Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Poesia em transe


AUTOR DE UMA PRODUÇÃO ARTÍSTICA INTENSA E ENXUTA, TORQUATO NETO ESTEVE NO CENTRO DO MOVIMENTO QUE MUDOU OS RUMOS DA CULTURA BRASILEIRA NOS ANOS 1960


O jornalista Toninho Vaz se lembra da única vez que esbarrou em Torquato Neto, no teatro carioca Tereza Rachel, durante um espetáculo de música: “Ele estava na segunda fila da plateia, cercado de amigos, vestindo uma camisa de mangas compridas, justa, que lhe acentuava o aspecto raquítico do tórax”. A memória permanece forte, mas não houve conversa. “Não trocamos uma palavra, não havia motivo para isso, pois nem sequer tive a premonição de que seria seu biógrafo”, justifica o autor do livro A Biografia de Torquato Neto (Editora Nossa Cultura, 2013).

Nascido em Teresina no ano de 1944, o poeta e compositor também está na memória de muitos amigos, com um círculo que começou a se desenhar quando, aos 16 anos, mudou-se para Salvador. Na época conheceu Gilberto Gil, que logo se tornou companheiro de colégio e um de seus parceiros musicais. O jovem Torquato foi para a cidade certa. Nela fez amigos e construiu parcerias artísticas que o fizeram peça-chave do Tropicalismo.

Codiretor do Brazilian Studies Council da Tulane University, nos Estados Unidos, Christopher Dunn destaca, em seu livro Brutalidade Jardim – A Tropicália e o Surgimento da Contracultura Brasileira (Editora Unesp, 2009), que os artistas que articulariam o movimento tropicalista nasceram em pequenas cidades da Bahia e vieram de diversos contextos sociais e culturais. “Eles mantinham um vínculo ambíguo com o Nordeste em relação a como a região era vista nas cidades mais desenvolvidas. Mas eram cosmopolitas, acompanhavam o cinema nacional e internacional, escutavam as rádios e se inspiravam na bossa nova. Enfim, também estavam ansiosos para participar da modernidade e suas várias manifestações pelo Brasil”, explica. O especialista observa ainda que, depois de se mudarem para a Região Sudeste em meados dos anos 1960, ocasionalmente expressavam irritação com as percepções estereotipadas do Nordeste como uma região uniformemente rústica e empobrecida.

DE PASSAGEM
A mudança territorial de Torquato o levou para o Rio de Janeiro. Aos 17 anos foi hóspede do tio Jonathan, irmão de seu pai – Heli da Rocha Nunes –, que morava no bairro de Botafogo. Deixar a casa dos pais não foi fácil. A mãe, Maria Salomé, era professora primária e sofreu com a mudança do filho, mas não deixou de enviar a mesada e cuidar do menino, mesmo a distância. Depois de concluir o terceiro ano do curso científico no Colégio Ruy Barbosa, no largo do Machado, foi aprovado na graduação em Jornalismo no ano de 1963, na Universidade do Brasil (que a partir de 1965 passou a se chamar Universidade Federal do Rio de Janeiro).

O envolvimento com questões políticas começou cedo. Mesmo como estudante secundarista frequentava a sede da União Nacional dos Estudantes (UNE). A matrícula no curso superior só referendou seu contato com o meio estudantil e o compartilhamento de suas inquietações pessoais. “Viver no Rio, poder caminhar todos os dias por suas ruas e avenidas era a realização de um antigo sonho para ele”, enfatiza Toninho Vaz. “Torquato saboreava os detalhes do folclore cultural da cidade, sugestivamente apelidada de Belacap, o edifício onde morava Drummond, o botequim que Vinicius de Moraes frequentava, as caminhadas de Rubem Braga por Ipanema, as histórias fantásticas sobre Nelson Rodrigues. Ele costumava segui-los pelas ruas, parando sempre que necessário para olhar as vitrines, evitando ser notado”, comenta. Para o biógrafo, sem saber, Torquato estava criando o folclore que mais tarde alimentaria seu próprio mito, ao frequentar o Café Lamas, o TNC – Teatro Nacional de Comédias – e a sede da UNE, onde vários textos foram escritos. A Rua, um de seus primeiros feitos como letrista, data de 1967. Além de dedicar-se à prosa e a textos poéticos inflamados e combativos, Torquato despontou como um dos principais expoentes do Tropicalismo, autor de composições emblemáticas, entre elas Geleia Geral (o título da canção, apontada por Toninho Vaz como “uma espécie de hino das causas tropicalistas”, vem da expressão cunhada pelo poeta Décio Pignatari).

