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Miguel Nicolelis
Codiretor do Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, o cientista Miguel Nicolelis promove uma revolução no meio acadêmico internacional. Por meio de experimentos, tem conseguido, junto com sua equipe, mapear as atividades elétricas do cérebro de animais e traduzi-las em movimentos robóticos – passo importante no desenvolvimento de tecnologias eficazes a ser empregadas em pessoas com quadros de tetraplegia grave.
Formado em Medicina pela Universidade de São Paulo (USP), em 1984, obteve reconhecimento máximo da sociedade científica ao receber, em 2010, o Director´s Pioneer Award, do National Institutes of Health. O cientista diz acreditar no poder transformador da educação por meio da ciência, fato que o fez criar o Instituto Internacional de Neurociência de Natal. “Queria algo que envolvesse a população e demonstrasse para o entorno que a ciência tem, sim, o poder de alavancar uma transformação social muito grande”, revela Nicolelis em entrevista à Revista E.
Você e sua equipe têm trabalhado na possibilidade de fazer com que um tetraplégico ande na abertura da Copa do Mundo no Brasil. O que é preciso para que isso de fato ocorra?
Eu e minha equipe temos conversado com o governo brasileiro, porque, para isso, precisamos montar uma estrutura no Brasil, um time para trabalhar dentro desse projeto de três anos em parceria com consórcio internacional. Estamos trabalhando já há algum tempo nessa ideia.
Nós já temos o apoio do Ministério da Educação e do Ministério da Ciência e Tecnologia e estou à espera de uma audiência com a presidente Dilma Rousseff, a fim de anunciar esse projeto como um objetivo do Brasil em mostrar ao mundo que a ciência brasileira tem muito a contribuir, além do futebol. Cientificamente é possível. O que falta é traduzir para a prática clínica e aplicar a tecnologia que foi utilizada em macacos em seres humanos.
Essa tecnologia consiste em usar a atividade elétrica do cérebro para controlar um vértice robótico que está sendo construído para fazer com que se adquiram os movimentos do corpo sobre o controle voluntário do paciente. Precisaremos de um grande esforço dos cientistas brasileiros e estrangeiros que irão trabalhar conjuntamente, mas, do ponto de vista teórico, nós temos os elementos para lidar com isso.
Você realizou uma experiência com um macaco, na Universidade de Duke, em que o animal comandava, por meio da força do pensamento, um robô no Japão. De forma leiga, como traduzir esse acontecimento?
Realizamos a demonstração de que se podem registrar os pensamentos motores produzidos por um animal que estava andando numa esteira de exercício – a atividade elétrica do cérebro do animal estava produzindo os movimentos dos pés e pernas dele próprio.
Nós registramos uma fração dessa atividade, decodificamos os comandos motores e remetemos isso para o Japão, para que o robô pudesse andar sobre os controles dos comandos cerebrais do macaco. Nós mostramos que isso era possível, que o robô andou e que conseguimos manter o macaco controlando esse robô a distância, mesmo quando desligávamos a esteira e o macaco não se mexia mais.
Nós mostramos que é possível estabelecer essa ligação cérebro-máquina através do mundo e fazer essa operação ser contínua, de tal maneira que os pensamentos motores desse macaco pudessem ser materializados pelo corpo do robô.
Do ponto de vista científico, essa ligação cérebro-máquina, ou seja, a força do pensamento, já tinha sido provada de maneira tão contundente?
Essa foi a primeira demonstração feita a distâncias tão longas e em um comportamento tão complexo. Nós já tínhamos feito demonstrações prévias em ratos e macacos, mas foram demonstrações mais circunscritas, com os braços mecânicos próximos do animal e comportamentos mais restritos. Mas essa foi a demonstração verdadeiramente completa a distância.
Havia três variáveis definidas: o espaço, ou seja, por que o pensamento comandou diretamente um artefato do outro lado do planeta. A força, isto é, por que esse macaco de 15 quilos comandou um robô de 150 quilos. E o tempo que levou a atividade do cérebro para que se pudesse controlar o robô. O processo foi mais rápido do que o tempo necessário para o macaco controlar a própria perna com o mesmo pensamento. A gente mostrou o potencial dessa tecnologia.
Na possibilidade de levar o tetraplégico para a Copa do Mundo, ele vestiria uma roupa especial que devolveria seus movimentos?
