviver com esse sonho. Descobri que tinha duas paixões, literatura e cinema, e percebi que a carreira de roteirista reunia essas duas atividades, prazerosamente. E lá se vão algumas décadas desta pequena epifania infantil.
Apesar de tudo, ainda hoje, como roteirista profissional, convivo com o desconhecimento do que é o meu trabalho. Pouca gente sabe o que um roteirista faz. Para isso, sempre uso a mesma piada, os perigosos três eMes: “nem o Meio, nem a Mídia, nem minha Mãe sabem exatamente o que eu faço. Como me preocupo muito mais com minha mãe, sempre digo que sou o cara que escreveu a historinha do filme...”. E já ouvi várias versões engraçadas e deturpadas sobre esta função: “roteirista é o cara que pega a história do diretor e transforma na história do filme”, “o roteirista também escreve os diálogos do filme?”, “roteirista é aquele sujeito que trabalha em agência de turismo e faz roteiros de viagem...”.
Enfim, tirando a falta de conhecimento sobre o trabalho do roteirista, nunca se dispensou muita atenção nem muito tempo para o bom desenvolvimento de um roteiro dentro de um projeto cinematográfico. O roteiro é a mola mestra da produção de um filme. É ele que apresenta sua proposta, sua premissa, sua história. É ele que abre as portas de financiamentos, investimentos, apoios, simpatias e condições para que um filme possa ser realizado. No longo e desgastante processo de feitura de um filme, o roteiro muitas vezes fica esquecido e relegado a segundo plano. São tantas as demandas que a própria produção se esquece dele. E, o mais irônico de tudo, se houvesse uma atenção maior ao roteiro, muito seria economizado nos custos de produção.
Fui um dos fundadores e o 1º presidente da primeira associação de roteiristas de cinema do Brasil, a Autores de Cinema. A A.C. foi criada com o objetivo principal de valorizar o roteiro e o roteirista e sempre nos preocupamos muito com a atual situação do cinema nacional e com o futuro dessa profissão. Uma de nossas metas é esclarecer produtores, diretores, exibidores, distribuidores e o próprio público sobre a necessidade premente de incrementar o apoio à criação e ao desenvolvimento de roteiros. Como a própria definição léxica da palavra, “autor” é aquele que dá origem. Nesse sentido absolutamente pragmático o roteirista está indelevelmente envolvido na origem de um filme. Quando fundamos a Autores de Cinema, o significado de “autoria” no nome da associação nos ajudava a identificar o tipo de trabalho que queremos fazer. Muitos, ainda hoje, acham que estamos defendendo a ideia exclusivista da autoria, mas não é isso, queremos apenas nossa “parcela de culpa” no resultado final de um filme. Perante a lei ainda somos párias, não somos reconhecidos profissionalmente e no Imposto de Renda estamos na categoria “outros”...
Na esfera institucional se discute a reforma da lei dos direitos autorais. A própria lei internacional define diretores, roteiristas e músicos como autores de um filme. Essa definição de autoria nos ajuda a defender nossos direitos sobre a obra, direitos estes que sempre foram vilipendiados de várias formas. Basta dizer que a maioria dos contratos que assinamos com as produtoras deixa claro que temos que ceder os direitos autorais da obra por “tempo indeterminado”, “para veiculação nos cinemas, TV ou qualquer outra mídia que seja inventada no futuro”, cessão esta extensiva ao “mundo inteiro, ao planeta Terra e ao universo conhecido hoje”. Ou seja, diante de tanta opressão galáctica fica difícil não ter o desejo de defender o mínimo direito do roteirista, o direito sobre sua própria obra.
Para não dizer que não falamos de flores, no ano passado surgiu uma iniciativa alvissareira: editais promovidos pelo Fundo Setorial (PRODAVs) visando ao fomento de roteiros para filmes, séries de TV, animação, games... Uma luz no fim do túnel, e não parece ser um veloz trem vindo em nossa direção, mas sim uma frestinha de esperança para que essa carreira possa ser chamada finalmente de profissão.
