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O incrível poder da boa marca

por Alberto Mawakdiye

Um levantamento feito no ano passado pela empresa de consultoria Nielsen confirmou um mau pressentimento que os grandes produtores nacionais de cachaça mantinham há cerca de cinco anos. Com o aumento do poder aquisitivo dos brasileiros, o consumo da aguardente, que vinha crescendo quase que de maneira vegetativa nos últimos anos, finalmente desabou – como eles temiam. A queda no volume de vendas não foi nada pequena, de 3,8% em 2010, ao mesmo tempo em que uma bebida de origem estrangeira tida como mais sofisticada e produzida geralmente por multinacionais – a vodca – registrava aumento de 1,8%.

Em vez do compreensível pânico, porém, o que predominou nas salas de reuniões dessas companhias – além da aceitação do fato consumado – foi um clima bem mais ameno, marcado por ponderadas discussões sobre como poderiam aprofundar a espécie de “plano B”, que todas as grandes empresas do setor – Ypióca, Tatuzinho, Pitú, Müller (fabricante da caninha 51) – já vinham executando timidamente, devido à perspectiva de perder fatias de mercado. O que de alguma maneira eles tinham como que evitado até então – lutar, por assim dizer, no campo do adversário, ou seja, atuar de maneira mais decidida também nos nichos mais sofisticados dos destilados alcoólicos – tornou-se de repente uma plataforma comum a todas essas grandes fabricantes.

A decisão não veio do nada. Mesmo com um investimento tíbio nas chamadas cachaças “premium”, a queda do consumo em 2010 já havia sido mais que compensada pelo aumento do faturamento, que foi de R$ 450 milhões, 6,9% a mais do que em 2009 – justamente por causa do maior valor agregado de alguns tipos de cachaça.

Não foi, entretanto, uma deliberação fácil. Prerrogativa de pequenos fabricantes semiartesanais, a produção de cachaças “premium” não é algo muito simples para as grandes destilarias, cujos carros-chefe são aguardentes tão baratas que são vendidas quase como commodities. Produzir uma cachaça “classe A” exige um processo de envelhecimento de pelo menos um ano em tonéis de madeira – o que significa empatar capital – e, em grandes quantidades, um volume assombroso se perde com a evaporação.

Como, no entanto, parecia não haver outra saída, todas as grandes fabricantes de cachaça decidiram engrossar o portfólio de aguardentes nobres dali para a frente. A paulista Müller deve, por exemplo, incrementar a produção e a comercialização da cachaça com quatro anos de envelhecimento que lançou no final de 2009. Vendida em uma garrafa francesa com design personalizado, a bebida custa R$ 140 – uma cachaça 51 convencional, “branquinha”, não sai por mais do que R$ 3 o litro nos supermercados.

A cearense Ypióca também pretende apostar um pouco mais na produção e venda de sua cachaça de menor teor alcoólico com sabor de guaraná, além de ter programado lançar três novos produtos de elite ao longo de 2011. A ideia é multiplicar a participação das cachaças “premium” no faturamento da empresa – só aquelas com sabor já representam 13% da receita da Ypióca.

“Com essas bebidas mais leves e sofisticadas alcançamos desde o público jovem, que está se iniciando no consumo alcoólico, até o feminino”, diz Francisco Jereissati, diretor comercial da empresa. A Ypióca confia que o poder e a longa tradição da marca – fundada em 1846, é uma das empresas mais antigas do país – a ajudarão a se firmar num mercado que, para ela, em escala maior, não deixa de ser novidade.

No campo adversário

Embora a prioridade das empresas brasileiras em geral, ao longo do tempo, tenha sido principalmente sobreviver, tentando antes manter seus mercados que ampliá-los ou diversificá-los demais, a reviravolta estratégica dos fabricantes de cachaça não é mais um fato isolado.

Cabe ressalvar que, apesar do tradicional acomodamento da indústria nacional, um grande número de companhias conseguiu durante muito tempo não apenas sobreviver, mas até mesmo expandir-se. Chega a surpreender a quantidade de marcas produzidas por indústrias nacionais presentes nas prateleiras das lojas e supermercados, lado a lado com grifes pertencentes a multinacionais americanas, europeias e japonesas e quase sempre fabricadas no Brasil, e em tempos mais recentes com a miríade de artigos importados.