PERSONAGEM A SER DESVENDADO
Descrito pelos amigos e familiares como um cara doce e bem-humorado, a imagem pública de Torquato geralmente é vista sob um filtro nebuloso, um dedo indicador apontando para um homem misterioso, de personalidade intimista e dono de uma produção artística intensa e enxuta. Todas essas contradições estarão à mostra no documentário Torquato Neto, Anjo Torto, de Eduardo Ades e Marcus Fernando, com lançamento previsto para início de 2016. Ades conta que a primeira versão do roteiro foi feita há três anos, com base em muita pesquisa e gravação de depoimentos preciosos de Tom Zé, Gilberto Gil, Caetano Veloso, entre outros. “Pesquisamos muito e conversamos com as pessoas que conviveram com ele para ler a obra de Torquato e entender o que ele queria dizer por meio dela. Os depoimentos foram importantes nesse sentido. Em todos percebemos uma carga emocional muito grande, por conta do modo traumático que sua morte se deu (Torquato se matou em novembro de 1972, aos 28 anos)”, informa. Ades confirma que a experiência de ir fundo na obra do poeta mostrou o poder de enfrentamento dele diante do próprio contexto. “Fomos vendo que ele viveu intensamente e teve uma vida artisticamente produtiva curta, não chega nem a 10 anos de trabalho, mas é um momento de ebulição na nossa história cultural e política que ele ajudou a construir”, acrescenta.

MÚLTIPLO E INTENSO
Apesar de se consolidar como um movimento no âmbito da música popular, a Tropicália encontrou expressões no cinema, teatro, artes visuais e literatura, fato que favoreceu o florescimento da inovação artística durante um período de conflitos políticos e culturais no Brasil. Eram tempos de ditadura militar e atos institucionais, como o AI-5, de dezembro de 1968 – o mais duro deles, que dava poder de exceção aos governantes para punir arbitrariamente os considerados inimigos do regime. A situação motivou o autoexílio de artistas, entre eles Torquato, aconselhado a deixar o país. Em 1969, aproveitando a exposição Éden, do amigo Hélio Oiticica, na Whitechapel Art Gallery, em Londres, os amigos partiram de navio numa viagem que durou 14 dias. Torquato e Oiticica tiveram tempo suficiente para ler, sonhar e fazer festa, relata Toninho Vaz em seu livro.

Ligado ao que foi produzido durante o cinema novo, Torquato sentiu o gosto do cinema marginal por meio de Ivan Cardoso, cineasta que o convidou – quando já estava de volta ao país – para atuar como vampiro no filme no formato Super-8 Nosferatu no Brasil, de 1971. Cardoso observa que “as lembranças que têm de Torquato são bastante pessoais e restritas a um determinado período”, período este que ainda atrai muitos olhares estrangeiros, como o que resultou no livro de Christopher Dunn.

Na opinião de Ades, o músico participava das várias experiências de modo impetuoso. “Torquato se jogou em todas as expressões artísticas com as quais teve contato, era um pouco tímido apesar da personalidade combativa dos textos escritos, mas, ao mesmo tempo, ao se deparar com as tristezas, as vivia com muita intensidade”, analisa. “Se repararmos no aspecto depressivo dele, o lado sombrio é muito intenso, como era o lado festivo. Ele assumiu várias personalidades diferentes ao longo da trajetória.”

Reconhecido como multiartista, será que Torquato tinha consciência dessa multiplicidade de ações em vida? É possível saber como ele se relacionava com a sua própria arte? Na visão de Toninho Vaz, o contexto molda o personagem. “Torquato era um poeta formado numa linha jornalística numa época de muita agitação para a juventude de 1968. Ser letrista de músicas de sucesso, cineasta de bitola Super-8 ou editor da mitológica revista Navilouca era decorrência natural da sua habilidade com as palavras”, detalha. “Ele era consciente desse patrimônio sim, pois os ditames da Tropicália foram feitos de assertivas, de decisões unilaterais comuns aos espíritos determinados.” E assim, por escolha própria, Torquato fechou o ciclo pessoal e artístico. No entanto, seu trabalho se reconfigura na produção de outros artistas brasileiros e se destaca no contexto internacional, sendo um vasto território a ser explorado.


 


PRA DIZER ADEUS
Adeus/vou pra não voltar
e onde quer que eu vá
sei que vou sozinho
tão sozinho amor
nem é bom pensar
que eu não volto mais
desse meu caminho.

GO BACK
Só quero saber
do que pode dar certo
não tenho tempo a perder

GELEIA GERAL
O poeta desfolha a bandeira
e a manhã tropical se inicia
resplandente cadente fagueira
num calor girassol com alegria
na geleia geral brasileira
que o Jornal do Brasil anuncia

MAMÃE, CORAGEM
Eu tenho corações fora do peito
Mamãe, não chore
Não tem jeito

 

RECITAL ONÍRICO
O poeta e letrista piauiense foi homenageado com show e intervenções literárias

Torquato Neto esteve no centro do recital Sonhos de Torquato nos Jardins do Solar, que aconteceu no Sesc Vila Mariana no mês de setembro. O show contou com Guarabyra (foto), compositor e criador do rock rural brasileiro (ao lado de Sá e Rodrix), e com o escritor Toninho Vaz. Juntos mostraram criações do piauiense e de ex-moradores do Solar da Fossa, temas de livros do biógrafo. 

“Por meio da música de Guarabyra e das intervenções literárias de Toninho Vaz, o recital traz à tona uma memória afetiva e histórica de Torquato Neto”, contextualiza o técnico de programação do núcleo de música da unidade Felipe Torres.