O ato da escrita é sempre de tentativa e erro, de persistência, de trabalho insistente... Um dia, numa palestra, uma jovem jornalista, deslumbrada com o depoimento do escritor carioca Zuenir Ventura, chegou para ele e repetia: “Deve ser tão bom escrever, né, Zuenir?” Ele, com jeito e sem querer decepcioná-la, respondeu: “Minha querida, melhor do que escrever, é já ter escrito”. Ou seja, o caminho é árduo.
Ir ao cinema é doar duas horas de sua vida para entrar numa caixa escura, cheia de gente esquisita, que masca chiclete de boca aberta, fala alto, chuta sua poltrona, atende o celular... Diante de todos esses obstáculos, o filme ainda tem que comover e envolver esse espectador resistente e muitas vezes distraído. Ir ao cinema é estabelecer um pacto de confiança com o público, pelo qual o filme não pode desrespeitar sua inteligência de maneira nenhuma. E os roteiristas são os grandes responsáveis pelo cumprimento desse pacto. Eles não podem trair, sob nenhuma condição, essa confiança que lhes foi despositada, não podem apresentar um personagem ou uma situação que não seja crível, orgânica e coerente com toda a trama apresentada.
Eu sou totalmente antiacadêmico no sentido do aprendizado de roteiro, acho que a formação de um roteirista se dá prioritariamente na prática. Claro, o profissional deve ter uma boa base literária, conhecer a dramaturgia clássica, preceitos narrativos, ler as grandes obras da literatura mundial, mas o exercício de escrever só se aperfeiçoa, só melhora, com a prática insistente de escrever, escrever, escrever... Não é por outra razão que o mestre do roteiro, Billy Wylder, num de seus 11 mandamentos do bom roteirista aconselha: “Não vagabundeie”.
As pessoas costumam confundir o ato de escrever com uma benção, um dom, uma dádiva, pela qual os escritores “recebem”, de algum lugar mágico, sua inspiração. O escritor gaúcho Luis Fernando Verissimo resume bem: “Inspiração é 90% de transpiração e 10% de desodorante!”. Escrever é pesquisar, insistir, persuadir, não desistir, perseverar, escolher, reiterar, recomeçar... A recompensa final é você ver seu roteiro tomar forma, ganhar corpo, seus persongens ganharem vida própria e tudo isso junto emocionar, sensibilizar, comover o público.
Por que alguém hoje, em sã consciência, gostaria de trabalhar como roteirista no cinema brasileiro? Não se sabe exatamente o que ele faz; não se sabe exatamente quanto ele ganha. Quando o filme vai bem, a mídia o ignora; quando vai mal, lembra que o problema é o roteiro. Ou seja, como numa débil estrutura narrativa, nosso trabalho parece estar eternamente condenado ao 2º ato, uma zona de conflitos e obstáculos.
Hoje, depois de um tenebroso passado, estamos conseguindo produzir filmes, mas ainda é uma conta que não fecha. Fazemos, em média, 100 filmes por ano; mas temos, no máximo, 50 roteiristas profissionais, pelo menos que se podem chamar assim. Precisamos urgentemente acertar essa conta e, para isso, é vital que nos revelemos e informemos o público, a mídia e o meio cinematográfico de nossa vital existência. Só com bons roteiristas, trabalhando em condições dignas, teremos bons roteiros e só com bons roteiros, teremos bons filmes.
DI MORETTI é roteirista de cinema, professor e consultor de roteiro. Roteirizou longas-metragens premiados como O Velho, Latitude Zero, Nossa Vida Não Cabe num Opala, Tropicália e Dominguinhos.
“A PRÓPRIA LEI INTERNACIONAL DEFINE DIRETORES, ROTEIRISTAS E MÚSICOS COMO AUTORES DE UM FILME. ESSA DEFINIÇÃO NOS AJUDA A DEFENDER NOSSOS DIREITOS SOBRE A OBRA, DIREITOS ESTES QUE SEMPRE FORAM VILIPENDIADOS”