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Grandes fábulas para pequenos leitores

Ilustrações: Marcos Garuti

Escolher histórias para as crianças é um desafio e tanto. O primeiro contato com o universo da literatura é essencial para a formação de leitores criativos que saibam desfrutar essa experiência única. Com a ascensão do livro infantojuvenil no mercado editorial brasileiro, a dúvida na hora de levar para casa obras que incitem a inteligência e a imaginação dos filhos torna-se ainda maior devido à quantidade de títulos na prateleira. Os escritores Marco Catalão e Pedro Marques comentam, em artigos inéditos, as formas da arte literária que mais agradam à criançada.


Lírica infantil: o primeiro toque
por Pedro Marques


A lírica é um dos primeiros sopros da poesia ocidental. Tão velha quanto os poemas homéricos e anterior ao teatro grego, nasceu a partir de uma base poética, musical e coreográfica. Esse triângulo pouco equilátero atravessa os séculos, ora expandindo, ora retraindo seus lados.

Definidora, tal triplicidade também a posiciona, até o século 19, num lugar secundário entre gêneros, onde o verbo é centro expressivo: épica, tragédia, diálogo, epístola, confissão, história, sermão, romance. Quando favorece a palavra, a lírica anima maquinarias rítmicas, voltas linguísticas e semânticas sem igual. É a poesia gravada em papel, do soneto ao verso livre, cantando e dançando na língua.

Se privilegia o som, conforma-se à melodia de árias ou canções, à entonação de narrativas orais. Preferindo o movimento, serve aos rituais religiosos, festivos, da lida. Por isso, pode ser estudada por teorias da literatura, música, corpo, antropologia ou etnografia. A canção folclórica e a de consumo são, portanto, expressões líricas. Verdade que o lado poético do triângulo pode ser aí menos desenvolvido. Mas lá está ele numa farra do boi, repleta de cores e gestos.

Lá está o texto emocionando a multidão no show de luzes. Nesse chão, em que o Brasil brota os mais diversos frutos, também viceja um tipo de canção capaz de iniciar gerações. Já antes de alfabetizadas ou letradas, nossas crianças encontram esse material por áudio, vídeo e, depois, texto. Penso na lírica musicada que, independente de educação formal e segmentos de mercado, prepara a molecada para a literatura.

Canção repetida nos primeiros anos de vida. Lúdica na linguagem, simulado da silabada infantil, às vezes sem pé nem cabeça, melodia chiclete que gruda na mente. Em Acabou Chorare (1972), de Moraes Moreira e Galvão, o jogo sonoro encarna o dengo de boca que acalma bebê: “Acabou chorare, ficou tudo lindo / De manhã cedinho, tudo cá cá cá, na fé fé fé / No bu bu li li, no bu bu li lindo / No bu bu bolindo / No bu bu bolindo / No bu bu bolindo”. Daniel Azulay (Xá-xé-xi-xó-Xuxa, 1984) usa o próprio abecedário para fixar o nome Xuxa.

Depois da escola, aquela que viraria “rainha dos baixinhos” é a recompensa, o sorvete: “Xá-xé-xi-xó-Xuxa estou contente porque agora eu vou te ver / Xá-xé-xi-xó-Xuxa / Passei o dia esperando por você // Passei o dia / Recitando o A.B.C. / D.E.F.G.H.I.J. pra você / No fim da linha / Encontrei uma letrinha / Que nem asa de andorinha / Pra cantar meu A.B.C.”.

Brincadeira tradicional, o trava-língua leva o caboclinho a treinar intelectual e fisicamente a fala. Edu Lobo e Paulo César Pinheiro, em Bate-boca, do Rá-Tim-Bum (1989), fazem uma colagem do material popular que desafia até marmanjo: “O peito do pé do pobre padre / padre Pedro é preto. / Tem um tigre, tem dois tigres / tem três tigres tristes / num ninho de mafagafo / cheio de mafagafinhos. / Desmafagador será quem os desmafagar e / na grade da gruta um grupo grande / de gringo gripado / grande gruta grade grega gringo grogue / Olha eu quero ver qual de vocês / consegue agora repetir tudo outra vez”.

Há canções que descrevem festa. Entregue ao folguedo oposto ao mundo das obrigações, a criança brinca e o adulto pode entrar na dança. O padrão desenha-se em Ciranda cirandinha. Cantiga gravada em nossa cultura, chama ao grupo, exigindo de cada participante a contribuição individual: “Por isso, dona Rosa / Faz favor de entrar na roda / Diga um verso bem bonito / Diga adeus e vá-se embora”. A Banda (1966), de Chico Buarque, simboliza esse flash de alegria contra a rotina que, ao final, é restabelecida: “E cada qual no seu canto / Em cada canto uma dor / Depois da banda passar / Cantando coisas de amor”.

