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Uma vassourada que não deu certo
por Herbert Carvalho
No início da década de 1960 a Guerra Fria ameaçava esquentar perigosamente. Em abril de 1961, o soviético Yuri Gagarin observa que a Terra é azul no primeiro voo orbital tripulado, enquanto no Caribe a força de exilados que invade Cuba, apoiada pelos Estados Unidos, rende-se em 48 horas. Ainda nesse ano, após tanques russos e americanos ficarem frente a frente em posição de combate na capital da Alemanha, começa a construção do Muro de Berlim, símbolo principal, enquanto durou, de um mundo dividido em duas ideologias opostas.
No Brasil, o governo esquizofrênico de Jânio Quadros adota no plano interno a receita ortodoxa do Fundo Monetário Internacional (FMI), favorecendo os interesses americanos no país, mas confrontando-os na política externa, ao estabelecer relações diplomáticas com países comunistas. Em 25 de agosto, Dia do Soldado, o presidente eleito menos de um ano antes renuncia de forma intempestiva, deixando a nação em estado de choque. Mais estupefatos ficam ainda os brasileiros ao saber que o vice-presidente, João Goulart, nesse momento do outro lado do planeta em visita oficial à China, tem sua posse vetada pelos ministros militares, que o acusam de comunista e ameaçam prendê-lo tão logo desembarque em território nacional.
Nesse momento a força militar, que levara Getúlio Vargas ao suicídio sete anos antes e mais tarde imporia aos brasileiros uma ditadura de duas décadas, é detida pela resistência desencadeada por um civil. Com uma metralhadora a tiracolo e um microfone conectado a uma rede de 200 emissoras de rádio, o governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, desperta os brios gaúchos ciosos de glórias passadas – da Revolução Farroupilha (1835-1845) até a Revolução de 1930 –, exigindo o cumprimento da Constituição e a consequente posse do conterrâneo e cunhado Jango (apelido de infância do vice-presidente).
Diante de um Palácio Piratini (sede do governo gaúcho) tomado pela multidão e transformado em epicentro da mobilização cívica, o comando do III Exército, sediado em Porto Alegre, ignora as ordens superiores e adere ao movimento pela legalidade, que se alastra por toda a sociedade brasileira. Com o país à beira da guerra civil, líderes partidários costuram uma saída política para o impasse, que leva o Brasil a reviver durante 14 meses o regime parlamentarista.
A seguir relatada com seus antecedentes e desdobramentos, a crise da renúncia permanece, decorrido meio século, como feito épico democrático, que adiou por alguns anos o autoritarismo e o alinhamento automático com o lado posteriormente vencedor da Guerra Fria.
Elegância e desalinho
Em 1960, mais da metade dos 70 milhões de brasileiros ainda vivem no campo, mas a urbanização e a industrialização avançam rapidamente. O governo do presidente Juscelino Kubitschek chega ao fim contrastando um legado de crescimento econômico recorde – impulsionado pela construção de Brasília, meta síntese de seu plano que prometia um desenvolvimento de 50 anos em apenas cinco de mandato – com uma inflação também inusitada, da ordem de 40% ao ano.
É nesse cenário que Carlos Lacerda leva a sua União Democrática Nacional (UDN) – que juntamente com o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) constituía o trio das agremiações que hegemonizaram a política do país entre 1945 e 1964 –, até então mais disposta a obter pela via do golpe o poder que os votos lhe negavam, a aderir à candidatura de Jânio Quadros à presidência da República.
Escudada pela simbólica vassoura destinada a varrer a “bandalheira” dos governos, a carreira de Jânio fora meteórica – de vereador paulistano em 1948 a presidente, passando pela prefeitura da capital e pelo governo de São Paulo, em apenas 12 anos – e plasmada à margem dos grandes partidos (como aconteceria também na década de 1980 com Fernando Collor). Elege-se em outubro de 1960 com 48% dos votos – na época não havia segundo turno e o voto no vice-presidente era nominal – e assume a presidência em janeiro de 1961com o vice João Goulart, eleito pela coligação PSD-PTB, opositora de Jânio e majoritária no Congresso.