Na verdade, raros segmentos, no mercado de consumo brasileiro, não são disputados de forma renhida por marcas deste e do outro lado das fronteiras. Basta pensar em uma área e lá está uma empresa de capital nacional, em geral ainda administrada por membros da família fundadora: Bauducco, no nicho de panetones; manteiga Aviação; Lupo e Hering no setor de vestuário; Di Giorgio e Weril na área de violões e instrumentos de sopro, respectivamente; Salton, na de vinhos; H. Stern na de joias; Adria, no segmento de massas; a Ceratti no de embutidos nobres; Papaiz no de fechaduras; Natura (que está entre as dez marcas mais valiosas do país) e Boticário no de cosméticos e perfumaria; Estrela, no de brinquedos.

A lista parece não ter fim – especialmente quando se acrescenta ao rol os itens hoje produzidos e comercializados pela Hypermarcas, jovem empresa brasileira que parece se divertir adquirindo no mercado marcas para lá de conhecidas e tradicionais. Basta citar algumas delas: Biotonico Fontoura (clássico dos clássicos), Coristina, Doril, Apracur, Benegrip, Engov, Merthiolate e Gelol no setor de medicamentos; Monange, Risqué, Bozzano e Jontex no segmento de cosméticos e cuidados pessoais; o molho de tomate Etti; os adoçantes Adocyl e Zero-Cal.

“Realmente, poucos dos próprios brasileiros se dão conta da quantidade de marcas genuinamente nacionais que participam do mercado de consumo”, diz Arnaldo Brazil Ferreira, professor de MBA Executivo da Faculdade de Administração da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), de São Paulo. “Elas não são apenas numerosas; algumas são também bastante fortes. Uma prova pelo avesso é tantas multinacionais preferirem operar no país com marcas compradas de brasileiros e não com suas próprias. Para elas, é mais do que meio caminho andado, já que muitas das nacionais seriam duríssimas de bater na briga de mercado.”

De fato, são muitas as grifes de origem nacional que foram absorvidas por estrangeiros nas últimas décadas. Na área de chocolates, a indústria capixaba Garoto foi adquirida pela Nestlé (contra o parecer, aliás, das autoridades de comércio) e a Lacta pela Philip Morris. A Matte Leão faz parte hoje do portfólio da Coca-Cola e a Gessy é do Grupo Unilever, para citar uns poucos casos. Algumas dessas marcas são comercializadas, meio disfarçadamente, como brasileiras genuínas – o que leva muitos consumidores a acreditar, por exemplo, que os chocolates Garoto são fabricados ainda por industriais tupiniquins.

Segundo Arnaldo Brazil, a explicar essa força estaria, principalmente, a longevidade de tantas dessas grifes – a cultuada manteiga Aviação, por exemplo, é produzida desde 1920, e as meias Lupo, hoje gigante na área de confecções, começaram a ser tecidas na cidade de Araraquara (SP) ainda em 1921. Já a Di Giorgio, produtora paulistana de violões de qualidade diferenciada, está no mercado desde 1908. Essa longevidade, mãe de toda tradição, tornou esses produtos familiares aos brasileiros, como que reservando um espaço para eles na cultura de consumo.

Houve tempo de sobra para essa consolidação. Olhando hoje, parece que as multinacionais estiveram desde sempre no Brasil; só que a presença delas no país, na área de consumo direto, é muito mais recente do que se imagina. Realmente, se a Ford, a General Motors, a Philips e a Rhodia estão aqui desde a década de 1920 – na verdade, então mais como montadoras de produtos que como autênticas fabricantes –, as multinacionais dedicadas ao consumo de massa só começariam a chegar verdadeiramente no final da década de 1950, nos anos JK, vivendo o período de maior expansão durante o “Milagre Econômico” do começo da década de 1970.

“A indústria brasileira é muito mais antiga do que parece”, afirma o consultor empresarial e escritor Marcos Morita. “Quando as multinacionais chegaram ao país já encontraram pelo menos o mercado de consumo mais básico ocupado por empresas nativas, que de modo algum eram precárias ou tinham posição frágil no mercado: muitas estavam ancoradas em marcas de grande penetração na sociedade.”