Em Superfantástico (Ignácio Ballesteros e Difelisatti, versão de Edgard Poças, 1983), a Turma do Balão Mágico incita toda gente ao voo da folia: “Vamos fazer a cidade / Virar felicidade / Com a nossa canção / Vamos fazer essa gente / Voar alegremente / No nosso balão!”. Paulinho da Viola convoca quem quiser já dançando com os lábios: “Bebadosamba, bebadachama / Também”. Ciranda, banda, balão e samba celebram, assim, o divertimento, o pequeno carnaval da brincadeira, o convite à viagem coletiva.

Bichos não faltam. Há jogos, como a parlenda do jacaré, cantada e gesticulada: “Jacaré passeando na lagoa / Viu um peixinho / Abriu a boquinha e / Nhoct, nhoct, nhoct”. Em 1960, João Gilberto (O Pato, de Jayme Silva e Neuza Teixeira) traz um quarteto de aves a formar o conjunto vocal: “O Pato vinha cantando alegremente, quém, quém / Quando um Marreco sorridente pediu / Pra entrar também no samba, no samba, no samba / O Ganso gostou da dupla e fez também quém, quém, quém / Olhou pro Cisne e disse assim ‘vem, vem’ / Que o quarteto ficará bem, muito bom, muito bem”. Há canções à maneira das fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine.

Animais que encenam comportamentos reforçados ou ridicularizados. O Pato (1980), de Vinicius de Moraes e Toquinho, ensina que criança que apronta acaba mal: “Tantas fez o moço / Que foi pra panela”. O Leãozinho (Caetano Veloso, 1977) repete sons e melodias a adormecer não só menina: “Um filhote de leão, raio da manhã / Arrastando o meu olhar como um ímã / O meu coração é o sol, pai de toda cor / Quando ele lhe doura a pele ao léu”. Há o gorila, o leão e a arara tristes no Zoo (2000), de André Abujamra e Theo Werneck. Eles clamam por liberdade, querem seu habitat, não a vitrine viva: “Tira os bichos do zoo / Põe o homem na jaula / Põe o homem nu”.

Versos que educam sem livro didático pastoso e professor reprodutor. Versos que antecipam o turbilhão da curiosidade, tipo o que registra Paula Toller em Oito Anos (2004), na interpretação de Adriana Partimpim: “Por que que a gente espirra? / Por que as unhas crescem? / Por que o sangue corre? / Por que que a gente morre?”.

Em ritmo de palavra-?-atrai-palavra e todo mundo batucando, Criança não Trabalha (1998), de Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, enumera direitos da criança. Levanta-se contra o trabalho infantil: “Criança não trabalha / Criança dá trabalho”. Deixa o menino brincar (1965), pediria Jorge Ben Jor. Mas a vida não é só curtição, moleque precisa cumprir tarefas diárias, como tomar banho.

Em Ratinho Tomando Banho (1995), de Helio Ziskind para o Castelo Rá-Tim-Bum, o animal de esgoto ensina a cuidar da toalete, lavando da orelha ao pé, passando pelo “fazedor de xixi”. Já a rapaziada do Matéria Rima, no rap ?Livro um ler que por (Joul, 2005), manda um recado à galerinha que não dá a mínima para a leitura: “Por que ler um livro? Ah, te digo já / Abra, sente-se, vamos viajar / Do começo até o fim, Via-Láctea / Turbilhões de emoções, lendo obras de Camões / Nesse veículo sem botão que te leva pra outra dimensão”.

E o Grupo Último Tipo, no musical O Livro de Rebeca (2009), segue no incentivo: “O livro é assim: / Tem choro, tem riso, tem sonho, tem fim”. Lendas brasileiras e estrangeiras repercutem na canção que prepara futuros leitores. Na quadrinha popular, a bruxa Cuca põe medo em quem não quer dormir: “Nana nenê / Que a Cuca vem pegar / Papai foi na roça / Mamãe foi trabalhar”.

Ela aparece no sítio de Monteiro Lobado, na música que Geraldo Casé, Waltel Branco e Sylvan Paezzo escreveram para a adaptação televisiva Pirlimpimpim (1982): “Olha a minha fuça / Olha que boneca / Não existe bruxa / Mais charmosa”. Em 1977, a banda progressiva Terreno Baldio pintou o monstro Curupira. Orlando A. Beghelli Filho fez a letra: “cabelo de fogo / folgo não vê-lo / pele que forja / fogos vermelhos / sinais, assobios, / pios demais / falsos, de rios / farsa que trai // pés invertidos / pra frente e pra trás / senhor da caça / dos animais”.