Advogado formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo, Jânio Quadros foi a quintessência do político demagogo, populista e autoritário. Sua figura era ímpar: alternava elegância e desalinho de acordo com a ocasião, mas expressava-se sempre num português professoral, recheado de ênclises e mesóclises. Em sete meses perseguiu e demitiu funcionários públicos, proibiu contratações e abriu inquéritos contra o antecessor, no mesmo padrão adotado na prefeitura paulistana e no governo estadual. Avesso ao jogo democrático, que pressupõe diálogo com o Congresso e a sociedade, governava de maneira sui generis, enviando bilhetinhos aos subordinados. Também ficaram famosos os arroubos moralistas que o levaram a proibir o lança-perfume, as rinhas de galo, o uso de biquínis nas praias e as corridas de cavalos em dias úteis.
Após mesclar contraditoriamente uma gestão monetarista ditada pelo FMI, cuja ingerência fora descartada pelo governo anterior, com uma política externa de viés esquerdista, que teve a condecoração de Ernesto Che Guevara com a Ordem do Cruzeiro do Sul como símbolo máximo, seu governo chega a um impasse que ele decide resolver imitando o expediente utilizado alguns anos antes pelo presidente francês Charles de Gaulle para obter poderes extraordinários. No dia 25 de agosto de 1991, pouco antes de morrer, ele contaria ao neto o que planejara exatos 30 anos antes:
“Mandei João Goulart em missão oficial à China, no lugar mais longe possível. Assim, ele não estaria no Brasil para assumir ou fazer articulações políticas. Escrevi a carta da renúncia no dia 19 de agosto e entreguei-a ao ministro da Justiça, Oscar Pedroso Horta, no dia 22. Eu acreditava que não haveria ninguém para assumir a presidência. Pensei que os militares, os governadores e, principalmente, o povo nunca aceitariam a minha renúncia e exigiriam que eu ficasse no poder. O Jango era inteiramente inaceitável para a elite.” Quando Jânio Quadros Neto pergunta o que deu errado, ouve do avô a seguinte explicação (publicada no livro Jânio Quadros: Memorial à História do Brasil, Editora Rideel, 1995): “Os governadores não me apoiaram. O ministro da Justiça nunca deveria ter contado ao Carlos Lacerda da minha intenção de renunciar. Fiquei surpreendido quando o Congresso se reuniu em sessão extraordinária, aceitou a renúncia e pôs o presidente da Câmara dos Deputados na presidência da República até o Jango voltar. O que mais deu errado foi a falta de apoio popular. Achei que o povo iria às ruas. Enganei-me. O povo brasileiro é muito passivo. Todo mundo ficou chocado, mas ninguém reagiu”.
Forças terríveis
“Nesta data e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República. Brasília, 25 de agosto de 1961. Jânio Quadros.” A partir do momento em que esse ofício, assinado com uma banal caneta esferográfica, é entregue ao presidente do Congresso Nacional, o senador Auro de Moura Andrade (PSD-SP), o drama que envolve o país desdobra-se em situações paralelas no tempo, embora distantes no espaço.
Em Cingapura, no sudeste da Ásia, onde recebe a notícia transmitida pelas agências internacionais, João Goulart inicia uma lenta viagem de volta por um roteiro que incluiria escalas em Kuala Lumpur, capital da Malásia, Zurique, na Suíça, Paris, Nova York, Cidade do Panamá, Lima, Buenos Aires e Montevidéu, até chegar a Porto Alegre, em 1º de setembro. Em cada uma delas, o vice-presidente era informado sobre o desenrolar da crise e participava das negociações políticas por meio de ligações telefônicas internacionais, muito precárias na época.
Na base aérea de Cumbica, em São Paulo, onde desembarcara após a renúncia, o agora ex-presidente aguarda recluso o levante popular que o restituiria ao poder. Em Brasília, porém, depois de lido na tribuna da Câmara o manifesto em que Jânio alinhava suas razões, referindo-se a “forças terríveis” que se levantavam contra ele, mas sem citar nomes ou fatos concretos, a cúpula do PSD age rápido, encantada com a possibilidade de voltar ao poder 39 meses antes de uma nova eleição.
