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A burrice oficial que destrói a ciência
por Evanildo da Silveira
Na quarta-feira, dia 2 de março, o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloizio Mercadante, anunciou algumas medidas para simplificar a importação de material de pesquisa. A principal delas é um selo adesivo, que identificará as caixas com produtos científicos que chegam ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, para acelerar a liberação pela Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (Infraero) e demais órgãos fiscalizadores. Já não era sem tempo. Na opinião da quase totalidade dos pesquisadores que necessitam de insumos e equipamentos do exterior, a burocracia envolvida na compra deles é um dos maiores obstáculos para o desenvolvimento da ciência brasileira e, consequentemente, da economia do país.
Além da montanha de papéis que têm de preencher, os cientistas se deparam com o despreparo dos funcionários da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), da Receita Federal e outros agentes aduaneiros, encarregados de receber e liberar o material. A maioria não conhece as especificidades dos produtos científicos e, na dúvida, não os liberam ou, pior, simplesmente os destroem. Sem falar na falta de espaços adequados nos portos e aeroportos para armazená-los até que passem pelos trâmites burocráticos.
Não é um problema pequeno. De acordo com informações do Ministério da Ciência e Tecnologia, importações de insumos e equipamentos para pesquisas chegam a US$ 600 milhões por ano. Dados do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por sua vez, revelam que os cientistas fazem cerca de 7 mil operações de compra do exterior por mês. Raros são os que não enfrentam algum tipo de contratempo na alfândega ou não têm de realizar mudanças em suas linhas de trabalho. O biólogo brasileiro Stevens Rehen, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um dos pioneiros em estudos com células-tronco no Brasil, mostra essa situação em números.
Nos últimos anos, ele vem se dedicando, paralelamente a seu trabalho de laboratório, a avaliar a situação, fazendo levantamentos entre seus pares. Em 2007, Rehen fez um estudo em que ouviu 88 cientistas de 16 instituições de sete estados. As respostas revelaram que todos eles tinham necessidade de importar insumos ou equipamentos e 90% foram obrigados a esperar pelo menos três meses para recebê-los. Em casos extremos (8%), essa demora chegou a até dois anos. No ano passado, ele refez o trabalho, dessa vez entrevistando 165 colegas cientistas de 35 centros e institutos de pesquisa e universidades de 13 estados. Nada menos do que 76% contaram que já haviam perdido algum material na alfândega e 99% tiveram de deixar de fazer um estudo ou adaptá-lo para minimizar problemas decorrentes de percalços aduaneiros.
Com tudo isso, não é difícil encontrar quem tenha uma história para contar. Um deles é o biólogo Marcelo Rodrigues de Carvalho, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP). Em 2005, ele participou de um encontro de especialistas em peixes marinhos promovido pela Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), em Tenerife, nas ilhas Canárias, pertencentes à Espanha. Na volta ao Brasil, o cientista trouxe dez espécimes de raias coletados naquela região, que serviriam para pesquisas e teses em andamento sobre a taxonomia e sistemática de peixes da costa brasileira, efetuadas em seu laboratório na USP.
Tratava-se de material único, que havia sido emprestado pelas autoridades do Instituto Oceanográfico de Tenerife. Porém, os peixes, que estavam conservados em formol, nunca chegaram à bancada de Carvalho. “Eles foram incinerados no aeroporto do Galeão, porque um fiscal do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento que estava de plantão, autoritário e ignorante, não aceitou as cartas do governo espanhol ou outros documentos que estavam comigo, que demonstravam que o material era inofensivo”, conta o pesquisador, indignado até hoje com o episódio. “Ele não explicou quais eram as irregularidades da documentação nem qual seria a papelada necessária. Simplesmente argumentou que os espécimes poderiam conter alguma bactéria perigosa e incinerou-os. E não deu mais as caras.”
