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Francisco Daudt

"Meu objeto de estudo e de interesse são as pessoas.” É o que relata o psicanalista Francisco Daudt, autor de A Criação Original – A Teoria da Mente Segundo Freud (7Letras), lançado em 2017, além de A Natureza Humana Existe – E Como Manda na Gente (Casa da Palavra, 2013), entre outros livros. Foi por causa desse interesse e curiosidade que, mesmo formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em 1971, e após ter exercido clínica gastrenterológica durante cinco anos, Daudt migrou para a psicanálise. E lá se vão quatro décadas dedicadas à investigação do que move e intriga o ser humano. Para falar sobre esse assunto, o psicanalista, que assinou uma coluna no caderno Cotidiano do jornal Folha de S.Paulo até dezembro passado, não se prende a jargões. De maneira simples e informal, ele expõe, nesta entrevista, reflexões acerca de relacionamentos versus tecnologia, amor romântico, intolerância e outros temas.

 

Foto: Leila Fugii

 

Há certo mal-estar nesta civilização tecnológica sobre o foco dos relacionamentos?

Tenho observado bem-estar e mal-estar porque a tecnologia é mais ou menos como a faca – a faca é uma tecnologia, é low tech, mas é tecnologia. E a faca tem usos bons e maus. Ela pode salvar vidas – nas mãos de um cirurgião – ou tirá-las – nas mãos de um assassino. Com a tecnologia acontece o mesmo: vai depender de quem usá-la. Vejo pessoas que usam o WhatsApp, por exemplo, como eu uso: a meu serviço. De vez em quando – o smartphone fica na minha mesa de cabeceira – eu vou lá checar. Uso o WhatsApp da mesma forma como usava o e-mail, mas vejo gente escravizada pelo aplicativo, gente a serviço dele. Fiquei sabendo, por um cliente meu, quando eu não tinha smartphone (o primeiro que comprei foi em maio de 2017), que ele teve de pedir mil desculpas à namorada porque levou cinco minutos para responder a uma mensagem dela. Ele estava no banheiro. Eu fiquei apavorado com isso. Que escravidão é essa? Nesse caso, é um tremendo mal-estar. Mas não foi a tecnologia que o trouxe, e sim o uso triste que a pessoa faz dela. A tecnologia é uma bênção e estamos envoltos nela. Tenho uma filha que morava em Cingapura, são 24 horas de viagem para chegar lá. E falava com ela todos os dias pelo Skype. Enquanto em 1982, tinha um amigo que morava em Paris e um dia cometi a atrocidade de bater papo com ele por telefone – 14 minutos de ligação que me custaram uma fortuna na época.

 

A presença forte da tecnologia tem feito com que a vida se transforme em contagem de minutos.
Será que essa ansiedade que é gerada preenche nosso tempo com obrigações?

Meu objeto de estudo e de interesse são as pessoas. E tenho um desejo para mim e para meus clientes: as pessoas se sentirão mais felizes com independência e autonomia. E autonomia significa poder fazer suas próprias regras. Então, autonomia para mim é poder olhar o WhatsApp três ou quatro vezes por dia e só. Colocar a tecnologia a meu serviço. Agora, você acha que uma pessoa que se deixa escravizar pelo WhatsApp só se deixa escravizar por ele? Nada. Ela está escravizada em várias outras frentes. Não é nem aquela história bonita de [Étienne de] La Boétie em Discurso da Servidão Voluntária [obra do filósofo francês que viveu no século 16 em que afirma ser possível resistir à opressão sem recorrer à violência] em que a decisão foi da pessoa. Se ela quisesse ser escrava porque pensou bem na vida e decidiu: tenho vocação para submisso, ok. Não tenho nada a ver com isso. Agora a pessoa ser absorvida sem saber por que entrou naquele mundo e de repente se ver como escrava? Quero ajudar essa pessoa. Você que está aí do outro lado, se você se sentir escravo, você tem um problema na vida. Esse tipo de submissão provoca essa infelicidade digital, esse incômodo: a pessoa está ligada na tecnologia e não nas pessoas a sua volta.

 

Nesse caso, as pessoas estão se engajando nas redes para marcar uma opinião própria ou apenas buscam reconhecimento do outro?

Foi cantada essa pedra pelo Nelson Rodrigues: o mal da atualidade é que “os idiotas perderam a modéstia”. Para qualquer coisa que a gente faça, é preciso reunir três condições básicas: motivação, meios e oportunidades. Então, essa motivação de se mostrar com pena de pavão, como alguém importante, essa motivação exibicionista, ela existe em todos nós. Por que as penas de pavão são importantes? Porque são atrativos sexuais – você está se exibindo e tornando-se mais desejável. Ok, a motivação está aí. E o que a tecnologia veio trazer? Meios e oportunidades de se exibir. As redes sociais são o local perfeito para exibir sua opinião. Daí, você vai opinar para mostrar algo para alguém. Isso serve ao vício da afirmação. Isso é compulsivo. Quem são os haters? São aqueles caras que se afirmam como superiores.

 

Por que há uma intolerância, um incômodo, com aqueles que são diferentes?

