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Comissão da Verdade
por JOSÉ CARLOS DIAS
Memórias de CHUMBO
Formado em Direito pela Universidade de São Paulo, o criminalista José Carlos Dias é reconhecido pelo trabalho na defesa de presos políticos durante a ditadura militar. O advogado foi também secretário da Justiça de São Paulo (1983-1986), ministro da Justiça durante o governo Fernando Henrique Cardoso (1999-2000), presidente da Comissão de Justiça e Paz de São Paulo (1979-1980) e um dos responsáveis pela criação da entidade civil Tortura Nunca Mais, em 1985. Em 2011, foi convidado a fazer parte da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. A seguir, os melhores trechos do depoimento do advogado, no qual ele fala sobre direitos humanos, sua experiência na comissão e os 50 anos do golpe militar.
MAR DE DEFESAS
Quando em abril de 1964 houve o golpe de Estado, eu iniciava a minha vida profissional como advogado. Trabalhava sozinho com alguns colegas, numa divisão de despesas e querendo advogar no direito penal. O que eu não imaginava era que seria surpreendido a defender perseguidos políticos. Eu nunca, nos cinco anos de faculdade, havia ouvido falar em Lei de Segurança Nacional e Código Penal Militar. Estava habituado a estudar o Direito Penal para defender crimes comuns, como homicídio, roubo, furto, estelionato.
Começaram a aparecer algumas pessoas pedindo que eu as atendesse porque estavam acusadas de crimes contra a Lei de Segurança Nacional, e foi então que eu comecei a trabalhar na área. Éramos poucos os advogados que defendiam esse tipo de crime. Ao todo, eu defendi mais de 500 perseguidos políticos.
É muito interessante essa relação de advogado e preso político na Justiça Militar. O advogado é vocacionado com a defesa da liberdade, e não com a defesa de vidas, mas os advogados de perseguidos políticos passaram, muitas vezes, a ser defensores de memórias. Eu tive vários clientes que acabaram sendo mortos e frequentemente fui à tribuna para defender uma memória, como a do jornalista Vladimir Herzog.
VIVÊNCIA NAS COMISSÕES
Tive algumas prisões e, em razão dessa militância, Dom Paulo Evaristo Arns me convidou para participar da Comissão de Justiça e Paz, na qual ele estava envolvido. Essa vivência da comissão foi muito bonita. Nós tínhamos contato com entidades do exterior, viajávamos, levávamos informações. Mais tarde, quando eu imaginava, com os meus 70 e tantos anos, tirar o pé do acelerador e colocar o pé no breque, surge o desafio de participar da Comissão Nacional da Verdade.
No começo havia certa instabilidade, mas a Comissão foi tomando forma e tenho a impressão de que ela deixa um legado importante. O relatório [publicado em dezembro de 2014] que deixamos começa pelos fatos, depois indica os autores, as vítimas e apêndices. Nós mostramos que havia uma cadeia de comando desde a Presidência da República até o torturador, e que os atos de violência praticados pelos torturadores não eram atos isolados. Isso fazia parte de uma política de Estado.
NO CAMPO DAS DIVERGÊNCIAS
Vacilei muito na minha convicção sobre a Lei da Anistia, porque politicamente eu entendia que nós deveríamos assumir uma posição corajosa. Pedi, inclusive, a dois constitucionalistas, a Flávia Piovesan e o Oscar Vilhena Vieira, que são professores de Direito Constitucional, para que me fizessem um parecer e ajudassem a me convencer. No final, a posição que nós assumimos foi essa, de entender que a anistia não se estende aos agentes públicos que praticaram excessos.
Outra discussão que houve é que nós não apuramos os crimes do outro lado, aquelas ações violentas praticadas pelas organizações de esquerda. A resposta é clara. O Estado teve todos os instrumentos para apurar isso e apurou de uma forma exacerbada, porque não puniu de acordo com a lei. Foi muito além: torturou, matou. Não cabe a nós, agora, revirar as lacunas que eles praticaram.
PRÓXIMOS PASSOS
Acho que o nosso recado na comissão ficou, e agora seria necessário haver uma repercussão maior. Uma das nossas recomendações é que seja criado outro órgão para o qual devem convergir todas as comissões municipais, estaduais, criadas em universidades e que estão empenhadas para que se dê seguimento ao trabalho realizado.
Fizemos muito pouco, afinal de contas foram mais de 40 anos de acontecimentos com os quais tivemos dois anos e meio para trabalhar. Acho que todas essas conclusões devem ser analisadas como um ponto de partida para a reconstrução do país.
JOSÉ CARLOS DIAS esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 14 de maio.
“O ADVOGADO É VOCACIONADO COM A DEFESA DA LIBERDADE, E NÃO COM A DEFESA DE VIDAS, MAS OS ADVOGADOS DE PERSEGUIDOS POLÍTICOS PASSARAM, MUITAS VEZES, A SER DEFENSORES DE MEMÓRIAS”