Depois desse incidente, Carvalho firmou a convicção de que a burocracia no Brasil não é apenas uma questão legal, mas também cultural. Em sua opinião, os principais entraves são provenientes da mente burocratizada dos administradores e pesquisadores brasileiros, que apenas reflete a cultura geral do país. Toda a estrutura cartorial da sociedade se projeta na ciência. “Tenho longa experiência nos Estados Unidos, onde de modo geral tudo é mais fácil, porque não se presume que a pessoa está querendo ‘se dar bem’, enganando o sistema”, diz. “Aqui é o contrário. O Brasil ainda é um país onde a ‘autoridade’ reina suprema.” Por isso, ele diz que não adianta mudar a legislação para facilitar a importação de material biológico, se o burocrata responsável por liberar a entrada do produto ainda atuar com a cultura autoritária na qual trabalha há muitos anos.
Histórias de outros pesquisadores dão razão a Carvalho: o problema vem de longe. Que o diga o médico e bioquímico Walter Colli, professor titular aposentado do Instituto de Química da USP. Na década de 1970, ele obteve uma verba do CNPq para a compra de um agitador – um equipamento usado para crescimento de bactérias e protozoários. Era sabido que só havia uma empresa que fabricava bons aparelhos desse tipo, e ela ficava nos Estados Unidos. “Naquele tempo, porém, havia a malfadada reserva de mercado para esse tipo de produto, supostamente para forçar o desenvolvimento nacional”, lembra o pesquisador. “E como tudo no Brasil é isonômico, a reserva de mercado era também aplicada no caso daqueles que precisavam trabalhar na ponta para desenvolver tecnologia. Em outras palavras, ninguém podia importar nada, embora os fabricantes nacionais de agitadores fossem incompetentes.”
Apesar disso, Colli chegou a comprar um equipamento nacional. Ele conta o que aconteceu: “Coloquei as bactérias sobre o instrumento, ligado na velocidade mais baixa possível, e deixei na bancada. No dia seguinte, havia bactérias em todas as paredes e vidros quebrados pelo chão, porque o agitador foi acelerando à medida que o potenciômetro esquentava”. Depois disso, o cientista diz que ficou “matutando” durante um ano sobre o que fazer, até que, lendo o catálogo do equipamento americano, descobriu que ele tinha “um tal de low wattage element”.
Foi a brecha que Colli aproveitou para driblar a situação. “Esse low wattage element não constava do equipamento nacional”, explica. “Segundo a lei, se fosse provado que o aparelho brasileiro não era similar ao estrangeiro, podíamos importar. Bem, aí entrou o jeitinho: argumentei que o tal de low wattage element era simplesmente fundamental. Ainda não sei o que é isso, mas as autoridades permitiram a importação, e o equipamento funciona até hoje no laboratório, após 40 anos.” Apesar disso, todo esse processo atrasou o trabalho dele por dois ou três anos.
Custos altos
As dificuldades para importar não são o único obstáculo que a burocracia coloca no caminho dos pesquisadores brasileiros. Muitos deles também reclamam da Lei das Licitações (nº 8.666, de 21 de junho de 1993) e da aplicação de regras do serviço público à ciência, que tiram a flexibilidade necessária para a tomada de decisões, numa área em que as mudanças e o progresso são rápidos. Há ainda o problema do pagamento de compras feitas dentro do próprio país. Muitas vezes o cientista não tem o dinheiro à mão e precisa comprar tudo por meio de empenhos (ato jurídico pelo qual se cria para o Estado a obrigação de pagamento). “Por causa disso, as empresas fornecedoras colocam os preços na estratosfera, e ficamos reféns dessa situação”, queixa-se Tereza Araújo, professora do Departamento de Oceanografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
O excessivo rigor da legislação que trata da coleta de material biológico na natureza, como microrganismos, plantas e animais, que poderiam gerar substâncias de interesse farmacológico, é outro obstáculo ao desenvolvimento da ciência brasileira. Com o suposto nobre propósito de combater a biopirataria e proteger a riqueza da biodiversidade do país, o governo editou a medida provisória nº 2.052, de 29 de junho de 2000, que estabeleceu as regras de acesso ao patrimônio genético, ao conhecimento tradicional associado a ele e à repartição dos benefícios resultantes de sua exploração.