A roupa chama-se exoesqueleto. É uma veste robótica, de corpo inteiro, em que há controladores e motores que estão sob controle dos sinais que vêm do cérebro do paciente e que são decodificados e transformados em comandos digitais. A pessoa imagina como ela quer andar e esse pensamento leva à locomoção e ao movimento da veste robótica, que carrega o corpo do paciente.
Ou seja, como se fosse uma ligação direta em que o pensamento motor faz com que essa veste robótica execute os movimentos necessários para que o paciente volte a ter autonomia tanto para andar quanto para agarrar objetos com suas mãos. Essa veste é um protótipo para realizar as primeiras demonstrações e devolver aos pacientes os primeiros movimentos.
Mas o objetivo final, que vai levar alguns anos, é que essa veste seja transformada numa roupa de material bem leve, que mude de configuração dependendo da corrente elétrica revertida pelo cérebro e que ofereça a rigidez necessária para sustentar o corpo. A nossa ideia é criar um corpo robótico que substitua o corpo do paciente que não pode mais ser ativado, porque essa veste vai ter elementos de reabilitação motora.
Cada vez que ela se contrair e realizar movimentos, estimula a musculatura do paciente, melhorando as condições do corpo e prevenindo efeitos colaterais que podem até ser fatais para pacientes que sofrem de quadriplegia severa. Vai demorar muito para chegar ao estágio de aparência de pele. Mas é como se fosse um outro corpo, um corpo que o cérebro terá a capacidade de incorporar como sendo o novo corpo do paciente. O cérebro tem que mapear esse corpo como se ele fosse original. E é esse nosso intuito.
O que significa a força do pensamento? Você tem mostrado cientificamente que a força do cérebro move as coisas...
Esse é um termo de que nós, cientistas, não gostamos muito, porque não existe uma força. O cérebro, na verdade, cria um campo magnético. O que estamos fazendo é ler o campo elétrico que contém comandos que o corpo entende, porque o corpo reconhece esses estímulos elétricos quando os membros transmitem-nos para os músculos.
E estes, por sua vez, são capazes de transformar essa atividade elétrica em trabalho motor. O que estamos fazendo é criar um desvio computacional eletrônico e robótico que permite ler esses sinais elétricos e decodificar os comandos motores que o corpo usaria.
Só que, como estamos empregando robôs, temos que transformar essa linguagem em uma linguagem digital – fazer uma tradução desses sinais. Na verdade, não é a força do cérebro, mas a informação contida nessa capacidade elétrica do cérebro que estamos tentando ler e transmitir a um artefato mecânico, para que permita à pessoa realizar movimentos que o corpo dela não pode mais fazer.
Sua experiência leva a crer que a “força do pensamento” resulta em feitos grandiosos, não?
A gente abre a possibilidade de conseguir meios de superar os limites físicos do corpo, principalmente para pacientes que sofrem algum tipo de doença que limita a atividade corpórea. O objetivo final dessa pesquisa é tentar superar esses limites, extraindo da fonte de informação o que o indivíduo pensa – e usar isso para atingir a atividade motora.
É uma terapia que visa restabelecer o potencial motor completo do paciente. Volto a dizer que o que existe contido nesse tipo de atividade elétrica é informação. E informação é proporcional à energia. O cérebro capta energia para produzir, transmitir e usar a informação para objetivos voluntários.
Quando pensamos em nos mover, criamos um programa que reflete o desejo de realizar um objetivo motor. O que desenvolvemos foi um método que precisa ler uma fração desses sinais – porque não conseguimos ler milhões de células. Lemos apenas umas centenas e, com essa amostragem, tentamos reconstruir o desejo motor do paciente. De certa maneira, estamos tentando extrair a informação contida nessas células.
É possível usar o cérebro de uma pessoa após a morte?
Não dá para retirar o cérebro de um corpo. Ele precisa do oxigênio e de todos os metabólicos que um corpo gerencia para poder viver. A relação intrínseca do cérebro com o corpo não tem como ser separada. Mas pode-se transmitir a atividade elétrica de um cérebro para um outro. Estamos tentando fazer isso com animais.
O que estamos fazendo em experimentos é ler um sinal elétrico do cérebro do animal que está em atividade – provando um gosto, tocando um objeto – e registrar a atividade elétrica da percepção do animal. Daí, esses sinais são transmitidos para outro animal que está parado.
A pergunta é: podemos transmitir esse sinal elétrico e fazer com que o segundo animal sinta a mesma sensação do primeiro? Essa experiência chama-se interface cérebro-cérebro.
Do ponto de vista da permanência e da longevidade, caso o cérebro esteja bom e o corpo enfermo, há uma fórmula para a pessoa viver mais do que o corpo suporta?