Em 1993, o Saci surge todo suspense nos versos de Paulo César Pinheiro para a melodia de Guinga: “Quem vem vindo ali / É um preto retinto e anda nu / Boné cobrindo o pixaim / E pitando um cachimbo de bambu / Vem me acudir / Acho que ouvi / Seu assovio / Fiquei até / Com o cabelo em pé / Me deu arrepio / Frio”. Aventura sem perigo interessa pouco.

Roberto Carlos sabia disso ao gravar Noite de Terror (Getúlio Cortes, 1965): “Tremi de cima a baixo sem sair do lugar / Quando de repente eu ouvi alguém falar / Bem junto de mim esse alguém me falou bem assim / Eu sou o Frankstein”. E o terror aumenta, com graça e sotaque caipira, em Romance de Uma Caveira (Alvarenga, Ranchinho e Chiquinho Salles, 1940): “Era duas caveira / que se amava / e à meia-noite / se encontrava / pelo cemitério / os dois passeava / e juras de amor / então trocava”.

Assim começamos a entender som, língua, falas, seres, narrativas, tensões, sentimentos e tudo o mais que essas canções plantam em nosso imaginário, mesmo antes de escola ou leitura.


“Quando favorece a palavra, a lírica anima maquinarias rítmicas, voltas linguísticas e semânticas sem igual. É a poesia gravada em papel, do soneto ao verso livre, cantando e dançando na língua”



Pedro Marques é poeta, ensaísta e professor. Doutor em Teoria e História Literária pela Unicamp. Editor do site Poesia à Mão. Livros: Em Cena com o Absurdo (poesia, 1998), Antologia da Poesia Romântica Brasileira (crítica e organização, 2007), Antologia da Poesia Parnasiana Brasileira (crítica e organização, 2007), Manuel Bandeira e a Música (ensaio, 2008), Olhos nos Olhos (poesia, 2009), Clusters (poesia, 2010).



A literatura infantil na prateleira
por Marco Catalão

As crianças devem ser incentivadas a ler. Há poucas ideias tão consensuais como essa em nossa sociedade. Pais e professores, poetas e apresentadores de televisão, empresários e policiais, garis e modelos, todos (ou quase todos) gostariam de ver seus filhos com um livro na mão. Uma criança que gosta de ler, como uma criança que adora couve ou brócolis, desperta imediatamente o orgulho dos pais e uma pontinha de inveja daqueles que “não têm a mesma sorte”.

O consenso não é menor entre os que leem pouco ou pouquíssimo. Pelo contrário: os pais que “nunca arranjam tempo” para ler um livro são os mais propensos a valorizar a leitura como uma experiência necessária e importante.

Provavelmente, poucos dentre eles se recusariam a pagar por um método que se revelasse comprovadamente eficaz em despertar nos filhos o misterioso e fugidio “gosto pela leitura”. Porém, como esse método ainda não foi inventado (ou é muito pouco difundido), a maioria dos pais deixa o pepino a cargo da escola – e os resultados são aqueles que todos nós conhecemos. Para os que não se resignam a terceirizar a tarefa, surge o desafio de escolher os livros que os filhos devem ler, e, então, torna-se evidente a falácia da rima entre literatura e verdura.

Ao contrário do que ocorre na feira, em que as escolhas são limitadas e familiares, nas estantes das bibliotecas e das livrarias as opções são variadas e vertiginosas: contos de fada, histórias de aventura, narrativas policiais, poemas, mitos tradicionais, adaptações dos clássicos, clássicos sem adaptações, histórias politicamente corretas, livros só para meninas, livros só para meninos, livros que viraram filmes, desenhos que viraram livros, autoajuda infantojuvenil, histórias em quadrinhos, biografias de celebridades, livros de arte, de história, de ecologia, de religião, livro sobre insetos, bandas de rock, dinossauros...

Os pais passam a se perguntar: as crianças devem ser incentivadas a ler o quê? Evidentemente, a resposta dependerá da maneira como concebemos a infância e a leitura. Para aqueles que imaginam a criança como uma ilha de pureza em meio a um mar de perigos, temas como a morte, o sexo, a doença, o divórcio ou as drogas deveriam ser evitados ou mascarados, de forma a não perturbar a suposta candura infantil; para os que acreditam que a realidade pode ser entendida de forma direta e imediata, as narrativas deveriam continuar a sustentar uma interpretação maniqueísta do mundo, com bonzinhos e malvados facilmente distinguíveis e identificáveis. Foi basicamente a partir dessa visão de mundo que a narrativa infantil tradicional fundamentou-se.

No entanto, podemos levantar várias outras questões que colocam em xeque essa noção “superprotetora” da infância. Em primeiro lugar, há algum sentido em tentar ocultar dos jovens leitores temas considerados tabus, numa época em que a maioria deles tem livre acesso a informações e a imagens sobre qualquer tipo de tema, na televisão ou na internet?