Como diz um velho ditado, porém, de boas intenções o inferno está cheio, e essa legislação virou o pesadelo dos que se dedicam à bioprospecção da riqueza natural brasileira. As regras são tão complexas que tornam difícil obter autorização para coletar e estudar recursos genéticos. A exigência de várias licenças e a demora em consegui-las inviabilizam a pesquisa, o que acaba desestimulando o aproveitamento deles. Além disso, muitos cientistas reclamam que são vistos como biopiratas e criticam principalmente o Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (CGEN), que avalia e autoriza projetos que exijam coleta de materiais.
Para muitos pesquisadores, quem fez a lei partiu do pressuposto errado de que a riqueza da biodiversidade brasileira é um recurso facilmente disponível, que está à mão, e que basta pegar uma folha de planta ou um microrganismo e sair faturando. A verdade, porém, é que antes de usufruir de benefícios é necessário muito trabalho duro, estudando e testando dezenas ou centenas de substâncias até que se encontre uma aproveitável. Depois, ainda é preciso transformá-la em produto, o que é tarefa para empresas.
O problema é que, por causa da legislação complexa e rigorosa, aquelas que poderiam atuar no desenvolvimento de produtos da biodiversidade e trazer riqueza ao país não querem mais saber disso. “A falta de visão de desenvolvimento estratégico de alguns ministérios é assombrosa e põe o governo na contramão do tempo e do processo da ciência e da tecnologia”, alerta Vanderlan Bolzani, professora do Instituto de Química do campus de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp). “Em comparação, veja a China [que está aproveitando sua riqueza natural]. O Brasil, com sua enorme biodiversidade, tem um déficit tremendo na balança comercial, pois precisa importar plantas daquele país e da Índia para o setor farmacêutico, de higiene pessoal e outros.”
Multa milionária
Esse não é o único motivo de descontentamento de Vanderlan, que também é vice-diretora da Agência Unesp de Inovação. Entre 2005 e 2009, ela realizou estudos para o Programa de Pesquisas em Caracterização, Conservação e Uso Sustentável da Biodiversidade do Estado de São Paulo, conhecido como Projeto Biota Fapesp, financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo. Durante esse período, a cientista não fez nenhuma coleta de plantas, porque não obteve licença para isso. Mesmo assim, a Unesp recebeu quatro multas do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), uma de R$ 5 milhões, outra de R$ 100 mil e mais duas de R$ 75 mil, o que dá um total de R$ 5,25 milhões.
Os motivos alegados pelo órgão para as autuações foram “remeter para o exterior amostra de componente do patrimônio genético sem autorização do órgão competente” e “acessar, sem autorização, componente do patrimônio genético para fins de bioprospecção”. Acontece que, segundo a Unesp informou por meio de uma nota de sua assessoria de imprensa, isso não ocorreu, e todas as exigências legais foram atendidas, o que inclui pedido de licença feito em 2005 ao CGEN para coletar espécies vegetais e fungos. De acordo com a universidade, o que houve foi um mal-entendido. O Ibama achou que os pesquisadores haviam enviado patrimônio genético para o exterior, quando na verdade se tratava de um depósito de patente por meio do Tratado de Cooperação em Matéria de Patentes (PCT, na sigla em inglês). A Unesp entrou com recurso administrativo contra as multas.
Uma das principais consequências desse excesso de burocracia é que a ciência brasileira fica emperrada, mais lenta e, por causa disso, perde competitividade em relação a países onde os entraves são menores. “Não conseguimos publicar artigos científicos na mesma velocidade deles”, explica o engenheiro agrônomo Luciano Andrade Moreira, do Centro de Pesquisas René Rachou (CPqRR), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais. “Nosso trabalho atrasa, pois se precisamos mudar os experimentos e não dispomos dos reagentes à mão temos de esperar.” O embaraço alfandegário também torna os estudos brasileiros mais caros. Segundo o biólogo Carlos Menck, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP), os cientistas que trabalham no país chegam a pagar três vezes mais pelos insumos que seus colegas americanos. “Como fazer pesquisa é um processo extremamente competitivo, é como começar um jogo de futebol com uma perna amarrada e perdendo de 3 a 0”, compara.