Se Jânio e Horta esperavam que, por se tratar de uma sexta-feira, não haveria quorum para apreciar a renúncia, não contavam com a agilidade de Moura Andrade. Ele entra no Plenário do Senado às 4 horas da tarde, interrompe o orador que está na tribuna, convida os líderes dos partidos ao seu gabinete e convoca uma sessão do Congresso para dali a 30 minutos. Ao mesmo tempo, faz anunciar pelos alto-falantes do aeroporto um apelo para que deputados e senadores, prontos para viajar aos respectivos estados, retornassem imediatamente ,“em face da renúncia do senhor Jânio Quadros”.
Ao abrir a sessão extraordinária às 16 horas e 45 minutos, diante de 45 senadores e 230 deputados, ele repete em síntese a fórmula enunciada pouco antes por seu correligionário mineiro Gustavo Capanema: “A renúncia é ato unilateral. Irretratável. É um acontecimento histórico. Não temos competência constitucional para aceitá-la ou recusá-la. A única coisa que nos cabe é tomar conhecimento”. Ato contínuo, convida a todos para assistir, dali a 15 minutos no Palácio do Planalto, à posse interina na presidência da República do presidente da Câmara dos Deputados, de acordo com o que previa a Constituição no caso de ausência do vice-presidente. Anos depois o então presidente do PSD, Amaral Peixoto, comentaria a jogada malsucedida de Jânio: “Ah, era golpe. Ele queria voltar vitorioso. Mas não contava que o Congresso tomasse a decisão que tomou no mesmo dia”.
“Atividades subversivas”
A crise, entretanto, estava apenas começando. O também pessedista Ranieri Mazzilli assume e comunica o fato por telégrafo a Jango, à espera do qual estaria para transmitir-lhe a presidência. Nesse momento, a reação contra a solução constitucional vem não de um clamor das ruas pela volta de Jânio – coisa que nem remotamente aconteceu –, mas do marechal Odylio Denys, do almirante Sylvio Heck e do brigadeiro Grün Moss, respectivamente ministros da Guerra, da Marinha e da Aeronáutica, que na manhã do sábado, dia 26, comunicam ao presidente interino: “Nós não concordamos com a vinda do senhor João Goulart para assumir a presidência da República. Dispomos de farta documentação sobre as atividades subversivas dele no país”.
Nesse mesmo dia, porém, começa uma cisão nas forças armadas. O marechal Henrique Duffles Teixeira Lott, que, na função de ministro da Guerra em 1955, usara o cargo para garantir a posse ameaçada de Juscelino Kubitschek, coloca-se novamente ao lado da legalidade, embora já estivesse na reserva desde 1959, divulgando um manifesto de repúdio aos golpistas. Ao ser preso, surpreende apresentando-se em trajes civis: “Estou habituado a vestir uniforme limpo e a farda do exército nestes dias está enodoada”.
A essa altura, em que Mazzilli não manda nada e a imprensa é submetida a censura prévia, os olhos e principalmente os ouvidos dos brasileiros se voltam para o sul. A grande novidade tecnológica de então – o rádio portátil, que cabe na palma da mão – permite ouvir Leonel Brizola garantindo para o mundo não estar a favor “da União Soviética ou dos Estados Unidos, mas de um Brasil forte e independente”. Ciente de que o Ministério da Guerra ordenara “fazer convergir sobre Porto Alegre toda a tropa do Rio Grande do Sul e empregar a Aeronáutica em bombardeio”, ele apela ao general Machado Lopes, comandante do III Exército, para que evite o “desatino”, mas dispõe-se a resistir, caso contrário: “Podem atirar. Que decolem os jatos! A morte é melhor do que a vida sem honra”.
Não houve tiros nem decolaram os jatos, porém. Na segunda-feira, 28 de agosto, enquanto Jânio Quadros sorrateiramente embarcava num navio para a Europa, o general Machado Lopes era aclamado pelo povo reunido em frente ao Palácio Piratini, onde fora informar que o mais poderoso exército do país também exigia o cumprimento da Constituição.