De acordo com Morita, só não houve uma guerra mercadológica de proporções bíblicas entre as empresas nacionais e as estrangeiras que aqui vieram se instalar por causa do tamanho do mercado brasileiro, enorme e relativamente mal atendido.

O considerável porte do mercado brasileiro, segundo ele, também explica por que o Brasil possui tão poucas grifes globais na área de consumo: a única realmente conhecida mundialmente talvez seja a das sandálias Havaianas. “Na verdade, as marcas brasileiras – esteja atrás delas o capital nacional ou depois também o multinacional – nunca precisaram muito do mercado externo. O país sempre ofereceu espaço de sobra para que tudo se resolvesse aqui dentro”, diz.

Morita acrescenta que, se esse fato faz o país estar, perante o mundo, ainda no “segundo estágio” em termos econômicos – sendo o primeiro o da produção de commodities, o segundo o de manufaturados básicos, e o terceiro o de manufaturados com marcas ou apenas a gestão das marcas –, no âmbito interno estaria, sem dúvida, já no terceiro estágio. “No plano doméstico, a indústria brasileira já é plenamente desenvolvida, sob qualquer critério”, afirma.

Inovação

Obviamente, sobreviver à concorrência das multinacionais jamais foi uma tarefa simples para a indústria brasileira – muito pelo contrário –, assim como não está sendo fácil, em algumas áreas, enfrentar a concorrência dos importados. Pode-se dizer, na verdade, que a “parte do leão” do mercado acabou mesmo nas mãos das filiais das grandes companhias transnacionais, por conta do maior poderio financeiro.

Há cerca de 10 mil multinacionais instaladas no país, e das 500 maiores empresas globais, mais de 400 operam aqui. Perto de 40% do faturamento das cem maiores empresas com atuação no Brasil (incluindo estatais como a Petrobras) se relaciona às multinacionais. E das 500 maiores empresas no cômputo geral, pouco menos da metade é composta por múltis.

Em alguns setores – como alimentos e eletrônica –, o predomínio das multinacionais é esmagador, com 70% de participação no mercado (embora na área eletrônica alguns nichos já estejam hoje quase inteiramente dominados pelos produtos importados). Em têxteis e calçados, é de cerca de 40%.

“Para sobreviver num cenário econômico com tamanha participação internacional, a única saída das empresas é inovar, seja em produto, seja em tecnologia, seja em processos de fabricação”, diz Roberto Nicolsky, diretor-geral da Sociedade Brasileira Pró-Inovação Tecnológica (Protec). “Elas precisam também diferenciar continuamente a marca sem jogar fora a tradição, além de investir em produtividade, como fez a Sadia [hoje Brasil Foods], que conseguiu reduzir o prazo de abate em seus frigoríficos de 90 para 41 dias. Felizmente, muitas empresas brasileiras nunca deixaram de fazer isso”.

Um bom exemplo de indústria nacional que inovou em produtividade e enriquecimento de portfólio sem abrir mão da tradição é dado pela fábrica paulista de panetones Bauducco, que detém 60% desse mercado. Do mesmo modo como quer agora a indústria de cachaça, a Bauducco venceu a ameaça dos players internacionais diversificando a linha de seus clássicos panetones (alguns dos quais usam a mesma receita há cerca de 60 anos) e investindo ainda na área de biscoitos, torradas e wafers. Tudo vendido a preços bastante competitivos.

“Nossa intenção é não apenas atender a família, que nos tem como referência principalmente no Natal, mas também seus membros individuais”, explica Paulo Cardamone, diretor de marketing da Pandurata, a holding que representa a Bauducco, a Visconti (também da área de panetones) e a americana Hershey’s, fabricante de balas e confeitos de cuja filial brasileira a Bauducco comprou 49% das ações – bom exemplo de feitiço que virou contra o feiticeiro. “Assim, podemos diversificar as vendas e fidelizar os consumidores de nossa marca por gerações.”

A fabricante paulistana de violões Di Giorgio preferiu seguir outro caminho: o da alta qualificação. “Construímos principalmente violões para o mercado premium desse instrumento, cerca de 4 mil unidades por mês, de maneira semiartesanal”, afirma Vera Machado, gerente comercial da empresa. “Cada um de nossos violões top exige da fábrica um mês inteiro de dedicação, não os produzimos como um mero artigo de massa. É isso o que nos garante um nicho de excelência no mercado e a fidelidade da clientela, e nos protege da avalanche dos importados chineses.”