Nós contra eles. O que acontece é aquilo que a gente chama de Lei de Pedro Aleixo [um civil escolhido pelos militares, para mostrar que estes ainda prezavam pela democracia e que era esse o propósito do movimento de 1964, como vice-presidente do general Costa e Silva]. Até que Costa e Silva resolveu baixar o AI-5, a assinatura de “nós agora somos uma ditadura”. O que era antes uma ditadura “envergonhada” a partir do AI-5 virou uma ditadura escancarada. Quando Costa e Silva promulgou esse ato institucional, ele rodou pela mesa dos ministros e do vice-presidente para que endossassem e assinassem embaixo do AI-5. Quando chegou a vez do Pedro Aleixo, ele disse: “Não assino”. Aí alguém perguntou: “Mas, seu vice-presidente, você acha que o presidente vai fazer mau uso deste instrumento?”. E ele disse: “Não é o presidente que eu temo, mas, quando o arbítrio e o autoritarismo se instalam no topo da cadeia, eles descem em cascata até o guarda da esquina, e a esse eu temo. Então, não assino”. Por isso, a Lei de Pedro Aleixo é quando você tem alguém no topo da cadeia capaz de contaminar os outros, foi isso o que aconteceu. Pense em dois tempos separados, sem fazer nenhuma defesa necessária: viemos de uma inflação que já foi de 80% ao mês, depois veio o Plano Real, a inflação despencou e começou um círculo virtuoso no país. As pessoas já sabem o valor das coisas, há um tipo de contaminação que desce em cascata, que respeita valores democráticos – uma espécie de orgulho de cidadania. A tecnologia entra aí como meio e oportunidade, mas a motivação principal não é a tecnologia.

 


Natureza e biologia são
as nossas principais influências.
Tecnologia vem lá em quinto lugar

 

Essa indisposição contamina? Você observa isso dentro e fora do seu consultório?

Essas disputas sobre as quais falei ficaram mais exacerbadas. Houve uma espécie de fanatização que serve a esse processo de raiva ao qual se refere. Aquela história islâmica: morte ao cão infiel, morte a quem não acredita. Isso é o topo da raiva – matar quem não é igual a gente. Isso é da condição humana: temos horror do diferente. O ser humano tem horror de quem não é da sua família, de quem não é da sua tribo, que é uma espécie de extensão da família. Somos programados pela genética ancestral a ter 200 pessoas como tribo, caçadores-coletores. Esse negócio de andar pela rua passando por gente que você não conhece, isso é uma coisa artificiosa da grande cidade. Uma grande tolerância nossa que tem de ser garantida pelo Estado, que deve e precisa ter o monopólio da segurança. Como vemos agora o Rio de Janeiro, abandonado neste setor, espalha-se o medo. Porque a condição de barbárie de origem, de cada um por si, de mata-mata, começa a se espalhar. Vivemos nesse acordo social em que, se existe um governo em que você confia, tolera-se conviver com o diferente. Caso contrário, a gente começa a odiar.

 

Foto: Leila Fugii

 

Essa nova opinião pública que se manifesta prontamente pelas redes, o que há de positivo?

O positivo, curiosamente, é uma extensão de um mal falado instituto dos relacionamentos humanos: a fofoca. A fofoca nada mais é que uma troca de informação interna: “Sabe aquele laboratório, ele faz isso e aquilo, não compre dele”. Esse ciclo de informação pode ser precioso. Mas a rede social pode funcionar para o bem e para o mal. Por isso, usar as redes para manifestar opinião pública, coisas que não vão sair no jornal, mas vão sair na rede. Isso é positivo.

 

Para qualquer coisa que a gente faça,
é preciso reunir três condições básicas:
motivação, meios e oportunidades

 

Há uma reação conservadora às novidades trazidas pela modernidade?

Os conservadores têm reação a pessoas que se valem de uma suposta superioridade por algo que é de modismo. Então, tem alguém ali dizendo que é formidável porque é politicamente correto, formidável porque apontou o racismo no outro. Isso vai deixando, de uma maneira geral, uma raiva e quando há a oportunidade deságuam essa raiva votando em conservadores como Donald Trump, que é a coisa mais assombrosa que os Estados Unidos produziram. Computo isso como uma reação a essa onda de ofendidos politicamente corretos. O fato de as pessoas não poderem fazer nada, pois o outro se ofende com qualquer coisa, levou a uma pausa na defesa dos direitos democráticos para haver a defesa dos sentimentos. Todo mundo tem sentimentos muito suscetíveis. E aí começou uma irritação com esses ofendidos – e o resultado é o Trump. Por isso que pai careta tem filho hippie, e pai hippie tem filho careta, porque eles reagem em cadeia.

 

Hoje se discute muito o novo papel do homem na sociedade e nas relações. Qual sua observação acerca desse cenário?