Na verdade, você tem que ter a vida biológica do corpo, senão o cérebro morre. Sem a sobrevida do corpo não existe nenhuma tecnologia que permita deixar o corpo vivo. Agora, o cérebro tem uma longevidade biológica determinada. Desde os dezoito anos, começamos a perder células.
E, a partir de certo momento, essa perda começa a ficar acentuada, porque não produzimos neurônio para repor. É muito complicado, depois de certa idade, manter a viabilidade do cérebro. Os cientistas terão de descobrir fórmulas para manter esses neurônios vivos durante algum tempo, para poder viabilizar uma existência mais longa.
Você desenvolve pesquisas sobre a relação do Mal de Parkinson com a esquizofrenia. Como descobriu essa ligação?
Temos, no laboratório, camundongos transgênicos com perfil genético alterado, e nós conseguimos ou aumentar ou diminuir a dopamina – um transmissor químico do cérebro – a partir de manipulações farmacológicas. Começamos a ver que, no mesmo animal, se reduzíssemos a dopamina a um nível muito baixo, teríamos uma síndrome parksoniana.
E, se aumentássemos a dopamina muito rapidamente, teríamos uma síndrome similar à psicose. Isso mostrou a ligação próxima das doenças – era só mudar a concentração de um químico que era possível ir de um extremo ao outro muito rapidamente.
Começamos, então, a estudar as relações de diferentes doenças e estamos chegando a conclusões muito interessantes, que espero publicar nos próximos meses, sobre a interligação das doenças neurológicas e psiquiátricas. Uma das teorias que estamos estudando é que todas as doenças do cérebro são doenças do tempo de disparo dos neurônios.
São doenças dinâmicas, ou seja, todas derivadas da doença central do cérebro: a epilepsia – nada mais do que a atividade síncrona de grandes núcleos neuronais patológica, ou seja, quando todos os neurônios começam a disparar ao mesmo tempo, entra-se numa crise epilética, perde-se a consciência. Nós temos observado que a maioria dessas doenças neurológicas são diferentes tipos de epilepsia, de uma epilepsia profunda que é difícil de detectar, pois os métodos científicos medem as atividades superficiais do cérebro.
Os sintomas são gerados por diferentes padrões de sincronia neuronal. E isso é uma descoberta inesperada. Já publicamos uns dez trabalhos sobre o assunto e, agora, queremos propor uma unificação de várias dessas moléstias pertencentes às diferentes categorias de epilepsia.
Qual o sentido prático dessa descoberta para quem sofre desses males?
A neurologia e a psiquiatria, a partir do início do século 20, foram separadas por completo. É muito difícil um psiquiatra falar com um neurologista. E, na verdade, trata-se de uma coisa só. E propomos que isso seja revisto. Partindo desse princípio, as terapias que deverão ser buscadas para as doenças serão muito diferentes. Tentaremos tirar o sistema nervoso dessas crises epiléticas.
Iria-se buscar outras formas, não só medicamentais. Buscar mudar diferentes formas de estimulação do cérebro que pudessem quebrar crises epiléticas profundas. Vimos nos nossos camundongos, aqueles que tinham uma síndrome obsessiva compulsiva, que isso também era mediado por outro tipo de epilepsia.
Em que medida suas pesquisas sobre saciedade encaixam-se nesses experimentos?
Temos há 17 anos um grupo, dentro do nosso laboratório, que trabalha com gustação – como o cérebro codifica a resposta à ingestão de alimentos e à percepção de gostos. Registramos várias áreas do cérebro, inclusive o sistema límbico, porque, como todos sabem, a experiência gustatória é uma experiência que desperta muitas emoções interessantes: repulsa ou prazer.
E nós começamos a descobrir que conseguíamos medir o estado de saciedade do cérebro e prever quando um animal iria parar de comer ou iniciar uma refeição, com base na atividade elétrica do cérebro. Nós tivemos vários trabalhos que mostram como o sistema regula a ingestão de alimentos e como o prazer, associado à ingestão de alimentos, é essencial na codificação do gosto, do olfato. Na realidade, toda a experiência gustatória acontece primeiro no cérebro.
A predisposição genética influencia também a forma como o cérebro funciona, como os diferentes hormônios são secretados. Existem vários fatores hormonais que trabalham na saciedade, e as operações na produção desses hormônios alteram completamente os hábitos alimentares. As lesões, alterações ou tumores no hipotálamo, por exemplo, são devastadores na questão alimentar – desde ocasionar a inanição até fazer a pessoa comer sem parar.
