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Um urro que continua no ar
por Cecilia Prada
Há 30 anos a morte inesperada e chocante do cineasta Glauber Rocha, aos 42 anos de idade, no dia 22 de agosto de 1981, pontuava tragicamente a evolução do movimento que fora criado por ele, o Cinema Novo – que, dizia, devia ser feito com “uma câmara na mão e uma ideia na cabeça” – e acirrava um debate que permanece aceso até hoje sobre sua extraordinária personalidade, suas incongruências, exageros, desvarios pessoais ou ideológicos. E sobre a vasta obra que deixou, hiperbólica, eivada de mistério, misticismo, retórica política e “baianidade” – mas capaz ainda de polarizar opiniões que vão da exaltação ao repúdio, este expresso sobretudo pelos cinéfilos das novas gerações que ainda buscam nas cinematecas compreender seus filmes.
As próprias circunstâncias de sua morte somam-se às de toda a sua vida – nunca puderam ser explicadas. Tem-se a impressão, lendo relatórios médicos de sua seguida internação, primeiro em hospitais portugueses (três dias em Sintra, 18 em Lisboa) e depois nas menos de nove horas finais passadas na Clínica Bambina, no Rio de Janeiro, que a doença que o levou – caracterizada apenas como “infecção generalizada” – o fez com a mesma energia cósmica, meio desgovernada, que o impelia a se rebelar contra tudo e todos, responsável também pela genialidade incontestada de seus momentos de criação.
Em artigo da época, seu grande amigo o jornalista Zuenir Ventura dizia mesmo, incorporando o humor do próprio morto: “Quando subiu ao céu, no sábado, dia 22, Glauber Rocha com certeza terá gritado: ‘Foi um complô da CIA e do KGB. Me mataram, São Pedro!’ Todos devem ter rido, como acontecia sempre que o cineasta repetia acusações desse tipo”. Mas não haveria, segundo Zuenir, tanto exagero na hipótese, porque “se é improvável que tenha havido um complô, é possível que o cineasta tenha morrido em consequência de uma conjugação de imperícia e negligência médica. Glauber pode ter chegado ao Rio praticamente morto por falta de tratamento adequado em Lisboa”.
Pela independência absoluta de pensamento, expressa amplamente em sua ação, na vida profissional ou particular, Glauber nunca se alistou de corpo e alma em blocos oficiais de esquerda – seu filme Terra em Transe, ganhador de mais de dez prêmios, entre nacionais e estrangeiros, chegou a ser denunciado como “fascista” pela esquerda carioca chefiada por Fernando Gabeira, que pedia sua incineração. “A esquerda sou eu!”, proclamava Glauber, que nos últimos anos de vida foi tachado não só de “louco” – seu desequilíbrio temperamental realmente justificava a fama – como de “traidor” e “vendido ao governo”. Conta ainda Zuenir Ventura que em 1974 o cineasta lhe mandara da Europa uma entrevista em que apostava na abertura Geisel-Golbery, vendo “uma luz no fim do túnel”. Sua posição, vertida na pitoresca ortografia que criara, espalhou fogo na intelectualidade de seu brazyl. E desencadeou um processo de linchamento histórico que, felizmente, foi contido por vozes fortes da esquerda esclarecida – entre as quais as de Darcy Ribeiro, Hélio Pellegrino, Ferreira Gullar, Arnaldo Jabor, Cacá Diegues, Paulo Emílio Salles Gomes, Carlos Heitor Cony, entre tantos outros. Do último é uma frase que caracterizou a atitude de muitos de seus companheiros sobre o baiano reconhecidamente genial: “Glauber Rocha é profeta alado. Profeta não tem obrigação de acertar, sua função é profetizar”. E o psicanalista Hélio Pellegrino assim o definia: “Ele é um provocador. É um parteiro da verdade”.
Ambiente de afeto
Mas é o poeta Ferreira Gullar que define sucintamente o que aconteceu com o cineasta: “Glauber se consumiu em seu próprio fogo”. E dos vários estudos e biografias sobre sua personalidade singular, o alentado livro de 635 páginas Glauber Rocha – Esse Vulcão, publicado em 1997 pelo seu companheiro de geração e amigo de toda a vida, o jornalista e escritor João Carlos Teixeira Gomes, é o que mais permite, pelo detalhamento, conhecer como se formou, como agiu sempre o menino superdotado que veio ao mundo no dia 14 de março de 1939 em Vitória da Conquista (BA) – e já tão forte, com cerca de 5 quilos, que teve de ser extraído a fórceps por dois obstetras do ventre de sua mãe Lúcia, que quase ia perdendo a vida na empreitada.
