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Nome popular: Abiu

Nome científico: Pouteria caimito. Origem: Amazônia Central e Mata Atlântica costeira. Amazônia e Mata Atlântica costeira? Que nada! Essa fruta amarela tinha mesmo era lá no quintal de casa, em Piracicaba, interior de São Paulo. Uma das melhores lembranças da infância.

Para meus olhos de criança uma árvore enorme, viva, cheia de frutos. Cresceu comigo, deu frutos comigo. E, quanto mais frutos dava, maior era a partilha. Amigos, família, vizinhos e quem quer que passasse na rua. Quase ninguém conhecia e eu adorava mostrar e ensinar como é que se comia. “Você conhece? Olha, está maduro, é doce... Mas não estranhe, gruda o lábio, cola na colher! Experimente.” E não é que agradava!

Havia abiu e carinho para todos. E é assim que eu achava que a vida deveria ser, dentro de casa, na rua, no trabalho, com a comida: abundante. Abundante em amor, na partilha, na troca.

Deixar comida no prato era errado. Jogar comida fora era desperdício. Bonito mesmo era o prato vazio refletindo a saciedade.
O tempo passou e levou o pé de abiu com ele. Suas raízes ficaram grandes demais para o piso do quintal.

Sabia que em algum momento eu também iria. E vim.

Enraizada nas lembranças do pé de abiu, vim trabalhar em um programa de combate à fome, ao desperdício e à má distribuição de alimentos – O Mesa Brasil Sesc. Dá um orgulho doce e maduro chegar ao final do dia e poder dizer: “A colheita foi boa hoje!”. E aí, bonito mesmo é o prato cheio.

A abundância, a partilha e a troca não são tão simples quanto me pareciam na infância, quanta contradição! Vai muito além disso, é complexo. O que antes era feito de forma intuitiva hoje faz parte de um grandioso processo de educação.

O mundo produz comida suficiente para alimentar toda a população do planeta, no entanto a fome ainda mata, e é dentro desse contexto que o desperdício de alimentos não pode ser tolerado em quaisquer de suas formas. Um desperdício que ocorre no plantio, na colheita, no transporte e embalagem, na forma de preparo, de servir, de dividir.

No Brasil, pode não soar tão estranho um homem condenado a cinco anos de prisão por ter roubado um pão, como no clássico Os Miseráveis, de Victor Hugo. Mas como entender que toneladas e toneladas de alimentos ainda são jogadas no lixo diante de tantos pratos vazios? Não é muito lógico em um país considerado “celeiro do mundo”.

Se por diversas vezes não conseguimos dividir ou distribuir o que já está produzido, por fatores que independem de nossa vontade, na minha modesta opinião, isso quer dizer que não somos bons com números, ou a circunferência da boca do lixo é mais atrativa do que a dos pratos, panelas, tigelas ávidas e famintas e o sinuoso caminho para chegar até elas.

“Quem tem fome tem pressa.”
Essa frase do sociólogo Betinho é a síntese do apelo daqueles que não têm comida para pôr no prato. A fome desespera; o corpo faminto não pensa, ou apenas pensa em matar a sua fome. Reage como bicho, deixando escassos os sentimentos, a identidade, a convivência social, referência de humanidade, espaço, afetividade, memórias e emoções. E aí cabem perfeitamente os estudos estruturalistas do antropólogo Claude Levi-Strauss quando propõe que as espécies alimentares não são apenas “boas para comer”, mas fundamentalmente “boas para pensar”.

Penso, logo insisto:
Há muito por fazer, mas, sobretudo, há o que fazer. E é isso que realmente importa.

Tenhamos pressa e a fome de realizar, vamos cultivar nossas árvores, deixá-las darem frutos, como meu querido abiu ou, como preferirem os teóricos, meu querido Pouteria caimito.

Na minha memória, a casa da infância ainda existe, passe aqui na rua, entre e sirva-se, o abiu é nosso e está maduro.


DANIELA CULLEN, formada em Nutrição e pós-graduada em Administração de Empresas, é coordenadora do programa Mesa Brasil do Sesc Piracicaba.