Há um conceito que você trabalha chamado brain net. O que significa?
A ideia que discuto no final do meu livro é a de que, em um futuro remoto, quando conseguirmos ler a atividade do cérebro e disseminá-la para outro cérebro, poderemos estabelecer um contato entre seres humanos que independa de computadores e teclados – será uma interface direta, uma transmissão de mente a mente. Mas esse cenário será em um futuro muito remoto.
Do ponto de vista teórico, nós já conseguimos vislumbrar a possibilidade. Mas não temos os meios tecnológicos para implementar essa ideia ainda. Se isso um dia ocorrer, podemos imaginar como ampliaria dramaticamente a interação social, que é tão importante para a nossa espécie. Entraríamos em contato com milhões de pessoas em tempo real.
Você dirige um laboratório na Universidade de Duke, nos Estados Unidos, e, ao mesmo tempo, já atuou no Brasil. Gostaria que você fizesse um paralelo com a ciência brasileira.
As universidades americanas estão sofrendo uma crise razoável. Eu peguei o final do processo áureo de 20 anos atrás e tenho observado a gradativa degradação do modelo americano, que era o melhor do mundo. Lá somos empreendedores científicos.
Cada laboratório é dirigido por um professor e sua equipe tem de ir atrás dos recursos – a universidade oferece subsídios apenas genéricos. Como o processo de seleção é muito bem feito e como a estrutura inicial oferecida é muito boa, as universidades têm um poder muito grande se comparadas às nossas. Mas não é o paraíso que as pessoas imaginam.
Há uma competitividade muito grande; compete-se com gente de nível muito alto, e temos que nos virar. Temos que buscar recursos para as pesquisas. A universidade dá dinheiro no início, mas a expectativa é de que não só paguemos esse dinheiro em seis anos, mas que proporcionemos retorno pelo dinheiro investido. Então, a pressão é muito grande.
Você saiu do Brasil por qual razão?
Quando comecei a fazer algumas coisas que tiveram destaque nos Estados Unidos, as portas na Universidade de São Paulo começaram a se fechar quase instantaneamente. Pelo receio da minha volta e como isso iria impactar o departamento onde eu estava filiado. E também porque não havia condições econômicas de financiar esse trabalho nem mesmo tecnológicas.
E, nos Estados Unidos, nosso laboratório ganhou, em 2010, três prêmios que são os maiores do instituto de pesquisa na área de biomedicina. Então, atualmente, nosso trabalho é muito reconhecido. Agora, a crise financeira americana é real, e a dificuldade de conseguir recursos é grande, hoje em dia.
Qual é a sua visão sobre educação brasileira?
A educação brasileira nunca foi olhada com prioridade, porque foi uma concessão da classe dominante para produzir gente para atuar no mercado de trabalho. À medida que o país industrializou-se, houve a necessidade de oferecer um mínimo de educação para que as pessoas pudessem trabalhar na indústria. A educação é fundamental para a soberania do país neste século.
Só agora estamos abrindo a mente para isso. Temos que correr atrás de um prejuízo gigantesco em relação a outros países. E, enquanto a educação não for uma prioridade da sociedade brasileira, vai ser muito difícil alcançá-los. Não há governo que consiga isso sem engajamento da sociedade civil.
Como você lida com o tema da morte?
O prazer de atuar como cientista é poder vasculhar o desconhecido. Você está sempre desafiando o desconhecido e buscando novas fronteiras. Agora, em relação à morte, lidar com sua inevitabilidade é clara. A minha relação com a morte é extrair da vida o máximo que eu puder encontrar. Poder viver o mais intensamente possível. Porque a grande aventura da vida é extrair dela o máximo possível.
“Uma das teorias que estamos estudando é que todas as doenças do cérebro são doenças do tempo de disparo dos neurônios. São dinâmicas, ou seja, são todas derivadas da doença central do cérebro: a epilepsia”
“[…] quando conseguirmos ler a atividade do cérebro e disseminá-la para outro cérebro, poderemos estabelecer um contato entre seres humanos que independa de computadores e teclados – será uma interface direta, uma transmissão de mente a mente”
“A neurologia e a psiquiatria, a partir do início do século 20, foram separadas por completo. É muito difícil um psiquiatra falar com um neurologista. E, na verdade, trata-se de uma coisa só”
“A educação é fundamental para a soberania do país neste século. Só agora estamos abrindo a mente para isso. Temos que correr atrás de um prejuízo gigantesco em relação a outros países”