Em segundo, se as crianças habitualmente especulam de forma bastante livre sobre a realidade física e social que as envolve, elas se contentarão com representações simplórias de temas complexos como a morte, as relações pessoais ou a delinquência urbana? Ou ainda: por que as narrativas para crianças deveriam se empenhar em defender tão seriamente instituições e normas de conduta cuja legitimidade nós mesmos sabemos que é frágil? Em outras palavras, deveríamos nos perguntar se os livros que oferecemos aos nossos filhos estão à altura da complexidade do mundo em que seus potenciais leitores vivem.

É preciso lembrar também que, ao contrário do leitor dos séculos passados, imerso numa cultura predominantemente oral, a criança brasileira contemporânea, além de ter um grau mais elevado de escolarização, está familiarizada com diversos sistemas audiovisuais (televisão, cinema, internet, quadrinhos), o que faz com que ela tenha uma percepção cada vez maior dos recursos linguísticos e gráficos presentes nas narrativas. A maior competência em compreender e apreciar os aspectos propriamente literários dos textos, como a construção das personagens e do cenário, torna obsoletas e tediosas aquelas narrativas mais interessadas em “passar uma mensagem” do que em estimular a capacidade criativa do leitor.

Analisando os livros de que os leitores iniciantes podem dispor atualmente, notamos que ainda predomina uma concepção tradicionalista, não apenas acerca da criança e da realidade que a envolve, mas também em relação à leitura: sob uma roupagem aparentemente mais moderna, a maior parte dos livros continua a priorizar o aspecto educativo em relação ao estético, usando as narrativas como meros instrumentos para doutrinar os jovens leitores. Supõe-se que o leitor seja ingênuo e assimile docilmente uma mensagem edificante, normalmente de cunho ecológico, pacifista ou politicamente correto.

Entretanto, os pais que desejam que seus filhos sejam indivíduos autônomos, e não meros consumidores de produtos feitos sob medida para sua satisfação momentânea, certamente encontrarão na literatura atual vários exemplos de obras literárias que respeitam a criança e o jovem. Fundamentalmente, são livros em que a narrativa e a poesia não se propõem apenas como objetos de consumo, mas que exigem também um esforço do leitor na construção do seu sentido.

Mais importante do que fazer uma lista de “obras recomendáveis”, porém, é ressaltar a necessidade de uma nova concepção de leitura por parte de pais e educadores. Devemos lembrar que uma obra literária, por melhor que seja, não age magicamente sobre a consciência do leitor, impondo-lhe suas qualidades pelo simples fato de ser lida; seu efeito depende sempre da participação ativa daquele que a lê. Assim, o simples fato de entrar em contato com um livro não dará a nossos filhos leitores competência literária. Nesse sentido, parece-me fundamental a atuação do adulto nesse processo, como leitor mais experiente e preparado.

Ler o livro junto com a criança, respeitando suas interpretações e esclarecendo suas eventuais dúvidas, é uma atividade que reforça o caráter cooperativo da leitura, além de fortalecer o vínculo afetivo entre os pais e os filhos. Uma vez que o adulto conceba a leitura literária como um percurso, não se preocupará tanto com a quantidade de livros canônicos que seus filhos terão lido ao longo dos anos, mas, sim, com a qualidade potencial das leituras que eles poderão fazer efetivamente com prazer e profundidade no futuro. Assim, de acordo com a maturidade cognitiva, afetiva e social da criança, um livro como O Gênio do Crime, de João Carlos Marinho, pode ser muito mais relevante do que uma obra consagrada como Fogo Morto, de José Lins do Rego.

Não defendo, de forma alguma, que se limite o horizonte de leitura das crianças àquilo que é simples, próximo e familiar. Mas a leitura atenta e significativa de textos mais simples (desde que sejam textos que não subestimem o leitor) levará ao domínio das habilidades necessárias para a leitura efetiva de textos mais complexos, numa gradação de experiências que culminará na formação de um leitor capaz de interpretar plenamente as narrativas e convertê-las em experiências pessoais. Evidentemente, trata-se de um caminho longo que exige a participação ativa de pais e filhos, sem facilitações. Literatura não é verdura.


“[...] há algum sentido em tentar ocultar dos jovens leitores temas considerados tabus, numa época em que a maioria deles tem livre acesso a informações e a imagens sobre qualquer tipo de tema, na televisão ou na internet?”


Marco Catalão é poeta, ficcionista e dramaturgo. É autor do livro de poemas O Cânone Acidental (É Realizações, 2009) e dos livros para crianças A Arte de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (Adonis, 2009) e Os Mais Belos Mitos Afro-brasileiros (Adonis, 2010), entre outros.