Já a estratégia da Lupo foi, além de expandir a linha de produtos para moda íntima e esportiva, por exemplo, investir, a partir de 1994, na abertura de pontos de venda próprios (como, aliás, fez também outra grande da área de confecções, a catarinense Hering, famosa pelas camisetas). Hoje, a marca possui uma rede com 190 lojas em todo o país, muitas delas em shopping centers, nas quais comercializa mais de 15 mil itens. “Com lojas próprias, nossa marca conseguiu muito mais visibilidade e penetração no mercado”, resume Valquirio Cabral Jr., diretor comercial da Lupo. Essa exposição, mais a força da própria marca, também tem protegido a empresa de ser soterrada pelas confecções importadas da China, cada vez mais presentes no país.

Universo visual

Muitas empresas têm investido também na modernização das embalagens e dos componentes gráficos da marca, quando não de toda a comunicação visual da empresa – incluindo os pontos de venda e até a própria sede – para se diferenciar no mercado. O A10, escritório paulistano de design que é bastante focado na área de branding (construção, reposicionamento e gerenciamento de marcas), já executou projetos dessa natureza para diversas empresas de capital nacional, como Boticário, Papaiz e Brasil Foods. Esta última companhia resultou da fusão entre Sadia e Perdigão e já nasceu como uma das maiores empresas do ramo de carnes do mundo. A união, no entanto, foi aprovada com restrições pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) do Ministério da Justiça, e a decisão final deve sair ainda este ano.

“As companhias brasileiras estão valorizando cada vez mais o universo visual e presencial de suas marcas”, diz Margot Doi Takeda, sócia-diretora do escritório. “Trata-se de um trabalho delicado, pois modernizar por modernizar pode ser um tiro pela culatra. É preciso preservar a percepção que o consumidor tem da marca – o que implica em ter bastante cuidado com a tradição – e ao mesmo tempo transmitir os valores que a empresa quer em sua estratégia de médio e longo prazo.”

Uma companhia cujas marcas passaram por algumas “revoluções visuais” em sua história, mas sem jamais deixar que as embalagens se descaracterizassem, é a fabricante de manteigas, queijos e doces de leite Gonçalves e Salles, de Minas Gerais, cujo carro-chefe é a manteiga Aviação. Ainda hoje ostentando nas latas e caixas de plástico da tradicionalíssima manteiga o inconfundível bimotor cercado de todos os lados por uma berrante cor laranja (na verdade, há uma versão na cor amarela e com o avião apenas nas laterais), a embalagem foi, por assim dizer, correndo atrás do progresso da aviação. No início, nos anos 1920, a ilustração era de um biplano; evoluiu depois para um avião bimotor a hélice de passageiros; na década de 1970, na linha de queijos e doce de leite, a empresa substituiu o bimotor por um Concorde.

“Até tentamos colocar o Concorde também nas latas de manteiga, mas o consumidor recebeu mal a novidade e tivemos de voltar atrás”, conta Ana Luiza Rezende Pimenta, diretora e membro da família dos fundadores da companhia. “Não que nosso consumidor seja tradicionalista, mas ele se acostumou a associar o desenho clássico da embalagem com a qualidade e a tradição do produto, que ocupa um lugar especial na preferência dos apreciadores de manteiga. Foi esse apego que, sem dúvida, nos fez superar os momentos mais difíceis da empresa, como quando a margarina era considerada saudável e a manteiga, não. Hoje se sabe que a manteiga faz menos mal, está comprovado até cientificamente.”

Talvez a estratégia mais radical para enfrentar a concorrência estrangeira tenha sido adotada pela Estrela, fabricante paulista de brinquedos fundada em 1937. Praticamente destroçada pela importação de produtos chineses, a empresa viu seu número de funcionários desabar de 11 mil para mil na década de 1990.

Para sobreviver, fez o que muitos considerariam impensável: abriu uma fábrica na China, onde passou a produzir os brinquedos de maior valor agregado, valendo-se do baixo custo da mão de obra de lá. Hoje, 40% da produção da Estrela – que está reeditando velhos ícones de seu catálogo, como o Autorama e o Ferrorama – vem do país asiático, assim como alguns componentes de outros brinquedos. Isso é que é jogar no campo do adversário.