Mas isso não é tudo. Como se não bastassem os transtornos que têm de enfrentar, os pesquisadores ainda são responsabilizados por eles. Os órgãos públicos que respondem pela fiscalização da entrada de produtos científicos no país, como a Anvisa e a Receita Federal, afirmam que a culpa pelas dificuldades no desembaraço das importações é dos próprios cientistas. De acordo com o governo, eles desconhecem as regras de compras no exterior e não sabem preencher corretamente os formulários para realizar o procedimento. Além disso, também ignoram a legislação sanitária do país.
Segundo Solange Coelho, gerente de Inspeção de Produtos e Autorização de Empresas em Portos, Aeroportos, Fronteiras e Recintos Alfandegados da Anvisa, as reclamações dos cientistas não procedem. “Talvez, por desconhecimento dos trâmites burocráticos do comércio exterior, seja mais fácil responsabilizar a Anvisa, que é o maior órgão anuente e o de maior visibilidade”, diz. “Temos de lembrar que a agência não pode se furtar ao cumprimento de sua missão, que é assegurar a promoção e a proteção da saúde da população.” Ela garante que os produtos importados só são bloqueados nos portos e aeroportos quando não são cumpridas as resoluções RDC 01 de 2008 ou RDC 81 de 2008, que tratam do assunto. “Em 98% dos casos, as liberações ocorrem em até 24 horas”, assegura.
Em teste
Foi diante desse quadro que Mercadante anunciou as novas medidas para agilizar as importações. Por enquanto, o sistema de desburocratização, chamado de CNPq Expresso, funcionará durante um período de teste apenas no Terminal de Cargas da Infraero em Guarulhos (SP), que concentra cerca de 60% das importações destinadas a pesquisa no Brasil. As caixas com material científico importado, identificadas por um selo adesivo, serão encaminhadas para uma baia especial do terminal, para facilitar a inspeção.
Apesar das boas intenções do governo, no entanto, as novas normas foram recebidas pela comunidade científica com um misto de ceticismo e esperança. Escaldados por fracassadas tentativas anteriores de resolver a situação, alguns pesquisadores acham que nada mudará. Outros têm a expectativa de que as medidas, se não solucionarem os problemas, pelo menos os amenizem. Os mais pessimistas lembram que em 2004 o governo criou o programa Importa Fácil, com o mesmo objetivo do novo sistema, mas ele nunca funcionou direito. “A burocracia é tanta que a gente desiste no meio do caminho”, diz o químico João Bosco Pesquero, chefe do Departamento de Biofísica da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Isso ocorre também porque não temos ninguém, como secretárias, para nos ajudar na parte administrativa de nossos projetos.”
Carvalho, da USP, é outro dos que veem as novas regras com poucas esperanças. “O Brasil está cheio de medidas”, diz. “Se não mudar a cultura em relação à ciência, nada vai se alterar.” Ele conta que, após a incineração das raias que trouxe da Espanha, o processo para receber produtos semelhantes foi simplificado, mas mesmo assim teve material apreendido em aeroportos e devolvido ou simplesmente jogado fora. Vanderlan, apesar dos aborrecimentos que já enfrentou, é um pouco mais otimista. “Fiquei muito animada com as medidas”, diz. “Estou bastante confiante, pois conheço a competência e o envolvimento de Glaucius Oliva, presidente do CNPq, que tem uma vida de pesquisa e gestão que dispensa comentários.”
Seja como for, mesmo que funcionem, as novas regras anunciadas por Mercadante são insuficientes por si sós para livrar a ciência brasileira do excesso de burocracia. Na visão da comunidade científica, o Brasil precisa de leis que facilitem a vida do pesquisador e não que a atrapalhem. “Temos de valorizar esses profissionais, pois eles são instrumentos importantes para o avanço do país”, diz Pesquero. “Além disso, é necessário investir muito em ciência e tecnologia e diminuir a enorme distância que existe entre as empresas e a universidade.” Se isso for feito, Pesquero acredita que o Brasil estará mais bem posicionado no mundo em termos de desenvolvimento científico e tecnológico, o que deve se refletir diretamente em aumento de divisas, salários e empregos, assim como em melhores condições de vida para a população.