Operação Mosquito
“Nosso pessoal foi cagão.” Essa síntese feita por Golbery do Couto e Silva – na ocasião um coronel envolvido até o pescoço na tentativa de usurpação do poder – resume o que aconteceu em seguida. Ele próprio é encarregado de redigir um texto que os ministros militares divulgam, deslocando o problema para o regime presidencialista, “que atribui ampla autoridade de poder pessoal ao chefe da nação”. Em outras palavras, se os poderes do presidente da República fossem podados, ele poderia assumir, sem que as tropas de ambos os lados dispostas na divisa entre Paraná e São Paulo tivessem de se enfrentar.
Como ocorrera na Revolução de 1930, não haveria a batalha de Itararé, nem qualquer outra. Na madrugada do dia 2 de setembro de 1961 uma emenda constitucional que tramitara a jato nos dias anteriores institui o parlamentarismo, aprovada por ampla maioria nas duas casas do Congresso. Cabe ao PSD, com 35% das cadeiras parlamentares, indicar o primeiro-ministro. A escolha recai sobre o mineiro Tancredo Neves, que voa até Montevidéu com a tarefa de convencer João Goulart a aceitar não apenas a fórmula encontrada para evitar derramamento de sangue, mas também a condição imposta pelos militares de que não discursasse em Porto Alegre.
Conciliador por natureza, ao chegar à capital gaúcha Jango tem dificuldade em conter os ímpetos de Brizola, que pela Rede da Legalidade protesta contra o que considera uma vergonhosa capitulação. Do outro lado também há inconformados: o general Ernesto Geisel, chefe do Gabinete Militar de Mazzilli, é encarregado de neutralizar o que ficaria conhecido como Operação Mosquito, ou seja, a ameaça de alguns oficiais da Aeronáutica de abater o avião presidencial em pleno voo. Às 20 horas e 25 minutos do dia 5 de setembro, finalmente, pousa em Brasília o Caravelle da Varig que transportara Jango desde Porto Alegre – mais moderno jato da época, voara a 12 mil metros por precaução, já que os aviões da FAB não alcançavam essa altura.
João Belchior Marques Goulart, então com 42 anos, toma posse na presidência da República na simbólica data de 7 de setembro de 1961, encerrando o episódio assim resumido pelos jornalistas Paulo Markun e Duda Hamilton no livro 1961: Que as Armas não Falem (Editora Senac São Paulo, 2001): “Naqueles 12 dias, entre agosto e setembro de 1961, o Brasil esteve à beira de uma guerra civil, com movimentos de tropas para lá e para cá e muita preparação, mas as batalhas restringiram-se aos campos da propaganda e da contrainformação”. Assim eram, de fato, as batalhas durante a Guerra Fria, inclusive aquela que assinalaria o ocaso do poder civil no Brasil, em 31 de março de 1964.
Brasil parlamentarista
O parlamentarismo que vigorou no Brasil durante o reinado de dom Pedro II era inspirado no modelo inglês, com uma diferença: o imperador exercia o Poder Moderador, que lhe facultava, além de escolher o presidente do Conselho de Ministros, decidir se dissolvia ou não a Câmara dos Deputados, convocando novas eleições, em caso de conflito entre o Parlamento e o primeiro-ministro.
Nesse regime centralizado, durante 50 anos 36 gabinetes ocuparam o poder. Os conservadores dominaram o governo por quase 30 anos, enquanto os liberais, apesar de liderar 21 gabinetes, governaram por apenas duas décadas. Os partidos, entretanto, não diferiam muito um do outro, pois ambos eram formados por grandes proprietários de terras e de escravos.
Já no parlamentarismo de ocasião implantado em 1961, os gabinetes se sucederam vertiginosamente: Tancredo Neves, Brochado da Rocha e Hermes Lima pouco duraram no cargo de primeiro-ministro até que, em janeiro de 1963, um plebiscito restaurou o presidencialismo. Dos 11 milhões de votos depositados, 10 milhões foram favoráveis a que Jango reconquistasse seus poderes.
A última vez em que o povo brasileiro ouviu falar em parlamentarismo foi em 1993, quando novo plebiscito, previsto pela Constituição de 1988, conferiu a esse sistema de governo apenas 24,65% dos votos, desestimulando, até o momento, novas tentativas de seus adeptos.