Mas que homem? Existe basicamente essa coisa: a negação da natureza. As mulheres continuam engravidando e os homens não. Esse é o traço biológico mais marcante. Você não disse que a tecnologia molda o homem? A biologia molda o ser humano de uma maneira mais marcante ainda. O fato de uma mulher engravidar e um homem não faz com que o comportamento sexual dos dois seja muito diferente. O homem poder engravidar e sair correndo, e a mulher engravidar e ficar prisioneira daquele ato durante anos. Isso faz toda a diferença do mundo. Sabe que nossa espécie tem uma coisa que é rara entre os mamíferos, acho que somos únicos: o investimento do macho na cria.

 

O que seria esse investimento do macho na cria?

Uma mulher tem um filho, o homem não vai embora, ele ajuda, põe dinheiro em casa, põe alimento, cuida daquela criança, divide com a mulher o cuidado com aquela criança, ampara os dois, defende os dois, alimenta os dois. Isso é investimento do macho em sua cria. Isso é raro na natureza. Na nossa espécie, o bebê é completamente incapaz durante anos. Agora, você pega um cavalo: quando ele nasce, não leva nem duas horas e está de pé e mamando. Então, é essa condição biológica que novamente vai moldar vários dos nossos comportamentos sociais e sexuais. A mulher vai funcionar de um jeito e o homem de outro. O homem precisa ser convencido a investir naquele filho. De que maneira? Pelo amor que o filho desperta nele. O amor, nesse caso, serve como instrumento de sobrevivência. Dentro da nossa espécie, o sentimento de ligação amorosa serve de instrumento de sobrevivência dos filhos.

 

Então, autonomia para mim é poder olhar
o WhatsApp três ou quatro vezes por dia e só.
Colocar a tecnologia a meu serviço

 

No seu consultório ainda existe a expectativa do príncipe encantado? Do amor romântico?

Claro. Isso faz parte da nossa espécie. Tanto que estou dizendo que é o amor romântico que compromete o homem a ajudar a cria. Isso é seleção natural. O amor romântico não desaparece. Esse encantamento, essa coisa, a paixão não desaparece. É curioso se você for ver em termos de seleção natural que a paixão tem um prazo de duração de três, quatro anos. Que tempo é esse? O tempo para a cria poder se virar sozinha minimamente. Então, historicamente, a ajuda do homem se deu justamente durante o período crucial que a cria era extraordinariamente dependente e a ajuda de que a mulher precisava era imensa. Então, nossa programação foi moldada para uma ligação com uma mulher e sua cria que dura três, quatro anos. Depois disso, a criança está em pé e já pode seguir o grupo nômade e o homem já pode diminuir sua participação no negócio.

 

Essa quantidade de pessoas ao redor dos 40 e 50 que moram sozinhas ou procuram morar sozinhas mesmo que estejam se relacionando: o que pensar sobre esse fenômeno?

Isso é uma coisa que a sociedade abriu como possibilidade. Mas também é algo cíclico. Na Inglaterra, o solteirão é uma instituição. Agora, o cara que se separou e agora mora sozinho, ele geralmente é uma pessoa que descobriu que morar junto é um inferno mesmo. Uma coisa é você namorar, outra coisa é morar junto. Aí a pessoa mora sozinha e toma gosto. O que vai fazer: “Cada um em sua casa”, diz para a namorada. Porque sabe que isso de morar junto não é fácil. Então, há pessoas usufruindo de uma categoria social que lhes é favorável e que é a possibilidade de morar sozinho sem ninguém torcer o nariz. Isso serve para homem e para mulher. Antes, falava-se de uma mulher morando sozinha: “Aí tem”. Olha que beleza, olha que conquista maravilhosa.

 


Esse tipo de submissão provoca
essa infelicidade digital, esse incômodo:
a pessoa está ligada na tecnologia e não nas pessoas a sua volta

 

Você vê isso como um ganho na sociedade, não como uma disfunção?

Acredito que isso seja um ganho, mas o que estou dizendo não exclui a existência disso [da solidão]. Não é por causa da impossibilidade de relacionamento que as pessoas estão sozinhas. Há muitas categorias sociais que são bem acolhidas e aceitas, como o cara que é sozinho, mora com outro cara, ou a mulher que mora com outra mulher numa república. Graças a Deus isso existe, ainda bem, é ótimo.

 

Sobre a família estendida de hoje: vários casamentos, dois pais, quatro avós... Isso é um ganho?

Por certo. Disso não temos dúvida alguma. Essa é uma reinvenção da nossa ancestralidade. Havia fazendas em que moravam cinco, seis famílias numa mesma casa. Nela, um filho se identificava muito mais com uma tia, que logo escolhia um determinado sobrinho como filho. Havia várias possibilidades de adultos como referências. Isso não é desvantajoso, nem é novidade. Não vou ficar dizendo que isso ou aquilo é o certo, mas uma das categorias sociais bem-aceitas que têm vantagens é a grande família. A redução do número de filhos é muito engraçada, pois a mãe natureza a se revolta contra isso. Você agora só tem dois filhos, aí sua filha adolescente engravida e tem mais um filho dentro de casa. Como se ela tivesse trazido um irmãozinho e não o filho dela para a mãe/avó criar. Você não luta contra a natureza, e, se luta, ela te dá uma volta a galope. Natureza e biologia são as nossas principais influências. Tecnologia vem lá em quinto lugar.

 

 

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