Seu núcleo familiar, formado pelos pais, Lúcia e Adamastor, e as irmãs mais novas, Ana Marcelina e Anecy (registrada como Anecyr), oferecia-lhe um ambiente de fé protestante, de ética rigorosa mas temperada por muito afeto, solidariedade e ótimo nível cultural. Quando Glauber tinha 8 anos a família mudou-se para Salvador. Em 1949, Adamastor, que era engenheiro de estradas de rodagem, sofreu um grave acidente e precisou colocar uma placa de platina para substituir parte do crânio, esfacelada – segundo Teixeira Gomes, ele teve diminuição da capacidade de raciocínio e ficou sujeito a acessos de irritabilidade, mantendo-se, porém, homem bom e comunicativo até o fim da vida. Lúcia foi então obrigada a assumir a chefia da família. E sobreviveu a todos, ocupando-se hoje em manter um acervo de mais de 100 mil documentos relativos ao filho, o “Tempo Glauber”, no Rio de Janeiro.
Em 1952 morria Ana Marcelina, aos 11 anos de idade, vitimada pela leucemia. Inconformado, Glauber, então com 13 anos, sofreu um abalo irrecuperável em sua religiosidade – que se manteve, entretanto, sublimada em criatividade, durante toda a vida. Equilibrou-se sempre na extrema sinceridade que o fazia sincronizar materialismo e exercício dialético com declarações enfáticas do tipo “sou protestante, judeu, cristão-novo, mouro e leitor da Bíblia”.
Para se ter ideia da estruturação sólida da família, da profunda afetividade entre os membros, basta lembrar um fato: para substituir a filha morta, Lúcia não hesitou em acolher, no mesmo ano, uma filha natural tida pelo marido, a pequenina Ana Lúcia, por ele registrada como legítima. Como diz o biógrafo do cineasta, “nada foi mais importante na vida de Glauber do que a família”. O elo que desde criança o unia à outra irmã, Anecy, fortaleceu-se ainda mais a partir dessa época e só seria também violentamente cortado na trágica manhã de um Domingo de Ramos, 27 de março de 1977, quando ela, aos 34 anos, sofreu um acidente fatal – despencou no fosso do elevador antigo e defeituoso do prédio em Botafogo em que vivia com o marido, o cineasta Walter Lima Jr., e com o filho bebê.
O relacionamento com a mãe e com Anecy influenciou positivamente toda a sua vida amorosa, inscrita sempre num romantismo exaltado. Teixeira Gomes descreve-o como ciumento e possessivo, capaz até de reações imprevisíveis, às vezes, mas tímido e inseguro, também. Diz que, como grande amoroso, “viveu em permanente estado de ansiedade afetiva e emocional, mergulhado no turbilhão romântico das suas idealizações”. Assim foi a primeira ligação, o casamento arrebatado, aos 21 anos, com a atriz Helena Ignez – uma paixão que afrontava os costumes ainda morigerados da época. E que durou pouco tempo, deixando uma filha, Paloma, e marcas permanentes em ambos. De 1962 a 1971 outra união, desta vez mais serena, rica de experiências culturais e viagens partilhadas, com a atriz Rosa Maria Penna, que, provinda de família intelectual – filha de Luiz Camillo de Oliveira Penna, historiador, primo de Carlos Drummond de Andrade –, no dizer ainda de Teixeira Gomes, “não era apenas uma nova amada, mas uma interlocutora como nunca antes Glauber tinha tido”. Mantinha, porém, simultaneamente, tumultuadas paixões, como a nutrida por Regina Rosemburgo, a bela “musa do Cinema Novo”, ou por Juliet Berto, atriz de filmes de Jean-Luc Godard, com a qual se envolveu em Paris numa relação tempestuosa, que acabou em ódio recíproco. Teve mais tarde dois outros relacionamentos estáveis: com a cubana Maria Tereza Sopeña, com quem viveu dois anos e meio, e, a partir de 1976 e até o final de sua vida, com a escritora colombiana Paula Gaitán. Deixou, além de Paloma, mais quatro filhos: Pedro Paulo, que teve com Maria Aparecida de Araújo Braga em 1977, Erik Aruak e Ava Pátria, com Paula Gaitán, nascidos respectivamente em 1978 e 1979, e Daniel, com Marta Jardim Gomes, que teve sua paternidade reconhecida na Justiça.
O verbo e a imagem
Aos 17 anos, o “vulcão” Glauber Rocha irrompia na modorrenta e provinciana vida cultural da capital da Bahia: “agitava”. Mais tarde seria reconhecido por muitos como o maior agitador cultural do país, depois de Oswald de Andrade. Duas personalidades parecidas, que apostavam na força de seu verbalismo oral e escrito, líderes de vanguardas históricas. Como parecido também foi, demais, com outros baianos notáveis, Gregório de Matos e Castro Alves – deste, o jovem Glauber parecia ser mesmo a reencarnação, apaixonado, grandiloquente, presença e voz que se impunham nas “jogralescas”, espetáculos de encenação de poesias que foram sua estreia no terreno das artes cênicas, enquanto simultaneamente já fazia crítica cinematográfica para o “Jornal da Bahia”. Como ele próprio diria, em entrevista ao jornalista francês Michel Clément, em 1967: “Queríamos encenar tragédias gregas, mas achamos difícil e também pouco adequado às circunstâncias. Então encenamos poemas. Era a época em que o Brasil vivia uma loucura poética”.
Suas primeiras experiências cinematográficas foram dois curtas-metragens de 1960 e 1961, Pátio e Cruz na Praça – este um marco de sua autoformação artística, pois, como diria na mesma entrevista, “...filme que não terminei, pois quando vi o material montado compreendi que essas ideias não funcionavam mais, que a minha concepção estética tinha sido transtornada”. A mesma coragem mostraria em seu primeiro longa, Barravento – filme iniciado e abandonado por outro diretor, Luiz Paulino dos Santos, e retomado “quase por acaso” por Glauber – que, após ver o material que filmara, decidira deixá-lo de lado também. Só voltaria a trabalhar nele oito meses mais tarde, estimulado por Nelson Pereira dos Santos, e o terminaria “em um estado de crise, em que abandonava as ideias da adolescência”.
Sair com uma câmara na mão e uma ideia (ou um furacão) na cabeça – a proposta que Glauber lançou quando em 1962 trocou Salvador pela residência no Rio – era, para ele, mais um slogan do que uma justificativa para um profissionalismo apressado e malfeito, um verdadeiro atestado de improvisação. Se existia em sua criatividade o desejo de ultrapassar as técnicas mais comportadas, mais fiéis ao know-how americano – como acontecia no cinema de tipo social que já se fazia no Brasil e na América Latina (Argentina, Cuba, México) –, havia também, mais do que pretensão juvenil ou meros arroubos grandiloquentes de “baianidade”, uma seriedade de reflexão sobre seu trabalho, um questionamento constante, aquela permanente insatisfação que é a característica dos grandes artistas.
Igualmente importante era a imersão total na realidade brasileira que queria transpor para seus filmes – uma verdadeira “lição de Brasil”, absorvida em suas viagens pelo nordeste, no contato com o povo, suas contingências e seu sofrimento, com a cultura popular, a valorização da literatura de cordel, dos artesãos e artistas – como Mestre Vitalino, cujos bonecos o fascinavam –, dos repentistas e violeiros, da vida cotidiana e das manifestações artístico-religiosas do interior. Experiência insubstituível, que se sobrepunha ao caudal de cultura geral humanística que possuía – e tudo temperado com um pensamento político marxista e revolucionário que, passada a euforia da era Juscelino, a tolerância dos governos de Jânio e de Jango, motivou a perseguição acirrada que sofreu durante a ditadura militar. Do maior relevo em sua formação foi a leitura e a análise que fez – desde um primeiro ensaio, escrito aos 17 anos – da obra completa do romancista José Lins do Rego. Para Teixeira Gomes, Glauber não teria sido o cineasta que foi sem essa imersão na obra do escritor pernambucano, pois “na sua conscientização dos problemas da terra nordestina não houve, seguramente, autor nacional que sobre ele tivesse exercido influência mais poderosa e duradoura”.
Tinha todas as condições de cultura e de personalidade, portanto, para tornar-se o “agitador cultural” que a euforia desenvolvimentista requeria, o teórico e realizador capaz de conquistar, em pouquíssimo tempo, inclusive o cenário internacional. A todas as suas qualidades intelectuais, juntava a capacidade empresarial e a ousadia para mostrar ao mundo a estratégia do Cinema Novo, “a criação de filmes baratos, explosivos, bárbaros, radicais, antinaturalistas e polêmicos”.
Com pouco mais de 20 anos chegou, a partir de 1962, aos principais festivais cinematográficos do mundo, derrubando barreiras de preconceito, de tradição: Barravento (1961) – Prêmio Opera Prima do Festival de Karlovy Vary, na então Tchecoslováquia, em 1962; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) – cinco prêmios, inclusive o Grande Prêmio Latino-Americano, de Mar del Plata, Argentina, 1966; Terra em Transe (1967) – onze prêmios, inclusive o Prêmio da Crítica, da Federação Internacional da Imprensa Cinematográfica (Fipresci), no Festival Internacional de Cannes; O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (também conhecido no exterior como Antonio das Mortes, de 1969) – sete prêmios, inclusive o de Melhor Direção do Festival Internacional de Cannes, onde em 1977 também recebeu um Prêmio Especial do Júri pelo curta-metragem Di Cavalcanti.
Consagração e derrocada
A última década da vida de Glauber foi passada quase totalmente no exterior, pois a partir de 1971, cada vez mais perseguido pelo governo militar, teve de deixar o Brasil e foi advertido de que seu regresso não seria tolerado. Dali por diante todo o tempo do cineasta seria tomado por uma série de compromissos em lugares diversos, viagens numerosas com breves ou longas estadas em vários países, filmando, promovendo seus filmes ou buscando financiamentos para novos projetos, participando de júris nos principais festivais. Em Cuba, passou mais de um ano, um período de grande entusiasmo e criatividade.
Porém, enquanto sua fama era consagrada com o apreço e a admiração dos maiores profissionais do mundo – de Rosselini a Godard, Scorsese, Antonioni, para citar somente alguns deles – e seus grandes filmes passavam a integrar obrigatoriamente acervos de cinematecas, nas produções dessa época já se notavam traços incômodos e inegáveis de desarranjo emocional e psíquico. Derramava-se em projetos e mais projetos, a maioria dos quais nunca realizados, e não deixava de escrever, febrilmente, desordenadamente, roteiros, artigos, romances inacabados, cartas, ensaios, poemas. Ao mesmo tempo, parecia renegar seu talento e sua formação artística, declarando o sonho de tornar-se político de carreira, “serei prefeito, governador da Bahia, quem sabe presidente...”, e entregava-se a um misticismo desvairado, profético, obcecado sempre pela morte, falando frequentemente em suicídio. Literalmente, consumia-se.
A atitude política que assumiu, de apoio à “abertura Geisel-Golbery”, incompatibilizou-o com vários grupos esquerdistas – que, por sua vez, carregaram nas tintas de sua “loucura”, atribuindo a ela seus manifestos. Amargurado, violento, sentindo-se cada vez mais incompreendido, o ex-menino-prodígio transformou-se assim em seu próprio personagem – uma encarnação, ao que parecia, de todos os conflitos de sua geração e da nacionalidade.
A totalidade das circunstâncias da vida e da obra de Glauber precisam ser compreendidas, hoje, pelos que buscam nas cinematecas suas obras, que a muitos parecem irremediavelmente datadas – e que por certo não são agradáveis, fáceis, “belas”. São únicas. E assim devem ser entendidas. Após a primeira exibição de Terra em Transe – que deixara perplexa e muda a inteligência carioca –, Nelson Rodrigues explicou: “Queríamos ver uma mesa bem posta, com tudo em seus lugares, pratos, talheres e uma impressão de ‘Manchete’. Pois Glauber nos deu um vômito triunfal. Os Sertões de Euclides da Cunha também foi o Brasil vomitado. E qualquer obra de arte para ter sentido no Brasil precisa ser essa golfada hedionda”.
Na mesma linguagem rude, “glauberiana”, diria também Carlos Heitor Cony: “No fundo, era uma inteligência em estado puro, mais do que em transe, em transa. Glauber transou o Brasil, mordeu-o nos testículos e obrigou-o a urrar. Esse urro não captado continua no ar e será fecundo”.